sábado, 13 de novembro de 2021

Literatura: o pão nosso de cada dia (I)

 Luís Souta


«– A literatura é uma doença universal…

o sarampo das crianças e o reumático dos velhos…»

Uma Fábula (o Advogado e o Poeta), Teixeira de Pascoaes


I

O LIVRO E A ESCOLA

As sociedades letradas colocaram o livro como um bem único, central no combate ao esquecimento e na aquisição do saber. O livro é a memória. «O que não se escrever não consta» (Eduarda Dionísio in A Voz da Escrita de LS, p. 314), esvai-se, é como se não tivesse acontecido ou, como diz Italo Calvino, «todas as ‘realidades’ e ‘fantasias’ só podem tomar forma através da escrita» (1990:119). Ou ainda como Jack Goody (1986) demonstrou, a escrita acaba como elemento estruturador da organização social. Esta visão, chegaria ao limite quando Mallarmé, citado por Calvino (id.:166), afirma que «tudo no mundo, existe para acabar num livro». E como bem nos recorda Irene Vallejo (2019:38) «todo o livro é um passaporte sem data de caducidade.»

Quadro, em 3D, de Luana Costa (2021)

É evidente que os livros não são todos iguais, na importância que a sociedade lhes atribui. E que tal hierarquia se altera no curso histórico e no seio das diversas instituições. Numas – as igrejas – aprendia-se a ler para ter acesso aos livros sagrados. Noutras – as escolas – erigiu-se o livro como elemento primordial da sua acção. Era o ‘sagrado’ manual, instrumento básico de apropriação de conhecimentos e fonte de aprendizagem, e que já foi “livro único”, não permitindo outras alternativas, pelo menos no seu seio. Isso nos relembra, por exemplo, a escritora Ester de Lemos:

«Era proibido ler romances no Liceu» (1959:46).

Mas ainda hoje, mesmo nas aulas de Português e Literatura, e por paradoxal que isso pareça, o manual continua a ser “o Livro dos livros”1. Os princípios dominantes nas sociedades de mercado, uma econocracia que tudo transforma em mercadoria, e que procura satisfazer os “clientes” pondo à sua disposição opções credíveis de escolha, chegou também aos materiais escolares. Hoje a multiplicidade de manuais é tal (em formatos vários que vão da vetusta sebenta para decorar ao hodierno livro de fichas para exercitar, a que se juntou o «manual do professor»!) que, em torno dele, gira uma florescente actividade produtiva e comercial que, todos os anos lectivos, tem assegurada uma fatia certa e volumosa de compradores2 (quanto a genuínos leitores já é mais problemático, como o evidenciam as permanentes taxas de insucesso escolar). As editoras escolares são, no panorama editorial português, empresas que não sabem o que é a crise. Os estabelecimentos de ensino têm oficialmente que os adoptar, mesmo que alguns professores prescindam deles na sua actividade lectiva. A selecção de manuais é uma tarefa em que a pressão do marketing e as “contrapartidas” oferecidas pelas editoras acabam por constituir-se como factores condicionantes das opções pedagógicas de selecção3.

Agustina Bessa Luís, em entrevista ao Ensino Magazine (nº 43, Setembro 2001, pp. 1-3.), diz que «ler exige uma elevada concentração e um grande silêncio e não é uma criança qualquer que está em condições adequadas para o fazer.» Estamos cientes que os ambientes físicos, em casa, no trabalho, ou nos transportes públicos são pouco incentivadores a esse recolhimento. O ruído é um dos males das nossas modernas sociedades. Nos lares, os espaços reduzem-se em apartamentos claustrofóbicos, onde o televisor e o rádio, permanentemente ligados, são a ‘companhia’ possível. Mais recentemente, nos transportes públicos, passaram a “dar-nos música” (de fundo) e, para as viagens de longo curso, instalaram-se circuitos de vídeo interno, entrecortados por informações regulares sobre a estação que se segue. Ler, passou a ser uma tarefa cheia de obstáculos e distractores concorrenciais. Nas nossas escolas domina a “cultura do berro”, num barulho permanente (por vezes ensurdecedor) que já não se restringe aos espaços exteriores de recreio:

«O liceu era um inferno de barulho» (José Rodrigues Miguéis, 1973:100).

Dentro dos edifícios, nos corredores, e, pior um pouco, no interior das salas de aula, o ruído ou, na melhor das hipóteses, o burburinho de fundo é a tónica dominante na atmosfera escolar. Restam alguns nichos, onde o silêncio, propiciador de uma leitura concentrada e produtiva, reina – as bibliotecas (e mesmo muitas delas, têm-se vindo a transformar em locais de trabalho de grupo mais do que espaços íntimos e pessoais de pesquisa e leitura). Este clima institucional, reflexo mais uma vez do mundo circundante, denota também, neste domínio, o défice de cidadania. É em escolas onde a vertente de cidadania constitui preocupação constante da equipa docente e, em particular, de quem a dirige, porque inscrita como linha orientadora no seu projecto educativo e nas práticas quotidianas baseadas em metodologias fomentadoras da autonomia e responsabilidade, que se podem encontrar as excepções. Um desses raros exemplos foi-me dado presenciar na Escola da Ponte, em Vila das Aves, que o meu amigo José Pacheco pacientemente erigiu: uma escola de 1º ciclo onde o silêncio, o falar baixo, o tom moderado de voz nos constantes trabalhos em grupo, se impunham; mesmo após o fim das aulas, as tradicionais correrias na saída da escola, acompanhadas de um verbalismo esfuziante, ali não se verificavam. Isto quer dizer que não é assim tão utópico as escolas serem ‘oásis’ em muitas vertentes da sua vida organizacional (há quem prefira chamar-lhe “cultura de resistência”, os mais dados à ideologia, ao combate e à luta).

A mesma Agustina conta, numa outra entrevista, como ficou sem uma empregada doméstica quando esta identificou a sua potencial patroa: «Ai a senhora é a Dona Agustina! Pois fique a saber que para si não trabalho nem morta, porque fui obrigada a ler os seus livros na escola…» (DN, 15/07/00, p. 3, citado no editorial de Carlos Magno). Não se veja neste comportamento um mero caso pessoal, pois já o estudo realizado pelo Observatório das Actividades Culturais, em 1998-99 mas só publicado em 2001, chamava a atenção para o potencial efeito perverso na aquisição de práticas de leitura decorrentes da prescrição escolar da «leitura obrigatória». Para além da aversão e repulsa por essas obras literárias, quantas vezes dissecadas até à exaustão pelos “bisturis” estruturalista e didáctico, o Observatório alerta ainda para o risco que se corre de «diminuir drasticamente a disponibilidade dos jovens estudantes para outro tipo de referências literárias» (DN, 23/04/01, p. 39). Também aqui a diversidade cede ao cânone.

Vasco Graça Moura denunciava, de forma contundente (“Falhanços”, DN, 18/04/01, p. 9), o falhanço da escola no que respeita ao contacto com o livro e ao fomento da leitura: «continua a sair uma gente que já mal sabe falar a sua própria língua, a despreza manifestamente e não é capaz de pensar porque não a domina, uma gente que não conhece um só autor do passado, uma gente a quem não foi incutido o hábito da leitura, e muito menos o prazer da boa leitura, uma gente que nunca aprendeu para que é que serve um livro e quando muito sabe vagamente o que é uma fotocópia».

(continua)

Notas

1. Se era compreensível a importância do manual escolar em épocas de reduzida formação de docentes (por exemplo, aquando das regentes escolares), nos dias de hoje, em que o mestrado constitui a formação base de qualquer professor, já se torna difícil de entender (de acordo com critérios científico-pedagógicos) esta continuada dependência em relação ao manual.

2. No inquérito aos Hábitos de Leitura em Portugal (1997), os livros escolares surgiam em 2º lugar no género de livros mais lidos, com 17,3% (depois dos romances e a par com as enciclopédias/dicionários). Mas já quanto a «géneros de livros possuídos» os escolares (61,9%) e as enciclopédias/dicionários (56,8%) ultrapassam os próprios romances.

3. Só início do ano lectivo 2002-03, o ME decidiu limitar fortemente a acção no interior das escolas dos «promotores de livros escolares» (aparentados aos delegados de propaganda médica).

 

Referências 

CALVINO, Italo (1990) Seis Propostas para o Próximo Milénio (Lições Americanas). Lisboa: Teorema, 3ª edição, 1998.

GOODY, Jack (1986) A lógica da escrita e a organização da sociedade. Lisboa: Edições 70/ Perspectivas do Homem, nº 28, 1987.

LEMOS, Ester de (1959) Companheiros. Lisboa: Edições Ática, 2ª edição, 1962.

MIGUÉIS, José Rodrigues (1973) O Espelho Poliédrico. Lisboa: Estúdios Cor/ Obras de J.R.M., nº 5.

VALLEJO, Irene (2019) O Infinito num Junco. Lisboa: Bertrand Editora, 2020.

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