quarta-feira, 17 de abril de 2019

TEATRO INCLUSIVO


Fotografia de Duarte Aragão


TEATRO INCLUSIVO
A figura do intérprete-sombra | uma experiência
Barbara Pollastri


Resumo
Em Portugal, ainda são raros os espetáculos teatrais plenamente acessíveis ao público surdo. O espetador surdo, para além de poder desfrutar do espetáculo com interpretação para Língua Gestual Portuguesa (LGP) apenas em horários e datas pré-definidos, é obrigado não só a preocupar-se com a escolha do lugar para ter uma boa visibilidade do intérprete de LGP, como também a deslocar a atenção para o canto do palco de forma a acompanhar a interpretação, perdendo assim o que se está a passar no palco; se isso não bastasse, pode até ter a perceção que a sua presença incomoda, visto que a maioria dos ouvintes dizem-se distraídos pela presença do intérprete no canto do palco, e os próprios encenadores e/ou produtores chegam a recear que a peça seja prejudicada.
            Neste artigo proponho-me estudar a figura do intérprete-sombra, relatando a experiência pessoal, iniciada ao longo do primeiro período de estágio profissional como intérprete de Língua Gestual Portuguesa, junto do Centro de Educação e Desenvolvimento Jacob Rodrigues Pereira, em que tive a possibilidade de colaborar na realização da peça teatral com atores surdos e ouvintes “A linguagem do Coração”, baseada na autobiografia de Emmanuelle Laborit — “O Grito da Gaivota” — criada e encenada por Sofia de Portugal e estreada no Teatro da Trindade por ocasião do Festival Inclusivo Sounds Like Fest 2017.
            A peça de teatro “A Linguagem do Coração” é a prova que é possível criar grupos de teatro com atores surdos e ouvintes a trabalharem em conjunto; que a cultura Surda e Ouvinte se enriquecem reciprocamente; assim como prova que a figura do intérprete-sombra torna o Teatro mais acessível.

Palavras chaves: teatro inclusivo, LGP, acessibilidade, intérprete-sombra, surdez.


Introdução

            Embora haja já exemplos de boas práticas, são inúmeras as ocasiões em que a inacessibilidade da cultura é uma temática recorrente no diálogo com a Comunidade Surda. Pedro Costa — atual Presidente da Federação Portuguesa de Associações de Surdos ­—  diz claramente isso num artigo publicado no jornal Público:
“A cultura continua a ser uma área maioritariamente inacessível”, lamenta. Apesar de a LGP estar consagrada na Constituição da República Portuguesa desde 1997, “continua a existir um desconhecimento sobre os direitos das pessoas Surdas” (por Mariana Correia Pinto, 22/10/2016).

            Numa entrevista à Rádio Movimento PT Online (23/05/2018), Artur Albuquerque ­­— intérprete de LGP— relata um desafio que o marcou para o resto da sua vida. Conta que em 1984 colaborou no projeto da International Rehabilitation para promover em Portugal a peça de teatro “Os Filhos de um Deus Menor”, no âmbito da Conferência Internacional. A produção foi então à procura de alguém que tivesse capacidade de adaptar o texto de uma realidade norte-americana para uma realidade portuguesa e trabalhar esse texto de forma que pudesse ser representado em palco com as duas línguas em simultâneo, LGP e português. “Não tinha a ver com as minhas competências de interpretação, mas sim com as minhas competências de domínio da Língua Gestual Portuguesa”, explica o intérprete Artur Albuquerque que teve que ensinar a LGP em meia dúzia de meses aos atores, ainda por cima “(...) tendo em conta o valor em causa de transmissão correta daquilo que estava em cima de um palco”. Pela primeira vez as pessoas surdas, para as quais eram reservados os lugares da frente, chegaram a levantar-se das cadeiras para interagirem com os atores no decurso do espetáculo porque estavam a acompanhar a peça de teatro de tal profundidade e sensibilidade que não se continham. “Foi muito gratificante” e acrescenta que foi “(...) pena que estivesse tão pouco em cena”, tendo em conta a carga de trabalho que representou ensinar e aprender a Língua Gestual Portuguesa.

            Este é um exemplo de projeto que evidencia as mais valias que as duas línguas dão ao espetáculo: por um lado o espetador surdo pode acompanhar a peça de forma mais intensa, por outro o ouvinte não é incomodado pelos que define como ser “ruído visual” (intérprete de LGP no canto do palco).


O intérprete-sombra | um elo entre culturas 

            Nos Estados Unidos, o TerpTheatre, com a sua modalidade de shadow-interpreting (interpretação-sombra), associa a cada ator o seu intérprete de língua gestual que se movimenta com ele, tornando o intérprete parte do universo cénico e dando vida à figura do intérprete-sombra.

            É neste âmbito que se enquadra a companhia de teatro Wild Swan Theatre, no Michigan (EUA), a qual trabalha com os intérpretes-sombra desde 1986. Os atores — Hilary Cohen, Sandy Ryder, Eric Niece, Jeremy Salvatori e Bart Bund — contam que desde então aprenderam o que significa tornar o teatro acessível, um teatro melhor devido à presença da língua gestual. Trabalhar com o intérprete-sombra é extremamente enriquecedor, dizem. O intérprete dá ao ator uma sensação de maior poder. O gesto amplifica a palavra, transforma-a no espaço e tudo é vivido de outra forma. Atuar com o intérprete a traduzir no canto do palco, traz uma certa distração, enquanto tê-los entre os atores confere ao espetáculo outro nível. É como ter alguém que partilha as emoções do ator, emprestando uma dimensão visual aos momentos vividos no palco.

          Mas quem é o intérprete-sombra? Um intérprete de língua gestual, um ator com conhecimentos de língua gestual ou um ator-intérprete de língua gestual?

          Não há dúvidas de que a aptidão para atuar do intérprete de língua gestual é imprescindível; terá ainda de possuir no mínimo as noções básicas de técnicas de palco para saber como se movimentar entre os atores; terá de acompanhar os ensaios como um qualquer outro ator para fixar as sequências das cenas, as deslocação de todos os atores, para definir em conjunto com o encenador e o resto da equipa, como conseguir fazer com que no palco a língua oral e gestual se possam expressar de forma a que uma amplifique a outra e que cada uma tenha a sua presença. Terá de treinar para conseguir gestuar enquanto se movimenta, tarefa que não é fácil tendo em conta que gestuar em movimento requer uma concentração suplementar. A língua gestual terá de ser trabalhada para ter mais impacto no palco e ser mais visível; cada gesto deverá ter uma amplitude diferente daquela que tem fora do palco.

          Este é um processo em que a colaboração com atores surdos é fundamental para que o intérprete encontre a forma ideal de se expressar. A experiência em “A Linguagem no Coração” ensinou-me que só colaborando com os atores surdos é possível trabalhar a língua gestual de forma a que possa encontrar o seu espaço no palco. O trabalho em conjunto entre atores surdos e ouvintes foi imprescindível para estudar o texto narrativo e descobrir qual o melhor lugar do intérprete-sombra de forma a estar em harmonia com os atores. Muito interessante foi reparar como esta sinergia entre culturas diferentes sensibilizou os atores ouvintes em relação à Língua Gestual Portuguesa e à Cultura Surda. De facto, enquanto nas primeiras duas semanas os ouvintes procuravam o apoio do intérprete para comunicarem com os surdos, a partir da terceira já tinham aprendido os gestos elementares, tinham criado códigos para se perceberem e, nos momentos de pausa, perguntavam tudo e mais alguma coisa sobre o que significa Ser Surdo — “Ser” e não “Estar”— e a primeira reação era: “Nunca pensei que fosse assim”.

            “É a primeira vez que há uma integração entre surdos e ouvintes. E isso é muito positivo. Poder comunicar entre nós, houve muita colaboração. Houve momentos de grande maravilha. O facto de eu poder ensinar. Eles aprendiam facilmente gestos e começaram a gestuar comigo. Foi espetacular” (Carlos Martins, ator surdo, entrevistado pela RTP para o programa “Consigo”).

            “Eu acho que somos mesmo capazes de mudar o mundo através da arte, do teatro. A arte é uma representação da sociedade, é uma representação daquilo que nos vivemos. As pessoas identificam-se”. (Margarida Almeida dos Santos, atriz ouvinte, entrevistada pela RTP para o programa “Consigo”).

Conclusão

            O impacto que a peça "A Linguagem do Coração" teve junto da Comunidade Surda e Ouvinte foi muito positivo, dando lugar a novas datas no Teatro do Bairro.

         Esta aceitação aponta para as potencialidades que projetos como este podem ter no que diz respeito à inclusão social, à sensibilização e à valorização da Língua Gestual Portuguesa. A encenadora Sofia de Portugal, numa entrevista à RTP, ao relatar a experiência refere o seguinte: "(...) foi para nós ouvintes e comunidade escolar uma aprendizagem incrível. Chorámos diariamente de emoção, de alegria de estar a fazer isto. Descobrir um mundo que não conhecíamos".

         Considero que criar uma estrutura sólida em que se possa trabalhar com os Surdos, e não apenas para os Surdos, deveria ser uma prioridade para qualquer sociedade que defende o igualitarismo, sendo que a Arte do Teatro possui todas as ferramentas para tornar isso possível.


Referências bibliográficas

Cultura Surda, TerpTheatre | Wild Swan Theatre. Disponível em: https://culturasurda.net/2013/11/26/terp-theatre/ (última consulta a 14/04/2019).

Laborit, Emmanuelle (2013, 8ª edição). O Grito da Gaivota. Lisboa: Editorial Caminho. (1ª edição: França 1994).

Público | artigo por Mariana Correia Pinto • 22/10/2016 - 17:47. Disponível em http://p3.publico.pt/cultura/palcos/21950/como-se-ouve-e-sente-o-teatro-num-mundo-silencioso (última consulta a 14/04/2019).

Rádio Movimento PT Online - Mãos que falam | entrevista a Artur Albuquerque 23/05/2018 20:00. Disponível em https://www.facebook.com/radiomovimentopt/videos/613745362293768/?hc_ref=ARSO9j832Hlo4vHL1zcMv7ApeCunKcH8UTsUF0Wyt9jV88RfWHoxGI4hg0bM0DP8fP4 (ultima consulta a 14/04/2019)

Reportagem RTP Programa Consigo de 18 de novembro de 2017. Disponível em https://www.rtp.pt/play/p3904/e316613/consigo (última consulta a 14/04/2019).


Charneca da Caparica, 14/04/2019

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