domingo, 26 de junho de 2022

Graffitar a Literatura (VI)

 

«Não queiras ganhar o mundo e perder a alma.»

(provérbio de Omã)

 

Rua Frederico Arouca (Antiga Rua Direita), Cascais

«Our soul is a spray can» (hip hop graffiter dixit).

Ao escritor a caneta, ao desenhador o lápis, ao pintor o pincel, ao escultor o martelo e o cinzel, ao fotógrafo a máquina fotográfica, ao cineasta a câmara, ao graffiter a «spray can».

Cada um destes artistas, escreve, desenha, pinta, esculpe, fotografa, filma, ‘muraliza’ o que lhe vai na “alma”. Então a “soul” são os instrumentos – a caneta, o lápis, o pincel, o martelo, o cinzel, a máquina fotográfica, a câmara de filmar, a «spray can» – ou os produtos que deles emanam  – o romance, o desenho, o quadro, a escultura, o retrato, o filme, o graffiti e o mural?

O graffiter (não confundir com os que se “expressam” pelo bombing) é um artista plástico que desenha e pinta na rua (paredes de casas, muros, pontes, viadutos e outros «não-lugares»). Ao darem-nos as suas obras, deliciam-nos a custo zero. Ao tornarem a arte (a sua “soul”) pública, prestam também um valioso contributo na recuperação dos espaços urbanos degradados. E só por isso, as câmaras municipais deviam considerá-los “artistas residentes” e aboná-los em conformidade.

Pai do Vento sul, Alcabideche

“Alma russa”, lugar-comum ocidental construído no século XX, muito à custa de uma plêiade ímpar como Dostoievsky, Tolstoi, Gogol, Pushkin, Tchekhov…, é o título do romance escrito, em 1911, pelo consagrado Joseph Conrad (1857-1924). A história, passada num tempo de tirania dos czares, tem como protagonista um jovem de «carácter forte (…) filho de um Arcipreste e protegido de um membro notável da nobreza» (p. 16), Cirilo Razumov, estudante do 3º ano de Filosofia da Universidade de S. Petersburgo que se vê envolvido, involuntariamente, no assassinato do «Ministro de Estado investido de poderes extraordinários» (p. 17). O livro, reeditado em Maio de 2022, como segundo volume da colecção “Biblioteca da Censura” (uma louvável iniciativa do jornal Público), foi proibido, em 19 de Abril de 1947 pelo Estado Novo, por ser considerado «livro de propaganda revolucionária» (?!). Como refere Gustavo Rubim, o militar censor «limitou-se a julgar pela capa e pelo título português [no original “Under Western Eyes”]… tomá-lo como “propaganda” pró-russa é pior que tresler: é mesmo recusar-se a abrir o livro» (Público 24/05/2022, p. 31). A mesma Direcção dos Serviços de Censura, face ao requerimento do editor, viria a autorizá-lo em 17/01/1948. 

«Ah! És um bom camarada! Concentrado… – frio como gêlo. Um autêntico inglês. ¿Onde fôste arranjar essa tua alma? Não há muitos como tu. Escuta amigo! Homens como eu não têm posteridade, mas as suas almas não se perdem. Nenhuma alma humana jamais se perde. É uma coisa que actua por si… – de contrário, ¿como faria sentido o auto-sacrifício, o martírio, as convicções, a fé… – as actividades criadoras da alma? Que será da minha alma quando eu morrer, da forma como hei-de morrer… – breve… – muito breve, talvez? Ela não pode perecer. Não confundas Razumov. Isto não foi um assassinato… – é guerra, guerra! O meu espírito há-de continuar a fazer a guerra encarnada em qualquer corpo de russo, até que a mentira seja varrida definitivamente do mundo. A civilização moderna é uma mentira, mas a nova Revolução há-de partir da Rússia. Ah! Tu não dizes nada. Tu és um céptico. Respeito o teu cepticismo filosófico, Razumov, mas não toques na alma. Na alma russa que vive em nós todos. Ela tem um porvir. Tem uma missão a cumprir, digo-to eu (…)»

(edição fac-similada de 1945, Porto: Livraria Civilização, p. 30) 

No entanto, há quem persista na procura da alma: “Where is my soul”, canção de 1995 dos Finn Brothers (Neil & Tin), que a soberba versão da holandesa Matilde Santing, incluída no álbum To Others To One (1999), veio popularizar.

«Soul where is my soul where is my soul

I'll go up with my conscience clean» 

Uns cheios (de militantes) convicções, outros pejados (de poéticas) dúvidas…

 

Post scriptum:

O primeiro graffiti já não existe; o segundo (o do Pai do Vento) resiste, ainda que já mais próximo dos tons de aguarela esvaída em parede esboroada.

 

Luís Souta

(texto e fotos)

quarta-feira, 1 de junho de 2022

A Linguagem dos Pássaros

José Flórido

A  propósito de um texto recente, perguntou-me um Amigo a razão por que, nesse texto,  fiz referência à 'Linguagem dos Pássaros'. Confesso que não o sei dizer inteiramente. Mas, a "Linguagem dos Pássaros" é talvez a linguagem do Amor, sendo certamente por esse motivo  que o poeta persa do século XII, Farid ud Attar,  atribuiu esse título a um grande poema místico, que contem a essência do pensamento sufi. E é, de facto, uma verdadeira epopeia do Amor.

Depois de um prólogo de grande beleza, o autor apresenta uma reunião de pássaros, em que a grande Guia, a Poupa,  insiste na importância de um coração puro, para que  seja possível seguir o Caminho conducente ao Supremo, a Via do Amado, que "está bem próxima de cada um de nós, mas em que nem todos estão próximos dela". Convida então outros pássaros, no sentido de seguirem por esse Caminho superior. Mas, a maior parte, recorre a desculpas tolas, recusando avançar: O rouxinol argumenta que, para ele é suficiente o amor da rosa; o papagaio pretende apenas beber a água da fonte 'verdejante'; o pato sente-se satisfeito com a superfície da água onde costuma nadar; a perdiz ambiciona as pedras preciosas; o falcão pretende somente a companhia dos reis; a garça quer  desfrutar a beleza de uma gota de água à beira-mar; e o pardal, reconhecendo a sua própria fragilidade, receia a caminhada...

Mas, para se empreender esta Viagem, é preciso, além de um coração puro,  possuir as virtudes da coragem e da constância, porque isso envolve o 'Combate interior' (Jihad) com as nossas próprias fraquezas e limitações. Para a Poupa, "só aquele que abre os olhos para o Amor e que sabe que o Amor é a substância do Universo", é capaz de alcançar o Supremo objectivo.

Eis alguns fragmentos do Poema: 

A LINGUAGEM DOS PÁSSAROS E AS TRANSFORMAÇÕES DA ALMA

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Oh, homem do Caminho, não leias o meu livro como lírica ou como fruto da altivez. Observa o meu texto sob o prisma do amor, para que de cem dores de amores confies num deles. Quem isto observar sob o prisma do amor, lançará para a sua presença a bola do triunfo.

Esquece o ascetismo e a simplicidade: é necessário amor, amor e renúncia.

Todo aquele que tem amor renúncia ao remédio, aquele que deseja remédio renúncia à alma. “A Linguagem dos Pássaros”, de Farid ud-Din Attar, versos 4495 a 44991

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Há um caminho para os que, de coração, cheguem ao rei, mas para o coração extraviado não há caminho. Idem, verso 1137

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Espalhei por aqui e por ali as rosas deste jardim, que fique boa memória de mim, amigos!

No meu livro, cada um e a seu modo se vê a si mesmo num instante e se deixa de ver.

Também eu, pois, como os que partiram, descobri o pássaro da alma perante os adormecidos.

Se, com este livro, o coração de um constante adormecido for despertado por um instante,

Terei então a certeza de ter cumprido o meu dever e a minha inquietação e tristeza terão fim.

Como uma tocha ardi longo tempo para iluminar, chamejante, um mundo.

Como da tocha, saiu fumo do meu cérebro. Chama da eternidade, até quando soltarei este fumo? Idem, versos 4519 a 4525