Fotografia de Duarte Aragão
TEATRO INCLUSIVO
A figura do intérprete-sombra | uma experiência
Barbara Pollastri
Resumo
Em Portugal, ainda são raros os espetáculos teatrais plenamente acessíveis ao público surdo. O espetador surdo, para além de poder desfrutar do espetáculo com interpretação para Língua Gestual Portuguesa (LGP) apenas em horários e datas pré-definidos, é obrigado não só a preocupar-se com a escolha do lugar para ter uma boa visibilidade do intérprete de LGP, como também a deslocar a atenção para o canto do palco de forma a acompanhar a interpretação, perdendo assim o que se está a passar no palco; se isso não bastasse, pode até ter a perceção que a sua presença incomoda, visto que a maioria dos ouvintes dizem-se distraídos pela presença do intérprete no canto do palco, e os próprios encenadores e/ou produtores chegam a recear que a peça seja prejudicada.
Em Portugal, ainda são raros os espetáculos teatrais plenamente acessíveis ao público surdo. O espetador surdo, para além de poder desfrutar do espetáculo com interpretação para Língua Gestual Portuguesa (LGP) apenas em horários e datas pré-definidos, é obrigado não só a preocupar-se com a escolha do lugar para ter uma boa visibilidade do intérprete de LGP, como também a deslocar a atenção para o canto do palco de forma a acompanhar a interpretação, perdendo assim o que se está a passar no palco; se isso não bastasse, pode até ter a perceção que a sua presença incomoda, visto que a maioria dos ouvintes dizem-se distraídos pela presença do intérprete no canto do palco, e os próprios encenadores e/ou produtores chegam a recear que a peça seja prejudicada.
Neste artigo proponho-me estudar a figura do intérprete-sombra,
relatando a experiência pessoal, iniciada ao longo do primeiro período de estágio
profissional como intérprete de Língua Gestual Portuguesa, junto do Centro de Educação
e Desenvolvimento Jacob Rodrigues Pereira, em que tive a possibilidade de
colaborar na realização da peça teatral com atores surdos e ouvintes “A
linguagem do Coração”, baseada na autobiografia de Emmanuelle Laborit — “O
Grito da Gaivota” — criada e encenada por Sofia de Portugal e estreada no Teatro da Trindade por ocasião do Festival
Inclusivo Sounds Like Fest 2017.
A peça de teatro “A Linguagem do Coração” é a prova que é
possível criar grupos de teatro com atores surdos e ouvintes a trabalharem em
conjunto; que a cultura Surda e Ouvinte se enriquecem reciprocamente; assim
como prova que a figura do intérprete-sombra torna o Teatro mais acessível.
Palavras chaves: teatro
inclusivo, LGP, acessibilidade, intérprete-sombra, surdez.
Introdução
Embora haja já exemplos de boas
práticas, são inúmeras as ocasiões em que a inacessibilidade da cultura é uma
temática recorrente no diálogo com a Comunidade Surda. Pedro Costa — atual Presidente
da Federação Portuguesa de Associações de Surdos — diz claramente isso num artigo publicado no
jornal Público:
“A cultura continua a ser uma área maioritariamente
inacessível”, lamenta. Apesar de a LGP estar consagrada na Constituição da
República Portuguesa desde 1997, “continua a existir um desconhecimento sobre
os direitos das pessoas Surdas” (por
Mariana Correia Pinto, 22/10/2016).
Numa
entrevista à Rádio Movimento PT Online (23/05/2018), Artur Albuquerque — intérprete
de LGP— relata um desafio que o marcou para o resto da sua vida. Conta que em
1984 colaborou no projeto da International
Rehabilitation para promover em Portugal a peça de teatro “Os Filhos de um
Deus Menor”, no âmbito da Conferência Internacional. A produção foi então à
procura de alguém que tivesse capacidade de adaptar o texto de uma realidade
norte-americana para uma realidade portuguesa e trabalhar esse texto de
forma que pudesse ser representado em palco com as duas línguas em
simultâneo, LGP e português. “Não tinha a ver com as minhas competências de interpretação,
mas sim com as minhas competências de domínio da Língua Gestual Portuguesa”,
explica o intérprete Artur Albuquerque que teve que ensinar a LGP em meia dúzia
de meses aos atores, ainda por cima “(...) tendo em conta o valor em causa de
transmissão correta daquilo que estava em cima de um palco”. Pela primeira vez
as pessoas surdas, para as quais eram reservados os lugares da frente, chegaram
a levantar-se das cadeiras para interagirem com os atores no decurso do
espetáculo porque estavam a acompanhar a peça de teatro de tal profundidade e
sensibilidade que não se continham. “Foi muito gratificante” e acrescenta que foi
“(...) pena que estivesse tão pouco em cena”, tendo em conta a carga de
trabalho que representou ensinar e aprender a Língua Gestual Portuguesa.
Este
é um exemplo de projeto que evidencia as mais valias que as duas línguas dão ao
espetáculo: por um lado o espetador surdo pode acompanhar a peça de forma mais
intensa, por outro o ouvinte não é incomodado pelos que define como ser “ruído visual”
(intérprete de LGP no canto do palco).
O intérprete-sombra | um elo entre culturas
Nos Estados Unidos, o TerpTheatre,
com a sua modalidade de shadow-interpreting
(interpretação-sombra), associa a cada ator o seu intérprete de língua gestual
que se movimenta com ele, tornando o intérprete parte do universo cénico e
dando vida à figura do intérprete-sombra.
É neste âmbito que se
enquadra a companhia de teatro Wild Swan Theatre, no Michigan (EUA), a qual
trabalha com os intérpretes-sombra desde 1986. Os atores — Hilary Cohen, Sandy
Ryder, Eric Niece, Jeremy Salvatori e Bart Bund — contam que desde então
aprenderam o que significa tornar o teatro acessível, um teatro melhor devido à
presença da língua gestual. Trabalhar com o intérprete-sombra é extremamente
enriquecedor, dizem. O intérprete dá ao ator uma sensação de maior poder. O
gesto amplifica a palavra, transforma-a no espaço e tudo é vivido de outra
forma. Atuar com o intérprete a traduzir no canto do palco, traz uma certa
distração, enquanto tê-los entre os atores confere ao espetáculo outro nível. É
como ter alguém que partilha as emoções do ator, emprestando uma dimensão
visual aos momentos vividos no palco.
Mas
quem é o intérprete-sombra? Um
intérprete de língua gestual, um ator com conhecimentos de língua gestual ou um
ator-intérprete de língua gestual?
Não
há dúvidas de que a aptidão para atuar do intérprete
de língua gestual é imprescindível; terá ainda de possuir no mínimo as noções
básicas de técnicas de palco para saber como se movimentar entre os atores; terá
de acompanhar os ensaios como um qualquer outro ator para fixar as sequências
das cenas, as deslocação de todos os atores, para definir em conjunto com o
encenador e o resto da equipa, como conseguir fazer com que no palco a língua
oral e gestual se possam expressar de forma a que uma amplifique a outra e que
cada uma tenha a sua presença. Terá de treinar para conseguir gestuar enquanto
se movimenta, tarefa que não é fácil tendo em conta que gestuar em movimento
requer uma concentração suplementar. A língua gestual terá de ser trabalhada
para ter mais impacto no palco e ser mais visível; cada gesto deverá ter uma
amplitude diferente daquela que tem fora do palco.
Este
é um processo em que a colaboração com atores surdos é fundamental para que o
intérprete encontre a forma ideal de se expressar. A experiência em “A Linguagem no Coração”
ensinou-me que só colaborando com os atores surdos é possível trabalhar a
língua gestual de forma a que possa encontrar o seu espaço no palco. O trabalho
em conjunto entre atores surdos e ouvintes foi imprescindível para estudar o
texto narrativo e descobrir qual o melhor lugar do intérprete-sombra de forma a
estar em harmonia com os atores. Muito interessante foi reparar como esta
sinergia entre culturas diferentes sensibilizou os atores ouvintes em relação à
Língua Gestual Portuguesa e à Cultura Surda. De facto, enquanto nas primeiras
duas semanas os ouvintes procuravam o apoio do intérprete para comunicarem com
os surdos, a partir da terceira já tinham aprendido os gestos elementares,
tinham criado códigos para se perceberem e, nos momentos de pausa, perguntavam
tudo e mais alguma coisa sobre o que significa Ser Surdo — “Ser” e não “Estar”—
e a primeira reação era: “Nunca pensei que fosse assim”.
“É
a primeira vez que há uma integração entre surdos e ouvintes. E isso é muito
positivo. Poder comunicar entre nós, houve muita colaboração. Houve momentos de
grande maravilha. O facto de eu poder ensinar. Eles aprendiam facilmente gestos
e começaram a gestuar comigo. Foi espetacular” (Carlos Martins, ator surdo,
entrevistado pela RTP para o programa “Consigo”).
“Eu
acho que somos mesmo capazes de mudar o mundo através da arte, do teatro. A
arte é uma representação da sociedade, é uma representação daquilo que nos
vivemos. As pessoas identificam-se”. (Margarida Almeida dos Santos, atriz
ouvinte, entrevistada pela RTP para o programa “Consigo”).
Conclusão
O impacto que a peça "A Linguagem do Coração" teve junto da Comunidade Surda e Ouvinte foi muito positivo, dando lugar a novas datas no Teatro do Bairro.
Esta aceitação aponta para as potencialidades que projetos como este podem ter no que diz respeito à inclusão social, à sensibilização e à valorização da Língua Gestual Portuguesa. A encenadora Sofia de Portugal, numa entrevista à RTP, ao relatar a experiência refere o seguinte: "(...) foi para nós ouvintes e comunidade escolar uma aprendizagem incrível. Chorámos diariamente de emoção, de alegria de estar a fazer isto. Descobrir um mundo que não conhecíamos".
Considero que criar uma estrutura sólida em que se possa trabalhar com os Surdos, e não apenas para os Surdos, deveria ser uma prioridade para qualquer sociedade que defende o igualitarismo, sendo que a Arte do Teatro possui todas as ferramentas para tornar isso possível.
Referências bibliográficas
Conclusão
O impacto que a peça "A Linguagem do Coração" teve junto da Comunidade Surda e Ouvinte foi muito positivo, dando lugar a novas datas no Teatro do Bairro.
Esta aceitação aponta para as potencialidades que projetos como este podem ter no que diz respeito à inclusão social, à sensibilização e à valorização da Língua Gestual Portuguesa. A encenadora Sofia de Portugal, numa entrevista à RTP, ao relatar a experiência refere o seguinte: "(...) foi para nós ouvintes e comunidade escolar uma aprendizagem incrível. Chorámos diariamente de emoção, de alegria de estar a fazer isto. Descobrir um mundo que não conhecíamos".
Considero que criar uma estrutura sólida em que se possa trabalhar com os Surdos, e não apenas para os Surdos, deveria ser uma prioridade para qualquer sociedade que defende o igualitarismo, sendo que a Arte do Teatro possui todas as ferramentas para tornar isso possível.
Referências bibliográficas
Cultura Surda,
TerpTheatre | Wild Swan Theatre. Disponível em: https://culturasurda.net/2013/11/26/terp-theatre/
(última consulta a 14/04/2019).
Laborit, Emmanuelle
(2013, 8ª edição). O Grito da Gaivota.
Lisboa: Editorial Caminho. (1ª edição: França 1994).
Público | artigo por
Mariana Correia Pinto • 22/10/2016 - 17:47. Disponível em http://p3.publico.pt/cultura/palcos/21950/como-se-ouve-e-sente-o-teatro-num-mundo-silencioso
(última consulta a 14/04/2019).
Rádio Movimento PT Online
- Mãos que falam | entrevista a Artur Albuquerque 23/05/2018 20:00. Disponível
em https://www.facebook.com/radiomovimentopt/videos/613745362293768/?hc_ref=ARSO9j832Hlo4vHL1zcMv7ApeCunKcH8UTsUF0Wyt9jV88RfWHoxGI4hg0bM0DP8fP4
(ultima consulta a 14/04/2019)
Reportagem RTP Programa
Consigo de 18 de novembro de 2017. Disponível em
https://www.rtp.pt/play/p3904/e316613/consigo (última consulta a 14/04/2019).
Charneca da Caparica, 14/04/2019
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