quarta-feira, 30 de novembro de 2022

O emir do Qatar

 por Luís Santos

O emir do Qatar,

apelido de família Thani, entre outras coisas, é conhecido pelas suas 3 esposas e respetivos 13 filhos que, pressupostamente, são todos seus. Tanto quanto se sabe, vivem juntos, moram juntos, comem juntos, vão de férias juntos e, em salutar harmonia, dividem um jeito diferente de ciúmes da maneira ocidental.

Numa gente tão endinheirada, com tantos milhões de litros de petróleo e de gás natural, a juntar a família tão extensa, ainda pressupostamente, existem uma quantidade indefinida de concubinas e, aqui, entre outras coisas menos boas, aparece a questão dos direitos das mulheres, dos homens, das crianças, dos animais, etc.

Como o textinho não deve ser muito longo e o objetivo é falar da organização da família no mundo, do jeito que a Antropologia nos tem ensinado, para se viver numa família poligâmica, quer dizer, onde um homem casa com várias mulheres, não é preciso ser rico, nem ser árabe, já que, por exemplo, isso é um costume habitual nas sociedades africanas tradicionais. Tal como, numa outra forma de família, existem muitas famílias de tipo poliândrico, ou seja, lugares do mundo onde é normal uma mulher ter vários maridos.

Continuando a resumir, é também assim a condição humana e até se pode perguntar se é bom se é mau, se este tipo de gente com costumes tão diferentes dos nossos, no fim, vai para o céu ou para o inferno?

E, pronto, por hoje era isto.

Na fotografia, mulher nepalesa que tem 3 maridos e jura que é feliz.

terça-feira, 22 de novembro de 2022

“Literatura: o pão nosso de cada dia” (IX)

 Luís Souta

ANTROPOLOGIA e LITERATURA

«Do que eu gostava na antropologia, era o seu poder de negação, da sua obstinação em definir o homem»

(Samuel Beckett, Molloy, 1964:55) 

A Literatura não sendo uma ciência, tem, no entanto proximidades com o vasto campo das Ciências Sociais (História, Geografia, Antropologia, Sociologia, Economia, Psicologia Social, Ciência Política). De tal modo que se vulgarizou a designação “Ciências Sociais e Humanas” ou “Ciências Sociais e Humanidades”, para incluir outras, como a Literatura, a Filosofia e o Direito. De facto, a Literatura está mais próxima deste grande grupo multidisciplinar cujo centro das suas preocupações são as multíplices problemáticas do Homem e da Sociedade. As diferenças entre Ciências Sociais e Literatura são de natureza e de estatuto social. Podemos recorrer a um critério, a atribuição do prémio Nobel. No âmbito das Ciências Sociais, só a Economia tem esse galardão (o primeiro foi atribuído em 1969). Ora o Nobel Literatura desde 1901 que é concedido, sendo (a par com o da Paz) o de maior impacto mediático e dos mais conhecidos entre o grande público. Este simples exemplo, a que outros se poderiam aduzir, como o da divulgação, via editorial, dos respectivos produtos, serve para salientar a ideia da influência social que a literatura tem quando comparada com o mundo da Ciência.

Jean Copans anotava que «[d]esde a sua origem, a etnologia é também uma literatura, visto que ambas são um discurso, descritivo e valorizante» (1971:50). Nos anos mais recentes, vários têm sido os trabalhos que evidenciam as fronteiras onde se tocam a antropologia e a literatura, muito através dos «estudos culturais». A par da História é talvez na Antropologia que essa proximidade à literatura seja mais notória. O sentido holístico da análise que tanto a Antropologia como a História prosseguem (uma centrada nas sociedades do passado, a outra nas sociedades actuais), colocam o Homem numa rede de múltiplos feixes de intersecção e interacções sociais nas suas diversas actividades e esferas de acção (familiar, económica, política, social, militar, cultural).

O antropólogo americano Clifford Geertz, ligado ao paradigma interpretativo, revolucionou a antropologia moderna, em diversos sentidos, nomeadamente possibilitou uma aproximação entre a antropologia e a literatura, ainda que produzindo afirmações que estão longe de colher consenso entre aquela comunidade científica. Dessas afirmações destacam-se as referentes à cultura, «não é mais do que um conjunto de textos», e às obras etnológicas, consideradas como ficções, na medida em que são produtos construídos. De facto, o produto final do trabalho de campo de um antropólogo consubstancia-se na produção de um texto, que procura, em certa medida, ser a “voz” desses “outros” que lhe serviram de objecto de estudo. Ele resulta de um processo metodológico, único, e distintivo da identidade disciplinar da Antropologia – a «observação participante». Só que Geertz e seguidores preferem, naturalmente, falar em «descrição participante», ou seja, uma versão biográfica do «estar lá» (Casal, 1996:96), e pôr a tónica nos problemas da narratologia, ela própria produtora de uma outra realidade, marcada por uma visão subjectiva. Deste modo se fazia emergir, aquilo que, em regra, não vinha à luz do dia: as condições em que eram recolhidas as informações e como, posteriormente, elas eram traduzidas num texto inevitavelmente plasmado da personalidade de quem o redige (cf. Clifford & Marcus, 1986).

O consumo do texto antropológico é diminuto, limitado, em regra, aos meios académicos e a uma escassa fatia do público não especializado. Tal decorre, também, de uma certa particularidade do tipo de textos antropológicos muitas vezes acusados de conterem «exemplos áridos, sem vida». Um texto descritivo que torna o trabalho maçudo e denso, faltando-lhe fluidez que só a narrativa lhe empresta. Ainda que não se possa confundir o “literato” com o “antropólogo”, um pertenceria à categoria do «escritor» e outro à do «escrevente», recuperando os velhos conceitos de Barthes (1964), ou seja, um mais preocupado em «como escrever?» e o outro em «escrever o quê?».

Só que estes dois modos de encarar a escrita não são dicotómicos; os dois campos têm-se vindo a aproximar, havendo já casos de “fusão” entre a Antropologia e a Literatura, a «artful-science» como lhe chama Ivan Brady, onde a linguagem científica e a estética da arte se interpenetram num género novo. O antropólogo italiano Alberto Sobrero, num texto apresentado no Congresso de Antropologia1, numa secção significativamente designada de «Antropologia como Ficção: as escritas antropológicas», identificou um conjunto assinalável de autores2 e de obras desse tipo, muitas delas produzidas em contexto de emigração ou por “antropólogos-nativos”, estes últimos mais ligados à recente “antropologia periférica” (muito em especial em África e na América Latina). Também de referir os “antropólogos viajantes”, sendo Ramos (2000) e o seu diário de viagem à Etiópia um bom exemplo. Enfim, gente que ousa atravessar as fronteiras onde antropologia e literatura se tocam.

Caso de Paul Benson que editou, em 1993, uma obra pioneira neste domínio a que deu precisamente o título de Anthropology and Literature. Esse volumoso livro reúne onze textos de antropólogos de diferentes nacionalidades que relatam as suas experiências concretas em diversos locais do globo (Alaska, Florida, Índia, Indonésia, Novas Hébridas…), em torno da utilização que fazem da ficção (poesia, tragédias gregas, por exemplo) e que reflectem de forma aprofundada sobre a crescente variedade de géneros na produção dos seus próprios textos, em moldes mais próximos do registo literário (short stories, por exemplo) que da clássica e tradicional monografia. Situando-se em campos metodológicos mais tocados pela pós-modernidade e pelas correntes da antropologia crítica, valorizam uma etnografia auto-reflexiva, que evita as dicotomias dogmáticas e clássicas: etnografia associada a factos e verdades em contraponto com a ficção e a fantasia; dum lado cientistas e do outro artistas. Antes se reforça a unidade das componentes do self, onde o pessoal e o profissional, o literário e o científico do antropólogo lhe permitem rentabilizar a sua acção.

Outro exemplo, é o do antropólogo francês Marc Augé quando recorre às obras de alguns romancistas para dar corpo às três figuras centrais do esquecimento que ele nos propõe – «o retorno, a suspensão e o recomeço» – num conjunto de ensaios em que se procura ver «a vida como narrativa» e da necessidade intrínseca que todo o ser humano tem de esquecer. E usa, para isso, a metáfora da jardinagem: «as recordações são como as plantas: há algumas que é preciso eliminar rapidamente para ajudar as outras a desabrochar, a transformar-se, a florescer» (1998:23).

James Clifford e, em certa medida também, Raúl Iturra têm praticado uma escrita onde se denota um certa justaposição de géneros e onde o “literário” emerge como forma discursiva com fortes marcas de experiência pessoal.

No caso português, temos tido alguns escritores que nas suas obras, mobilizam um conjunto de saberes multidisciplinares, entre os quais os da antropologia; poderíamos quase considerá-los como escritores-etnógrafos que recorrem ao trabalho de campo e, por aí, se aproximam do ofício do investigador social. Aquilino Ribeiro, Alves Redol, Miguel Torga, Tomaz Ribas, Teixeira de Pascoaes3, são alguns exemplos onde muito material etnográfico é coligido e descrito com pormenor e minúcia. Glória: uma aldeia do Ribatejo de Alves Redol (1938), classificada como «ensaio etnográfico», e Aldeia de Aquilino Ribeiro (1946), sub-intitulada «terra, gente e bichos», são talvez os casos mais próximos da monografia antropológica, mais evidente na estrutura do primeiro, mas onde o conteúdo revela preocupação em descobrir as raízes profundas de Portugal, e em particular, conhecer as duras realidades em que vive o seu «povo». Não é por acaso que ambos são “acusados” de escritores regionalistas que, tal como os antropólogos, focalizam o seu estudo sobre uma região específica (aqui, um centra-se na Beira e outro no Ribatejo). Em Aquilino Ribeiro encontramos mais dois livros com referências explícitas nos subtítulos a essa intencionalidade antropológica: O Livro do Menino-Deus: o Natal na história religiosa e na etnografia (1945) e Geografia Sentimental: história, paisagem, folclore (1951). 


Notas

1. Comunicação de Alberto Sobrero ao 2º Congresso de Antropologia, Lisboa, F.C.Gulbenkian, 15/11/1999.

2. Referiu um caso em língua portuguesa, a do cabo-verdiano Luís Romano (1962) Famintos.

3. Cf. “O pensamento antropológico de Teixeira Pascoaes” de Manuel Ferreira Patrício (1997).


Referências

AUGÉ, Marc (1998) As Formas do Esquecimento. Almada: Ímanedições, 2001.

BARTHES, Roland (1964) Elementos de Semiologia. Edições 70.

BENSON, Paul (ed.) (1993) Anthropology and Literature. Urbana and Chicago: University of Illinois Press.

CASAL, Adolfo Yáñez (1996) Para uma epistemologia do discurso e da prática antropológica. Lisboa: Edições Cosmos/ Cosmos Antropologia, nº 1.

CLIFFORD, James e MARCUS, George E. (1986) (eds.) Writing Culture: the Poetics and Politics of Ethnography. London: University of California.

COPANS, Jean et al (1971) Antropologia. Ciência das sociedades primitivas? Lisboa: Edições 70/ Biblioteca 70, 1974.

RAMOS, Manuel João (2000) Histórias Etíopes: diário de viagem. Lisboa: Assírio & Alvim/ Sete estrelo, nº 7.

REDOL, Alves (1938) Glória – Uma Aldeia do Ribatejo. Publicações Europa-América / Obra Completa de AR, nº 18.

RIBEIRO, Aquilino (1946) Aldeia. Venda Nova: Livraria Bertrand/ Obras completas A.R., 1978.


sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Um Poema de Paulo Landeck


Gotículas e Centelhas

Abrigada na chuva,
dança entre a multidão
ao método de Orff.
Gota
de lágrima vestida.
Atenta,
pois maravilhosamente se desprende
da tormenta ao vibrante xilofone.
Resguarda
palpável criação,
sede de todas as sedes.
E se,
sorvida de um trago
no cálice da rosa,
enquanto eflúvios reportam inocente transparência
perdida em dias cinzentos,
lembra-te,
perfumes tardios
guardarás.
Lava o dilúvio -
terra,
e delicada pétala, -
música diluída
que embala todas as cores,
ao sabor de tenebrosos pesadelos
e tangíveis sonhos.
Por isso
Dança,
Dança ao método de Orff,
Dança
pura flama!
Como velha madeira naufragada
em mágica fogueira crepitante, dança!
E guarda de mim,
apenas uma brisa marítima.

Alhos Vedros, 10-11-2022

Paulo Landeck



sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Ulisses de Paulo Borges

Ulisses

Partiu há pouco o meu querido Ulisses, o animal com quem senti mais conexão dos muitos que se cruzaram comigo nesta vida. Ensinou-me muitas coisas, sobretudo com a sua morte, que me deixou o ser nu, lavado das muitas futilidades e distracções em que me tenho enredado. Vejo-te, Ulisses, a regressares à Luz sem forma de onde tudo vem. E, agora que não tens corpo, reconheço-te em todos os seres e coisas, em todo o lado. A morte é um dos aspectos mais sagrados da vida, como fizeste sentir a mim e à Daniela enquanto acompanhávamos a tua lenta, serena e silenciosa despedida. Que as minhas orações e as de todos os amigos que se quiserem juntar a elas sejam as asas que te levem mais lesto para o Infinito. Na tradição do Buda usamos o mantra da compaixão - Om Mani Padme Hum - , mas todas as palavras e sons puros são bem vindos para te acompanhar e a todos os seres que estão a fazer a mesma Viagem. Sim, que contigo nos leves a todos para a Luz infinita! Que todos os seres sejam livres e felizes, agora e sempre! Que todos despertemos deste sonho de haver vida e morte!

E, por falar em partidas, foi adicionada uma música que é da responsabilidade do editor, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=MzGpYtR1v4U 


sábado, 5 de novembro de 2022

“Literatura: o pão nosso de cada dia” (VIII)

 Luís Souta

AS CIÊNCIAS NAS FRONTEIRAS DA FICÇÃO

«Ciência é loucura se o bom siso a não cura.»

 

O debate em torno da ficção, não está hoje circunscrito à literatura. Ele instalou-se no interior desse espectro largo que são as ciências sociais. Mesmo aquelas que mais pareciam blindadas a esse tipo de “vírus”, têm-na inscrita nas suas agendas metodológicas. Tomemos a História como ponto de partida. Nela, o real acontecido era tornado verdadeiro na e pela escrita do historiador (cujo estatuto tem muito de comum com o narrador, ainda que mais evidente na corrente da «história narrativa»). «Os factos», enquanto incidentes singulares da interacção humana num determinado contexto histórico, eram, por excelência, o interesse primeiro do historiador. Mas a história não é uma ciência dos factos, há nela sentimentos, emoções, afectos, especulações… leis e teorias. Captá-los e “trazê-los” para o interior da História passou a ser um objectivo de quem se interessa por reconstruir o passado, na sua pluridimensionalidade. Também por resolver estiveram sempre os “buracos” na história das nações e da humanidade, para os quais não havia documentação, monumentos, artefactos, provas empíricas. Cabia então ao historiador, resolver esses problemas, preenchendo lacunas, com o recurso a inferências, à imaginação, em suma, à ficção. Daí que Valdés afirme peremptório: «There is as much fiction in history as there are facts in fiction» (1992:28).

Por sua vez Hayden White diz que a principal distinção entre história e ficção «tem a ver com a forma, e não com o conteúdo» (citado em Nóvoa, 2000).

Neste ponto, vale a pena ter presente a visão de um escritor, o peruano Mário Vargas Llosa, cujos romances «andam muito próximos de acontecimentos históricos»1 e que destrinça a questão da verdade, na história e na literatura, nestes termos: «A verdade literária e a verdade histórica são muito distintas. A verdade histórica mede-se pela identificação entre aquilo que um historiador conta e a realidade vivida. A verdade de uma ficção não é alheia à própria ficção. Depende, não da sua identificação com uma realidade prévia, mas fundamentalmente do seu poder de persuasão.» E ilustra com Guerra e Paz de Tolstoi onde os historiadores detectam uma série de inexactidões sobre as guerras napoleónicas mas os leitores não deixam de acreditar «cegamente (…) pela força hipnótica que o romance tem»2. É esta uma das formas próprias que a literatura tem de nos levar acreditar que «copia a realidade».

Sandra Pesavento reconhece que as divisões se têm esbatido pelo que «a questão da veracidade e da ficcionalidade do texto histórico está (…) presente na nossa contemporaneidade, fazendo dialogar a literatura e a história num processo que dilui fronteiras e abre as portas da interdisciplinaridade» (2000:37). Pesavento faz um exercício curioso, em relação a um período concreto da História do Brasil: procura cruzar uma obra literária de 1865 – Iracema – do conhecido escritor José de Alencar (1829-1877), com o trabalho de 1907 – Capítulos da História Colonial do não menos conhecido historiador Capristano de Abreu. Cotejando as duas obras, ela constata «o quanto de verdade» ou de «aproximação com o real» a primeira obra é portadora. Nela se encontram «registros etnográficos e passagens de causar inveja a qualquer geógrafo, antropólogo ou filólogo» (2000:54-5). Não é pois de estranhar que os desenvolvimentos na História (a ciência social que parecia mais sólida nos seus princípios metodológicos) para áreas de estudo como a «vida quotidiana» ou das «mentalidades», para só identificar dois campos, tenha feito entrar no seu aparato instrumental conceitos como os da representação, do imaginário ou do simbólico.

Um outro exemplo brasileiro, de articulação estreita entre a antropologia e literatura num mesmo autor, é-nos dado por José Maurício Arruti quando analisa a obra do antropólogo Darcy Ribeiro (1995) O Povo Brasileiro – a formação e o sentido do Brasil e constata que o autor chega a «reproduzir trechos inteiros de um dos seus romances, como contribuição legítima para a sua argumentação» (1996-97:305). O produto final pode ser visto como uma grande narrativa, que em vez de uma pretensa objectividade, resultante de um olhar externo, distante e superior, ajuda «a pensar a partir da sensibilidade».

O historiador Jacques Revel, aquando da sua vinda a Portugal para participar nas Conferências do Convento 1996, na Arrábida, afirmou numa entrevista concedida a um jornal nacional3: «Os historiadores iniciam frequentemente as suas análises pela contextualização. Nas teses francesas havia sempre um capítulo inicial chamado “La terre et les hommes”. Descreviam uma região, uma cidade, a paisagem. Montava-se o cenário, como num romance, garantindo assim que tudo aquilo tinha acontecido alguma vez.»

Um exemplo clássico é a obra de Oscar Lewis Os Filhos de Sánchez, por ele mesmo considerada como uma «literatura de realismo social» (1961:14). A partir das entrevistas aos quatro irmãos da família Sánchez – Manuel, Roberto, Consuelo e Marta – que vivem na vecindad da Casa Grande, num bairro pobre no centro da cidade do México, Lewis procura «uma visão cumulativa, multifacetada, panorâmica de cada indivíduo, da família como um todo, e de muitos aspectos da vida da classe baixa mexicana» (id.:13). E assim, inaugura o método das «autobiografias mútuas» que tanto impacto tem tido não só na antropologia (Vieira, 1998, 1999) como noutras ciências sociais (Leite, 1999)… O antropólogo americano praticamente abdica da análise teórica, dando-nos um «pedaço de vida (do “romanesco”), mas pedaço de vida refractado por várias subjectividades, o que lhe permite um mínimo de objectividade» (Copans, 1971:51). Curiosa é a reacção de um escritor, Vergílio Ferreira, a este livro, de que nos dá conta no primeiro volume do seu diário Conta-Corrente: «o grande truque do autor é jogar no verdadeiro contra o verosímil. (…) Mas dizendo-nos que aquilo é “verdade”, nós pomos de parte a categoria da “verosimilhança” e aceitamos. (…) [E uma vez] declarada a “verdade” das narrativas, só mal reparamos nas inúmeras intervenções do autor (comparações, reflexões, etc.) evidentemente “literárias”. (…) A “literatura” não está apenas nas narrativas do Manuel (que o autor nos diz “instruído”) mas em todas» (1980:72). Vergílio Ferreira conclui dizendo que o que valoriza uma narrativa “verdadeira” seria alvo de discussão numa narrativa ficcional.

Notas

1. Conversa na Catedral (1969), A Guerra do Fim do Mundo (1981), História de Mayta (1984), A Festa do Chibo (2000), O Paraíso na Outra Esquina (2003)…

2. Entrevista de Mário Vargas Llosa ao DNA, 21/04/2001, p. 15.

3. Entrevista concedida a Octávio Gameiro, Público, 20/07/1996, p. 5 do suplementos “Leituras & Sons”.

Referências

ARRUTI, José Maurício (1996-97) “Uma antropologia Mameluca a partir de Darcy Ribeiro, 1995: O Povo Brasileiro – a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras”. Revista da Faculdade de Letras, nº 21-22, 5ª série, pp. 301-312.

COPANS, Jean et al (1971) Antropologia. Ciência das sociedades primitivas? Lisboa: Edições 70/ Biblioteca 70, 1974.

FERREIRA, Vergílio (1980) Conta-Corrente 1 (1969 a 1976). Amadora: Livraria Bertrand.

LEITE, Carolina (1999) “Conto e Histórias de Vida nas Ciências Sociais”. Comunicação e Sociedade, Cadernos do Noroeste, Série Comunicação, vol. 12, nº 1-2, pp. 219-227.

LEWIS, Oscar (1961) Os Filhos de Sánchez. Lisboa: Moraes Editores/ Mundo imediato, nº 1, 2ª edição, 1979.

NÓVOA, António (2000) “História & Educação”. Educação Ensino, nº 22, Maio-Junho, pp. 9-11.

PESAVENTO, Sandra Jatahy (2000) “Fronteiras da Ficção: diálogos da história com a literatura”. Revista de História das Ideias, vol. 21, pp. 33-57.