quinta-feira, 29 de setembro de 2016

LAU - Melancolia




Fragmentos de Beleza, cada música um estado de espírito.

"O Fragmentos de Beleza é composto por emoções e sentimentos que todos sentem. Somos emoções e estados de espírito que se transformam em pensamentos e palavras e acções, e o Fragmentos de Beleza é isso: uma tentativa de transformar em músicas estados de espírito universais. A finalidade é uma harmonia em que tudo está na mesma frequência e expressa o mesmo estado mental: a letra, a voz e todos os instrumentos que compõem a melodia.
E quem se reconhecer em Fragmentos de Beleza vai elevar-se no Fragmentos de Verdade."

2 - MELANCOLIA

"Acordo com frio na espinha 
Não sei se acordado ou não 
Devia entrar na linha 
Mas vou ficar aqui com o meu cão 
Sonhei com a minha vizinha 
Mas o sonho é só já um borrão 
Se a minha memoria é minha 
Devia mandar nela, mas não 
Vou-me levantar sem saber que fazer ou ficar deitado até me apetecer
Devia ser tudo o que não posso ser ou ser dono da memoria e saber esquecer 
Mas esquecer e lembrar são manobras e voltas e tudo parece magia 
E hoje parecem soldados da tristeza e eu escravo da melancolia

Vai... voltar a aparecer
Vai... voltar a passar
Vou voltar a esquecer 
Até deixar de voltar

Tenho uma fome calada 
E mais fraca que a minha vontade 
Não é não querer fazer nada 
É ter mais tristeza do que liberdade 
Queria sair deste estado 
Mas não sai este estado de mim 
E vou com andar arrastado 
Sem destino, andar por aí 
Há tantas paisagens no mundo 
Mas só vejo onde a tristeza mora 
Caí num poço tão fundo 
Já não consigo olhar lá para fora

Vai... voltar a aparecer
Vai... voltar a passar
Vou voltar a esquecer 
Até deixar de voltar (bis)"

Letra, música, voz, produção de:
LAU (Rafael Augusto)


quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Da Linguagem


por José Pais de Carvalho

Pelo que vivi e me pergunto - o que falo? - Reparo que a linguagem é uma expressão de como apercebo o mundo a partir de como sou, dos meus caracteres,  tendências e consciência, e revela-se pela acção na reciprocidade.
Esta acção encerra em si um poder expresso magnificamente num ditado que diz: “Quem com ferro fere com ferro será ferido”, ou seja, recebemos aquilo que damos. Esse poder subordina as causas, condições e mudanças a todos os níveis no ser humano. De alguma maneira, manifesta-se através da consciência.  Permite-nos, então, dizer que a consciência que tínhamos do mundo na adolescência, por exemplo, não é a mesma que, com a experiência adquirida na vida, temos na idade adulta. Portanto é visível como a consciência tem uma continuidade, sendo consequência do instante anterior.
Essa reciprocidade passa-se connosco a diferentes níveis, e também na linguagem. Somos seres que nos definimos através de processos de relação. As nossas identidades são impossíveis de se descreverem por si próprias, mas tão somente como forma de relação. A linguagem no seu sentido mais amplo é, pois, a forma de nos inter-relacionarmos. É o sistema que usamos para comunicar. A sua função expressa-se pela maneira como cada pessoa organiza consciente e inconscientemente a sua emocionalidade e escolhe, através da linguagem, a mensagem que quer transmitir.
Esta mensagem  pode ser expressa por diversos modos, quer por imagens, quer por palavras. É, então, num processo de relação, que a linguagem deve ser olhada, sendo o conceito (conteúdo da mensagem) a manifestação da expressão de uma  construção mental/emocional que, por sua vez, já  é uma representação individual ou coletiva, orientada pelas palavras ou imagens que o constituem. Concluindo, o conceito constituiu o objecto da representação da linguagem, e o que apreendemos é diferente do que é apercebido. Ou seja, é consequência do não reconhecimento da nossa identidade e das vicissitudes do puro acto de criação, portanto tem caráter ilusório, distante da Verdade.
O conceito, na sua maior abrangência, quer dizer: tudo o que se concebe. Como tal, deve ser compreendido como construção mental. Através  da palavra, da imagem ou outros transmite  a representação das qualidades e as características que o compõem.
O conceito, quando proferido, escoa-se por si só, quer pelo tempo, quer confrontado com outro conceito. E é esta a sua contradição e a sua brevidade.
Contradição, porque é sujeito a reformulações, senão antíteses; brevidade, porque não tem uma causa substancial.
Mas é na representação do conceito representado que a linguagem encontra as maiores dificuldades, porque, pela sua natureza, a representação também não tem existência própria, mas, antes, uma existência relativa. A representação, que, em si, é a expressão do que é já projectado (o conceito), funciona em relação a um ponto de referência externo, onde o conceito representado (construção mental) não é mais do que uma projecção daquilo que não é passível de se entender corretamente (consequência da visão dualista). Daqui o facto de ser discriminatório e estar sujeito a ser constantemente aceito ou rejeitado. E este é o paradoxo e o limite do pensamento lógico e dualista.
Esse pensamento induz-nos a dissociarmo-nos da nossa emocionalidade ao invés de nos dissociarmos das nossas emoções, e leva-nos à necessidade de estarmos permanentemente a analisar, a validar e a confirmar as nossas razões para justificar a existência,  criando uma falsa imagem do que tomamos por realidade  e  dando-nos uma versão fragmentada e individualista de nós e do mundo como consequência do não reconhecimento dessa força impulsionadora a que chamamos Vida. A linguagem, em sua linearidade, é, pois, o veículo do pensamento dualista, intelectual, e é incapaz de unificar.
Mas a linguagem vai além da fala e da escrita. Poderemos dizer que a percepção (que tem como significado: acto ou efeito de perceber; recepção) e a sensação são alguns dos aspectos que captamos e estão além da palavra, dos quais destaco dois possíveis de se reconhecerem por todos nós.
O 1º, como consequência da nossa experiência. O 2º, como consequência do poder expresso pela nossa consciência ou pela nossa visão particular.
No 1º caso, o que sei e o leitor sabe, pelo que vivemos e porque chegámos a uma mesma conclusão, fruto da nossa experiência, encontrámos a mesma verdade, e por isto nos é comum o seu reconhecimento. Não precisaremos de palavras para descrevermos a realidade. Basta-nos o silêncio quando, nós dois,  simultaneamente, deparamo-nos perante estas condições e situações externas específicas.
 No 2º caso, não pegamos num ferro em fogo porque sabemos que nos queimamos. Ao depararmo-nos com este facto, surge em nós uma neutralidade, até não consciente. Por fracções de segundos, ao olharmos o ferro, ficamos livres de qualquer juízo, sem algum conceito ou emoção, senão em silêncio.
É um momento de receptividade, nada nos leva a formular qualquer acção. Aceitámos a realidade com que nos confrontámos.
De idêntica maneira, o mesmo acontece-nos no dia a dia e, sem nos apercebermos, sem tomarmos posições de qualquer espécie, num repente, encontramos as coisas que nos preenchem, o êxito numa tarefa, um namorado novo ou namorada; quando menos o esperamos, o telefone a tocar no momento em que pensamos em alguém. E esse é o acto de criar. Manifesta-se pela satisfação - a satisfação interior -, a que não está sujeita à satisfação dos cinco sentidos e que os artistas conhecem bem e o público que aprecia as obras de arte reconhece.
A arte é, pois, esta expressão da criação e, a receptividade, a qualidade da percepção e da sensação. Quanto  mais livre da conceptualidade e das referências externas estiverem os nossos pensamentos e as nossas emoções, mais acessível será o nosso entendimento e comprensão, e maior é a expressão artística.
Compreendermos  como os dois casos descritos acima se inter-relacionam indissociáveis no nosso âmago permitem-nos enxergar como a mente intelectual, lógica e dualista, quando sobrevalorizada, tal e qual o fazemos nos nossos dias, acaba-se por tornar a semente das nossas ilusões. Dependerá o  entendimento do que foi dito, então, de um só aspecto: do nosso grau de discernimento.

José Pais de Carvalho
Sintra, 2015

terça-feira, 27 de setembro de 2016

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

A BOTA E O QUATRO


A política, em Portugal, faz-se em surdina. 
Foi o que se passou, por exemplo, no caso da oferta das Lajes para a cimeira entre o Presidente Bush e os Primeiros-Ministros Tony Blair e José Maria Aznar ou com o mais recente voto favorável ao não cumprimento do Pacto de Estabilidade por parte da Alemanha e da França. Estamos no domínio das decisões tomadas ao arrepio de qualquer troca de impressões estre forças políticas diversas e muito menos com satisfações dadas em público. 
Aos olhos e ouvidos do povo faz-se a chicana que entre nós passa por ser o conteúdo daquela actividade pública. E, cirurgicamente, lá saltam para os media os favorecimentos e as prebendas dadas e conseguidas, os encobrimentos e as ligações duvidosas, quando não as mais torpes insinuações pessoais, naturalmente, caluniosas. 
Não há qualquer visão de estado, qualquer conceito geo-estratégico de fundo para o país e por isso temos um centro de emprego no lugar de uma função pública profissionalizada e uma total ausência de política externa. Em conformidade temos sistemas de saúde porque sim e só temos sistema de ensino porque todos têm e até já vinha de trás. 
E acabámos no jogo do pau mandado. 

Discute-se no parlamento, em comissão parlamentar, quero eu dizer, se as mudanças na legislação sobre o acesso ao ensino superior para os filhos dos diplomatas foram ou não feitas à medida da filha do ex-ministro dos estrangeiros, Martins da Cruz. 

Só assim se compreende que, em tribunal, a defesa dos militares da Brigada de Trânsito de Albufeira que estão a ser julgados por corrupção, tenha alegado a seu favor o facto de terem sido perdoadas multas a um deputado, um magistrado e um embaixador, isto é, alto lá com isso que há muitos como nós. 


O reino do homo maniatábilis só poderia acabar por nos mostrar tristes espectáculos assim. 



E para o pardalito foi o dia de hoje farto em novidades. 
Os alunos aprenderam o número quatro e a palavra bota a respeito do que fizeram exercícios e ilustrações e também o trabalho para casa. 
A minha querida filha não sentiu dificuldades. 



Mais uma crítica contundente às teses de Boaventura Sousa Santos sobre a necessidade de substituirmos a ciência, tal como a conhecemos nos dias que correm. (1) 
Nunca será de mais destacar a importância daquela invenção de que tão bem nos podemos servir para limitar as misérias humanas. 



Há palestinianos e israelitas dialogando na Suíça. 
Se bem que se trate de gente arredada do poder, permite manter acesa, por muito pequena que seja, uma janela de esperança. 


É como uma oração pela paz. 


 Alhos Vedros 
   02/12/2003 


NOTA 

(1) Dias de Deus, João, DA CRÍTICA DA CIÊNCIA À NEGAÇÃO DA CIÊNCIA 


CITAÇÃO BIBLIOGRÁFICA 

Dias de Deus, João, DA CRÍTICA DA CIÊNCIA À NEGAÇÃO DA CIÊNCIA, Prefácio do Autor, Gradiva (1ª. Edição), Lisboa, 2003

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

REAL... IRREAL... SURREAL... (222)

Cidade Imaginada, Autor  António TapadinhasAcrílico sobre Tela, 90x90 cm

Tory

Tory é a independência impossível do sonho
é o sol com asas a poisar no pensamento difícil

Tory é inaudível
como o superego, como os fantasmas
como os homens cada vez mais

Tory é a terra mexida
pelo arado do corpo
ao amanhecer

Tory sou eu a adormecer
no silêncio

In Tory: uma cidade com dois nomes
De José Beiramar


Selecção de António Tapadinhas

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Amoreira, por Miguel Boieiro


Nasci no campo, numa casa de paredes de adobe, telha vã, chão de barro batido, com uma só porta e uma só janela. O quarto tinha uma cortina a separá-lo da cozinha. Não havia eletricidade, nem esgoto, tampouco água canalizada. O poço donde se tirava a água através duma corda de sisal com roldana e um balde zincado ficava a duzentos metros do casebre. Vivi lá até aos quatro anos porque os meus pais finalmente arranjaram (pediram emprestado) 20 contos e com eles compraram um terreno onde construíram uma casa nova com paredes de adobe, chão de barro, sem eletricidade e sem água canalizada. Mas o poço ficava quase encostado à habitação.

Lembro-me de alguns ingénuos episódios de infante, uns com mais nitidez, outros com menos. Por vezes, esgueirava-me da minha humilde moradia para a faustosa quinta do Valbom da família Quintela que ficava mesmo ao lado. Ao pé do palácio, onde hoje existe o pavilhão gimnodesportivo municipal, havia uma enorme amoreira com um dos troncos dispostos na horizontal. E se tal recordo é porque as sensações que aí obtive com quatro anos me marcaram perenemente. Sentava-me no tronco, à sombra da frondosa árvore e fartava-me de saborear as rubras e sumarentas amoras. A outra sensação que me marcou foi a das fartas tareias que apanhei porque o bibe ficava todo cheio de nódoas, impróprio, segundo a minha mãe, para um menino pobre mas asseado.

Começo assim esta croniqueta para realçar que era muito comum haver amoreiras nas quintas da gente rica. Elas proporcionavam uma espécie de estatuto social superior aos seus proprietários. Hoje isso já não acontece. Arrancaram a maior parte das centenárias árvores talvez por ocuparem demasiado espaço e encontraram outras formas de ostentar o seu poder. Adiante!

A Morus spp é uma árvore caducifólia da família das Moraceae proveniente da Ásia que tem mais de cem espécies espalhadas em todo o mundo. Entre nós as variedades mais conhecidas são, consoante os seus frutos, a Morus nigra (amora preta), a Morus alba (amora branca) e a Morus rubra (amora vermelha). Possui folhas alternas, dentadas, ovais ou cordiformes. A árvore, de crescimento rápido e resistente, é monóica o que significa que contém os dois sexos na mesma unidade.

Os frutos da amoreira-negra têm forma alongada, quase desprovidos de pedúnculo, ficando agridoces após a maturação. Os da amoreira-branca são pequenos e muito pedunculados, mais doces e sem qualquer acidez.

Não obstante o potencial das amoras, que à frente pormenorizaremos, as amoreiras lograram importância económica por via das suas folhas, exclusivo alimento dos bichos-da seda. Isso, creio que toda a gente sabe. Interessa agora analisar as virtudes da planta no campo da fitoterapia.

As amoras são ricas em vitaminas, sobretudo a vitamina C. Possuem açúcares, ferro, cálcio, fósforo, magnésio, potássio, ácido málico, pectina, betacaroteno, tanino, essências e altas taxas de antioxidantes. Foi recentemente detetada a existência de resveratrol, importante polifenol que favorece a produção de colesterol HDL e previne as doenças cardiovasculares.

Os saborosos frutos são tónicos, refrigerantes, laxativos, excelentes para debelar constipações, gripes, tosses, dores de garganta e anemias. Regularizam o funcionamento dos intestinos e possuem ação contra o envelhecimento.

Em culinária são vastas as hipóteses de utilização: bolos, sorvetes, geleias, doces cristalizados, licores, xaropes e compotas. Temos feito compotas de amoras brancas que requerem paciência para lhes retirarmos os pedúnculos.

 Parece, no entanto, que são as folhas que se encontram atualmente na moda e constituem algo de milagroso. Descobriram que o “chá” das folhas é muito eficaz para aliviar os problemas da menopausa (e porque não também da andropausa?). Para além disso, combate a hipertensão, desinflama os pulmões e alivia os transtornos respiratórios, as dores de cabeça, as insónias, a depressão, a diabetes e a osteoporose.
E vejam lá, os rebentos tenros são edíveis!

Para terminar e à laia de curiosidade, eis uma tisana antiga para a sarna, extraída da “Medicina pelas Plantas” do Dr. Oliveira Feijão: cozimento concentrado das folhas secas e das cascas (60 g para um litro de água) a que se adiciona raiz de romãzeira. Aplicar topicamente.


Miguel Boieiro

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Agostinho da Silva, Joaquim de Flora e a demanda do Divino


NOTA PRÉVIA

Sabemos hoje, pelos estudos de Anita Novinsky e da escola de estudos judaicos que criou na Universidade de São Paulo, que a construção do Brasil foi sobretudo obra de cristãos-novos fugidos à Inquisição. Bahia, Pernambuco, São Paulo são, desde muito cedo, pólos de proliferação marrana. A esta luz, creio eu, haverá que reequacionar a propagação do culto popular do Espírito Santo em solo brasileiro.
Falemos entretanto de gigantes. O grande Raposo Tavares, o maior dos bandeirantes, confessou matar em nome da lei de Moisés. Um antepassado de Fernando Pessoa andou por terras de Vera Cruz durante vinte e cinco anos e acabou reduzido a cinzas num auto-de-fé lisboeta. Anita Novinsky lembra, a propósito, que os versos de Álvaro de Campos ganham toda uma outra significação a esta luz.
Entre nós, apesar dos estudos de Moisés Espírito Santo, Jorge Martins ou Maria Helena Carvalho dos Santos, entre outros, muitos continuam a varrer o judaísmo português – e essa sua tão problemática como original metamorfose que foi e é o marranismo – para debaixo de um tapete. O Dicionário Essencial da Língua Portuguesa, denuncia Jorge Martins, não diccionariza a palavra judeu, mas não esquece os termos cristão e muçulmano. E o editor literário dos Apólogos Dialogais de Dom Francisco Manuel de Melo, fazendo quanto pode, ao abordar o Tratado da Ciência Cabala, para afastar o Melodino da pista judaica, cita inúmeras vezes a monumental biografia que Edgar Prestage dedicou ao seiscentista, mas esquece que a páginas 285 desse livro se refere a ascendência judaica do polígrafo, cristão-novo pelo lado materno.
O texto que agora se publica, desprovido de referências bibliográficas e passível de revisão em ordem à sua publicação, corresponde ao que disse no passado sábado na Sala dos Actos da Câmara Municipal de Alenquer, no decurso do Congresso Internacional do Espírito Santo. Como levo Agostinho da Silva bem a sério, há muito que interiorizei a velha máxima do seu alter ego Kertchy Navarro: só pode ser seu discípulo quem for contra ele. Não se trata, pela minha parte, de um propósito deliberado ou programático, mas tão-somente de manifestar franca e lealmente as discordâncias que mantenho com o Estranhíssimo Colosso no que respeita à sua visão do culto popular do Divino. Agostinho da Silva é porventura, a meu parecer, o mais complexo – e porventura o mais estimulante – caso de marranismo da cultura portuguesa do século XX, porque é aquele em que o dramatismo do ser dividido alcança o seu paroxismo, sempre em busca daquela síntese de que falava António Telmo e que o conduz a um novo e superior entendimento da religião. Não por acaso, na sua última entrevista de imprensa, frisava já o pensador, muito judaicamente, que o culto era “apenas” o culto da obra do Divino. Claro que isto pode brigar com a visão joaquimita que, nessa mesma entrevista, parece manter da festa do Império. Que o debate prossiga…   



Agostinho da Silva, Joaquim de Flora e a demanda do Divino
Pedro Martins           

1. Agostinho da Silva pode ser considerado um pensador neojoaquimita, inscrito n’a posteridade espiritual de Joaquim de Flora, tal como Henri de Lubac a entendeu na monumental obra homónima, por ter recolhido «a ideia fundamental que Joaquim havia retirado da sua exegese: a de um «terceiro estado» a vir, no tempo e sobre esta terra, que seria a Idade do Espírito». O portuense, para quem «só pela teologia se poderá compreender a História», vai consequentemente adoptar e adaptar a tripartição do movimento histórico do monge calabrês. Na reelaboração de Agostinho, os estados triádicos designam-se, correspondentemente, por Idade AntigaIdade Média e Idade Nova. A Idade Antiga termina quando a Igreja institucionalizada muda a face do Império, e isso basta para que a sua Idade Média se inicie muito depois da Idade do Filho de Joaquim, que começou a prosperar com a Encarnação e terá terminado em 1260. A Idade Média agostiniana ainda decorre.
Tal como os primeiros joaquimitas, Agostinho crê, expectante, na iminência da nova era.  Pressente-a pelos sinais, mas não sabe quando, ou onde, se iniciará, o que logo nos recorda a sua Vida de Lamennais, pós-joaquimita a quem Lubac consagra extenso capítulo no seu tratado. Posto que o trilho, fecundo, esteja inexplorado, não me alongarei na análise da influência que Agostinho, manifestamente, recebeu deste seu biografado. Assinalarei, somente, que das diversas fases da obra do francês colheu o português inúmeros contributos, incorporados na formação diacrónica do seu neojoaquimismo, pela revelação de uma experiência dramática com seu quê de comparável à evolução espiritual que irá viver, e que parece dar razão a Henry Corbin quando afirma que é no interior hierofânico de cada alma, e não na imanência do tempo histórico, que a Igreja de João sucede à de Pedro.

2. Nos escritos numerosos que, após o retorno a Portugal, em 1969, Agostinho dedica ao culto popular do Espírito Santo, não encontramos já a perspectiva crítica da heresia de Joaquim vigente na fase brasileira. Nesta, em que define e apura a estruturação principial, axiológica e cronológica das três Idades, não deixa o filósofo de censurar a audácia joaquimita. Repele-lhe o corolário do desaparecimento da Igreja institucional, à vista da injunção que, no rigor dogmático da teologia católica, determina a coeternidade das hipóstases trinitárias. No intuito de aproveitar a conveniente sedução do esquema joaquimita, surpreende-se o afã de Agostinho na reelaboração da “Terceira revelação”. Num escrito de Só Ajustamentos que a toma por título, fá-la refluir ao recesso psíquico da individualidade, resguardando-a de vicissitudes sociológicas, no que antecipa a abordagem angelológica, já aflorada, que Henry Corbin, no início dos anos 70, propõe do joaquimismo para o preservar da mácula imanente da mundanidade.
Posto que Lubac o omita a esse respeito, é possível incluir a leitura de Corbin nas interpretações «diversamente minimizantes», porém «dificilmente conciliáveis», do pensamento joaquimita que o cardeal agrupa pela comunidade do esforço com que buscam atenuar a «violenta interpretação» textual operada por Joaquim e «reconduzir a ideia da terceira idade a visões mais tradicionais». Encontramos, aliás, nestas palavras de Lubac uma síntese que se aproxima da tese de Corbin:

Para outros, sob a exterioridade de um desenvolvimento histórico, Joaquim teria simplesmente querido enumerar as etapas ascendentes da vida espiritual; as figuras do Liber Figurarum, considerado autêntico, sugeririam três fases místicas, mas somente duas idades históricas, antes e depois de Jesus Cristo.
  
Se bem que, pelo propósito operativo, transcenda a hermenêutica restritiva de Corbin, Agostinho, de alguma sorte, navega, por esses anos, nas mesmas águas. «A terceira revelação», escreve,

é a da íntima e profunda e secreta relação de cada um consigo próprio. Como poderia ela vir de fora com um pregador, um anunciador, um evangelista, que eu e os outros pudéssemos ver com os nossos olhos de carne e pudéssemos arquivar nos pobres e falíveis anais da nossa história? Cristo foi o mensageiro último de que os homens puderam ser testemunhas. O que não quer dizer que tivesse sido a última mensagem.

Ao dealbar a década de 60, em “Considerando o Quinto Império”, reformula essa revelação pelo anúncio «de que a criança deve ser o modelo de vida e que por ela se estabelecerá na terra o Reino do Espírito Santo». Por muito que se queira aproximar esta criança divinizada dos viri spiritualis de Joaquim, será forçoso reconhecer quão longe estamos já do visionário calabrês. Na recusa da heresia joaquimita desenha-se a invenção agostiniana.
Educação de Portugal, escrita logo em 1970, inaugura uma fase de reconciliação com o joaquimismo. Ainda quando assinala a heresia, Agostinho limita-se a identificar-lhe os termos, sem tomar outro partido que não seja o de se conformar com o bom abade. Compreende-se. No iter evolutivo do seu pensamento, já a Liberdade sobreleva a Fraternidade, afrouxando os ditames de submissão hierárquica que esta, sob pena de quebra, opressivamente predispunha.

3. Parte do que Agostinho afirma do culto popular do Espírito Santo levanta-nos problemas pelos seus frágeis fundamentos históricos e etnológicos. Afeiçoada a ciência dos factos aos prejuízos do profeta, só como recriação mítica poderemos considerar sem mácula a sua invenção poética. 
 A problemática concepção agostiniana, bem patente e insistente em escritos vários dos anos 80, mas já amplamente desenvolvida no artigo “Algumas considerações sobre o culto popular do Espírito Santo”, de 1967, advém do modo como relaciona o culto com o joaquimismo, supostamente chegado a Portugal no reinado de D. Dinis, pela mão de Isabel e dos franciscanos espirituais que a acompanharam.
Diz Agostinho que «logo que a nova rainha ocupou a vila de Alenquer, seu presente de noivado, surge em Portugal, espalhando-se rapidamente por todo o País, o culto popular do Espírito Santo ou do Divino». Diz também que,

na sua forma mais perfeita, consistia a Festa, celebrada por altura do Pentecostes, na coroação de um imperador do Império do Espírito Santo, geralmente uma criança, na celebração de um banquete ritual, gratuito para todos que o quisessem, e no libertarem-se presos da cadeia local.

E acrescenta:

Com a Contra-Reforma, de estrita ortodoxia, o culto declinou rapidamente em Portugal continental, dele só restando vestígios, mas algumas ideias fundamentais aparecem em escritores como Fernão Lopes, Camões, Vieira e Fernando Pessoa, e cerimónias populares são ainda vivas nos Açores, na Madeira e no Brasil.

No texto citado, “O homem e as civilizações”, embora reconheça, pensando talvez em Prisciliano, que se terão «agregado à concepção de Joaquim de Flora elementos de origem mais antiga que faziam parte da vivência do povo», Agostinho, como vimos, afirma que foi em Alenquer, e com a nova rainha, que o culto surgiu.
Moisés Espírito Santo, nas Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa, lembra, porém, que certas capelas beirãs do Espírito Santo já existiam quando Isabel nasceu; e que Rocha Beirante, no seu Santarém Quinhentista, «diz igualmente que o culto do Espírito Santo em Santarém é anterior à Rainha Santa». No mais, o autor sublinha uma evidência:

Os cultos populares não são, nem nunca foram, nem poderão ser, «instituídos» por decreto ou pela boa-vontade de uma pessoa, seja ela rainha, beata ou santa. Certos autores tomam as sociedades e as culturas por multidões descerebradas que se põem a cultuar um deus por ordem ou a pedido de um rei ou governante. É possível imaginar um dirigente ou monarca, ou as respectivas esposas, a decretar um ritual, a ordem das procissões, os dizeres dos pendões? Como se os povos precisassem das directivas dos dirigentes para fazer a sua festa! Os rituais, como as religiões, obedecem exclusivamente aos ditames e à dinâmica da cultura e sempre inseridos na tradição. Aquela paternidade é uma invenção de Frei Manuel da Esperança, cronista da Ordem franciscana. No «dia da fundação», em Alenquer, a Rainha Santa até teria cercado a vila com um «pavio de cera a arder, o qual, preso à igreja do Espírito Santo, dava a volta à vila»… (Invenção milagrosa! Como pode um pavio de cera arder nestas circunstâncias?) Os informantes do cronista teriam referido «um círio», não «um pavio»; um círio é a deslocação de uma povoação, atrás de um pendão, a um lugar santo em obediência a um voto antigo, podendo tomar a forma de uma procissão; o círio de Alenquer dava a volta à vila a partir da capela.   

Diferente será afirmar que o patrocínio régio possa ter contribuído para a institucionalização do culto popular, conferindo-lhe «um aparato nunca antes visto», como acentua Manuel J. Gandra. Nesta linha, admitamos, como hipótese de raciocínio, que com Dinis e Isabel se tenham insinuado laivos de joaquimismo no ritual da Festa do Império, ficando, porém, por averiguar, se, e em que medida, o culto assim afeiçoado irradiou em território nacional, notadamente por efeito da acção real.
A respeito do elo que supõe ligar o joaquimismo à festa do Império, Agostinho, de ordinário assertivo, denota cautela. Pelo menos nas “Dez Notas…” de 1985, onde começa por afirmar que «parece assente, sob o ponto de vista histórico, que o Culto Popular do Espírito Santo (…) tem sua origem no pensamento de Joaquim de Flora», para, mais à frente, não deixar de reconhecer que

da questão teológica não há, como era de esperar, nenhum vestígio no Culto Popular, a não ser que a Igreja, sobretudo depois de Trento, sempre fez todo o possível por eliminar o Culto. Mas nada nos garante que não haja entre essa ideia fundamental de Joaquim de Flora e as vivências do Povo de Portugal um elo da maior importância, que por outro lado se liga, ao que penso, ao problema da existência ou não existência de pensamento filosófico na Cultura Portuguesa, quer nos intelectuais quer no Povo.

Concluindo pela usual resposta negativa a esta sua velha questão, porque, «para o Português, o importante não é a Filosofia, é a Vida, com toda a sua variedade e todas as suas contradições, que pode não aceitar, mas corajosamente assume», o pensador atribui em seguida aos «certamente analfabetos portugueses» a façanha de resolverem, no contexto «concreto» em que se moviam, os «problemas de bem difícil contexto teológico e filosófico» em cuja solução não foram tão longe «os atilados, inspirados e eruditos teólogos».
Que solução foi essa? Uma «popular intuição»: «o estabelecer-se um Império do Espírito Santo» não «implicava o desaparecimento da Igreja de Cristo; Deus se revelaria sempre trino em cada uma das Pessoas que nele haveria que distinguir, tanto no Eterno como no Tempo, e até, talvez, haveria uma Divina Igreja cada vez mais se alargando no domínio dos fenómenos, cada vez abrangendo maior número de homens».
Fica por saber o que, sem o desaparecimento da Igreja de Cristo, resta afinal do problemático joaquimismo. Quando, em seguida, concretiza as feições da nova idade histórica tal como os portugueses a teriam visionado, depara-se-nos o intuito de, «sem quebra com a Igreja, ou as Igrejas, anteriores, levar esta última, verdadeiramente católica ou universal, ao todo da Ecúmena». Reincidindo nas ideias medievas da sua fase brasileira, Agostinho apresenta-nos um proselitismo de conversão mais paraclético do que cristológico, desta sorte favorecido pelo desvio da ênfase para a unidade essente do Espírito. 
Fica, sobretudo, por entender o prodígio dessa intuição, que não se vislumbra possível sem o conhecimento dos termos – filosóficos e teológicos – do problema a resolver. Na obra já citada, conta Moisés Espírito Santo como «Frei Bartolomeu dos Mártires deplorava a ignorância dos Minhotos que pensavam cair nas boas graças do bispo saindo ao seu encontro a gritar «Viva a Santíssima Trindade, que é irmã de Nossa Senhora!». E acrescenta:

Na região da Batalha, onde se celebra, pelo menos desde o século XV, um importante e imponente bodo de pão «contra as formigas», em honra da Santíssima Trindade, supõe-se que o ente a quem se dirige o culto é «uma santa mais importante do que as outras», pois é tratada no superlativo e tem um nome feminino. Na percepção religiosa dos Beirões, nem sequer está implícito que Deus seja eterno, porque se ouve dizer com a maior das canduras: «Isto já vem dos tempos antigos, ainda Deus não era nascido.» Jesus Cristo é a única expressão de Deus. Para dois mil anos de cristianismo, o balanço não é encorajador!

Ainda segundo o etnólogo, episódio convergente foi vivido por Jaime Cortesão, ao verificar ocasionalmente que, perante uma escultura da Santíssima Trindade, impropriamente chamada do Espírito Santo, os fiéis não identificavam este último

com a pomba, mas com o Ancião de barbas onduladas, coroado, e de semblante carregado, que sustém a cruz nas mãos. Jaime Cortesão apercebeu-se bem desse importante pormenor; notou o facto mas, segundo ele próprio diz, não entendeu a razão. A razão é esta: para os Judeus-secretos, o Espírito Santo equivale a Yaveh, que é o ancião da escultura.

Eis o motivo por que Agostinho não encontrou no culto popular do Espírito Santo vestígios da questão teológica suscitada pela heresia joaquimita: nunca ali terão estado presentes. Escreve Moisés Espírito Santo: «O culto vem directa e inteiramente da tradição hebraica». Acto contínuo, enfatiza: «O Espírito Santo dos cultos populares não é a terceira pessoa da Trindade Cristã». É, sim, conformemente àquela tradição, a força ou princípio vital que enforma, sustenta e renova o Universo, tão certo ser o judaísmo o culto que electivamente se dirige ao aspecto criador da Divindade: os Elohim que, no Genesis, proclamam a bondade da criação.
A argumentação do etnólogo é opulenta e tendencialmente exaustiva, como se verifica pela leitura do seu estudo, escorado no fundo conhecimento das religiões e da tradição etnográfica e num trabalho de campo desenvolvido na década de 80, sobretudo nas regiões de Leiria e da Beira Baixa, reconhecidos pólos de proliferação judaica onde, no terreno, registou fenómenos cultuais persistindo pelos séculos.
Não obstante, Agostinho, na mesma época, parece apenas levar em conta o culto do Divino nos Açores, de resto de origem beirã. É possível que esta redução influencie o erro de, em “O Império do Passado e do Futuro”, afirmar que «logo», isto é, desde a suposta criação da festa do Império pela Rainha Santa Isabel, o povo coroou «seu real monarca a genial imaginação da criança, sufocada por escola alguma», depois de, como se viu, ajuizar que isso sucedia «geralmente».
Não há notícia histórica da coroação de um menino nos primórdios do culto. Por longo tempo, coroaram-se adultos – homens do povo, gente de baixa condição – sem que se possa asseverar quando e por que razão surge a criança no centro da cerimónia. Segundo António Quadros, nas Festas do Penedo, em Sintra, ainda activas no século passado, «as coroas (feitas inicialmente para adultos), são grandes demais para os meninos Imperadores, pelo que há sempre pessoas que as seguram, simulando-se no entanto que estão colocadas nas cabeças das crianças».
Noutros lugares, como Alcabideche, onde as festas perduraram até ao princípio do século XX, continuaram os adultos a ser coroados. Em Nisa, no século XIX, o imperador era um mancebo. No litoral, como na Beira Baixa, Moisés Espírito Santo mostra ser regra a coroação de um «benfeitor» – um emigrante que enriqueceu, um homem próspero da aldeia – como imperador ou juiz.
Por que surge a criança coroada? Não se sabe. Mas parece insustentável a razão sugerida por Agostinho, na qual, aliás, suspeito existir anacrónica projecção da sua pedagogia.
Este intento parece tê-lo conduzido à perigosa inversão simbólica concretizada pela divinização da criança. Sempre Agostinho se mostrou pouco atreito ao sério código ocultista. Daí, a meu ver, a dificuldade do seu ecumenismo em superar os dogmas. Se assim se pode dizer, é um exoterismo sem esoterismo. A boa vontade, decerto louvável, é precária.
Vem a propósito o seu ensaio “De como os Portugueses retomaram a Ilha dos Amores”, onde emerge a figura, jocosa e dúbia, do estucador de Alpiarça, um pobre diabo que replica António Telmo. Não terá Camões, como pretende Agostinho, aludido a Zoroastro ou à Cabala (que implica sobretudo Fiama)? Com respeito àquele, e embora o tenha feito, por mais de uma vez, como Telmo mostrou, não precisaria sequer de o fazer. Bastava-lhe a insólita atenção à «matéria perigosa» do cristianismo gnóstico de Tomé, com a qual pôde Telmo, no Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, encontrar um elo de ligação entre a Pérsia e o priscilianismo.
Esqueceu-se Agostinho do que talvez soubesse por René Guénon: as verdades tradicionais não se escancaram. Revelam-se. Mostram-se para se ocultar. É da natureza das coisas: esotérico quer dizer interior. E Guénon adita razões de defesa: da doutrina e do iniciado. Se é preceito evangélico não dar pérolas a porcos, seria insânia oferecê-las aos monstros do Palácio dos Estaus. Agostinho passa como cão por vinha vindimada perante o labor probatório do discípulo, que, como o de Fiama, é plausível quando não é inequívoco.
Para ele tudo vem já do fundo cultural inato dessa improvável abstracção a que chamou Portugal, «como se tudo o atribuído a persas, indianos ou judeus fosse do tesouro, comum e nativo, dos portugueses de todos os tempos». Curiosamente, relançando antiga freima, reincide na sugestão de que Camões, na Ilha dos Amores, sofreu a influência de Joaquim de Flora, porque ali soube congraçar o tempo com a eternidade, «como se a nossa peça fundamental» – escreve – «embora com personagens diferentes, uns eternos, outros perituros, se representasse em dois palcos da mais exacta correspondência», com o que Camões daria expressão a um conceito «tão da natureza do povo de Portugal que imediato o inseriu em sua religião popular».
Colossal estranheza! Se realmente sabemos do encontro do tempo e da eternidade na Ilha, foi porque Telmo, vivendo a verdade do símbolo sob o signo de Hermes, o demonstrou numa leitura aguda e arguta, que reconduz o desenrolar da «peça» ao palco luminoso do mundus imaginalis, onde os espíritos se corporizam e os corpos se espiritualizam.
Desprovida daquela acuidade que só a exacção da letra, na extensão do texto e no contexto do entrecho, à vista de uma significação global, permite garantir, a leitura agostiniana da Ilha instituiu uma vaga alegoria: rochedo batido pelas ondas do providencialismo no oceano das ideias. Tudo isto é irónico em quem conviveu com Eudoro e recomendou a Telmo a leitura de Américo Castro e Henry Corbin…
Num ensaio que dediquei ao presumível marranismo de Agostinho, avancei a hipótese, congruente com o criptojudaísmo do culto, de a coroação do Menino traduzir a intromissão, no cerimonial, da figura de Metatron, o Anjo da Face da kabbalah que Telmo viu cifrado no Portal Sul dos Jerónimos. «Tal é a razão», ensina André Benzimra, «pela qual se lhe dá o nome de pequeno YHVH. E se ele é representado sob os traços de um adolescente, é para se significar que se trata de um Deus ainda na infância.» Intermediário celeste, mediador do Céu e da Terra e irmão-gémeo da Shekinah, responde ainda ao nome de Schadaï, que, na lição de Benzimra, é «o federador do Céu e da Terra, o grande Reconciliador de qualquer discórdia», e que, naquele seu outro aspecto a que melhor convém o nome de El-Schadaï, «será chamado a desempenhar um papel primordial nos tempos messiânicos». Numa perspectiva cristo-angelológica Metatron surge, assim, em correspondência com o Espírito Santo.
Aqui, importa de novo citar Moisés Espírito Santo, quando trata da figura do Imperador no culto do Divino: «Os Hebreus não faziam distinção entre Deus de Israel, Rei de Israel, «Anjo do Senhor» ou Enviado de Deus e Messias». Pouco adiante, acrescenta: «O Rei de Israel tanto era o «Anjo de Deus» como o próprio Deus, que toma a figura humana para executar as suas vinganças. Segundo a concepção religiosa dos Semitas, Deus desdobrava-se em personagens terrestres». Por fim, consigna:

É muito significativo que, da região de Leiria à do Fundão, se designe a personagem do imperador, do rei ou do juiz desta cerimónia como o «Espírito Santo», isto é, a sua incarnação ou representação terrestre. O imperador é um sósia ou um duplo do Espírito Santo, do Messias. O ritual constitui assim um anúncio, uma catequização e uma promessa desse evento.

Eis um dos inúmeros argumentos que o etnólogo aduz na demonstração de que o culto popular do Espírito Santo mais não é, entre nós, na sua essência profunda, que uma manifestação críptica das celebrações do Pentecostes judaico.
Esboço um sorriso, ao ler, em Reflexão à margem da Literatura Portuguesa, que

os judeus por seu turno não levantavam oposição alguma a assistir reverentemente a esse culto do Espírito Santo, o qual, como já foi dito, descera em novo Pentecostes sobre a nação portuguesa, sagrando-a para seu apostolado.

Não preciso de explicar por quê.
           
Alenquer, 17 de Setembro de 2016.


Ler mais: http://www.antonio-telmo-vida-e-obra.pt/news/universo-telmico-41/

terça-feira, 20 de setembro de 2016

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

REAL... IRREAL... SURREAL... (221)

Graffiti de Basquiat

Acusam-me de Mágoa e Desalento
Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.

Carlos de Oliveira, in 'Mãe Pobre' 


Selecção de António Tapadinhas

domingo, 18 de setembro de 2016

«CONTOS SECRETOS» DE ANTÓNIO TELMO CHEGAM ÀS BERTRAND E ÀS FNAC


Contos Secretos seguidos de A Goga, Volume V das Obras Completas de António Telmo, editado pela Zéfiro com o apoio institucional e científico do Projecto António Telmo. Vida e Obra, acaba de chegar às principais cadeias portuguesas de comércio livreiro. Prefaciado por Miguel Real, e com um posfácio de Antónhio Carlos Carvalho sobre a figura de Isaac Abravanel, este novo volume da opera omnia oferece ao leitor a publicação de duas peças de teatro inéditas, A Goga A Venda dos Painéis, esta última inacabada. Continua assim a ser reposto no mercado o cânone télmico publicado em vida do filósofo, ao mesmo tempo que do seu espólio vão sendo exumadas centenas de páginas que eram desconhecidas. Mais do que um compromisso com o passado, a perpetuidade de um autor é um olhar para o futuro, com espírito de serviço e sentido de responsabilidade. Porque um filósofo não é propriedade de ninguém.  

Ler mais: http://www.antonio-telmo-vida-e-obra.pt/news/contos-secretos-de-antonio-telmo-chegam-as-bertrand-e-as-fnac/

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Versículos


(Mantras)
As palavras são
a  vibração da vibração.
Verbo(s).


(Luz)
Um retrato é uma invenção…
maravilhosa.
Depende da regulação
da velocidade do disparo
da abertura do diafragma.
Luz e sombra,
impressão de Luz.


(arco-íris)
Pela estrada da vida
vamos
em busca do diamante eterno.
Luz.


Luís Santos

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

FILOSOFIA DA FELICIDADE


Neste início de Setembro quando muitos dos meus amigos já regressaram da felicidade das suas merecidas férias aqui fica uma sugestão que partilho convosco para continuar
a alimentar esse anseio de todos nós, A FELICIDADE, que poderão ver no poema formatado, neste link:

http://www.euclidescavaco.com/Poemas_Ilustrados/Filosofia_da_Felicidade/index.htm

Desejos duma semana repleta de FELICIDADE.

Euclides Cavaco
cavaco@sympatico.ca
www.euclidescavaco.com


quarta-feira, 14 de setembro de 2016

De Angola, algumas histórias


por Francisco Gomes Amorim

1.- História quase triste
A Crise do Congo ex-belga entre 1960-1966 foi um período de imensa agitação que terminou com a tomada do poder por Mobutu. A crise tomou várias formas, entre elas as lutas anticoloniais (de uma forma geral os belgas eram detestados), conflitos tribais, uma guerra separatista no Katanga, um descalabro, com uma onda de violência e de selvajaria assolando todo o país, que causou a morte a mais de 100.000 pessoas.
Os brancos que lá viviam, muitos deles desde nascença, tiveram que fugir de qualquer modo. A Bélgica mandou buscar os seus súbditos. Portugal parece que até hoje não sabe o que são súbditos!
Um grupo de cerca de uma dúzia de pessoas, em dois jeeps, um deles carregando uma metralhadora, que felizmente não foi utilizada, conseguiu atravessar por pequenas picadas até Angola.
Desse grupo fez parte um casal, com dois filhos pequenos. Ele dizia que tinha trabalhado numa fábrica de cerveja e foi pedir emprego na Cuca, onde foi admitido para um departamento que se criou, de estatística.
Calado, cumpridor, mas sempre um ar de infelicidade. Volta e meia não ia trabalhar. O seu abatimento psíquico não recuperava com facilidade. Tudo quanto tinham haviam perdido. Agora estavam mais tranquilos, vida a refazer-se, crianças na escola, apesar de em Angola ter já começado o “terrorismo” que não se fazia sentir em Luanda.
Um belo dia o Dias – era este o seu sobrenome – sentiu-se pior e foi internado na casa de saúde com quem a Cuca tinha convénio.
Fomos visitá-lo. Estava abatido e o médico, um coimbrão inveterado, tratava-o de transtornos psíquicos. Todos os dias procurávamos saber da sua saúde, sem receber nenhuma notícia de melhora.
Uma tarde, estava eu a entrar para o meu carro para seguir para Nova Lisboa (Huambo) o porteiro vem a correr dizer que a esposa do sr. Dias queria falar comigo e era muito urgente. Fui atender.
“Só para informar que vou levar o meu marido para casa. Assim ele morre ao pé da mulher e dos filhos.”
Fiquei aterrado! O que se passaria? Ela disse que o médico não o tratava, que ela estava a vê-lo definhar e via que ele ia morrer logo.
Pedi-lhe para não fazer nada. “Vou já para aí.”
Já não fiz a viagem para o sul. Pedi na Companhia que procurassem o médico dele e que corresse para a casa de saúde, onde fui encontrar o doente com um aspecto horrível: muito magro, cor acastanhada, sofrendo.
O médico não apareceu; entretanto entrou o diretor da clínica, um bom cirurgião, a quem contei o que se passava. Respondeu-me que era responsabilidade do médico dele.
“Não, não é, doutor. É sua. O senhor é o diretor da clínica, e pode ter a certeza que se acontecer alguma coisa vou processá-los.” Foi ver o doente, e eu ao lado a acompanhar.
Levantou o lençol e viu que a barriga do doente parecia de um defunto. Septicemia, grave. Pediu os exames que deveriam ter sido feitos, e a enfermeira disse que não havia exames!
“Quero os exames.... (uma porção deles) prontos em meia hora. Chame o anestesista, porque vamos ter que operar já. Depois virou-se para mim e disse: “Eu não toco neste doente sem que o médico dele esteja aqui. Porque se ele morrer durante a operação ele é quem vai assumir a culpa.”
Sai um batalhão de gente à procura desse coimbrão. A sala de operações pronta: cirurgião, anestesista, auxiliares, e nada de começar.
O dr. coimbrão avisado da gravidade do caso em vez de ir ver o doente foi ver o futebol! A Académica jogava nesse dia em Luanda contra um clube de Luanda.
Um colega da Cuca descobriu-o ali, agarrou-o por um braço e levou-o para a clínica. Mal entrou puseram-lhe uma máscara, o cirurgião mandou-o ficar num canto, quieto, dizendo-lhe que se acontecesse alguma coisa ele iria ser responsabilizado.
Demorou uma hora a operação e quem estava lá, como a esposa do Dias, e mais dois colegas da Cuca, num total silêncio. Por fim o médico que o operou sai, chama-me e diz: “Se tivesse sido feito na hora, era uma facadinha e dois pontos. Assim tivemos que cortar um pouco do intestino, limpar tudo, e agora as primeiras 48 horas são fundamentais. Se as vencer pode ser que se recomponha.
Vivemos essas horas num sobressalto. Passadas, o médico volta a dizer que fica mais uma semana na clínica e se tudo correr bem poderá ir para casa!
Santo Deus! Que alívio. O Dias estava fora de perigo. A mulher chorava de comoção e eu consegui seguir para Nova Lisboa.

***
Histórias alegres
2.- O telegrama
Lá por volta do final dos anos 40 ou 50 do finado século XX, foi quando Portugal reparou que tinha territórios excepcionais no ultramar, e começou devagarinho, e a medo, a abrir as portas à “emigração” sobretudo para Angola e Moçambique.
Chamar emigração dentro do mesmo país...
Há absurdos na história que, hoje contados, as pessoas pensam que é mentira, como por exemplo ser necessário para ir para Angola, uma “Carta de chamada”, obrigando-se o “chamador” – empresa – a responsabilizar-se por devolver o cidadão à metrópole em caso de... nem se sabe mais do que!
São histórias que pertencem não ao século findo, mas na verdade aos séculos muito passados!
Vale contar duas historinhas:
- Um jovem português sai do pátrio lar e decide ir para Angola. Os pais, chorosos pedem-lhe insistentemente que assim que lá chegue dê notícias. África ainda era o continente onde cobras e leões se passeavam nas ruas das pequenas cidades, as doenças tropicais grassavam e matavam sem que o doente disso se apercebesse, e o terror ficava na família que, junto à lareira, chorava de saudades à espera de notícias.
O emigrante, a quem chamaremos Nuno (porque precisa de um nome) nunca mais disse nada, e os pais sofriam. A todos os conhecidos e até desconhecidos que iam para aquela terra pediam, pelo amor de Deus e dos anjos, que lhes dessem notícias do filho e, sobretudo, que lhe pedissem para escrever aos pais.
Os portadores dessa incumbência se encontravam ou não o “fugitivo” também pouco ou nada diziam, mas alguns insistiam: “Deixa de ser preguiçoso. Escreve aos teus pais. Estão a ficar velhotes e sofrem muito com a falta de notícias.”
Nuno dizia a tudo que sim, que tinham razão e iria escrever. Mas... nada.  
Um dia, depois de muito instado, Nuno tomou uma atitude heroica, apesar de passados já uns três ou quatro anos depois que chegara a Luanda.
Foi aos correios e mandou um telegrama aos pais:
- CHEGUEI  BEM  STOP  NUNO.
***
3.- O casamento
Outro emigrante, mais ou menos da mesma época. Os pais menos preocupados com o recebimento de notícias, mas com o ambiente que o filho iria encontrar, advertiam:
- Meu filho, quando começares a ver que as mulheres negras afinal não são tão escuras, toma cuidado.
- Meu pai, não precisa se preocupar. Vejo muito bem e jamais irei confundir as cores das peles.
Não passou muito tempo, mas como o Nuno, André, o novo personagem, também não era dado a escritas.
Recebe uma carta do pai que volta a aconselhá-lo que tomasse atenção ao olhar para as mulheres, e... “se vires que estão a ficar mais claras...”
André encheu-se de coragem e respondeu:
“Pai: não precisas ficar preocupado comigo. Sei muito bem distinguir o que me pretendes avisar. Quando aqui cheguei vi milhares de mulheres negras, por todo o lado, o que muito me impressionou. Mas não sei o que passou nesta terra porque desde há algum tempo que não vejo a não ser uma ou outra bem velhinha. De resto, podem não ser louras, mas não encontro mais mulheres negras. Todas têm uma pele linda, clara, muito mais bonita que as trigueiras dessa nossa terra.
E olha pai: já estou casado com uma linda senhora desta terra, tenho um filho, e vivo entusiasmado, para não dizer excitado ao ver todas as outras com quem me cruzo nas ruas, ou encontro nas lojas.”

Era assim.... em Angola.
8 / 09 / 2016