sábado, 22 de abril de 2023

“Literatura: o pão nosso de cada dia”(XIII)

 Luís Souta

ANTROPOLOGIA DA EDUCAÇÃO

«Antropologia e educação parecem constituir, hoje, um campo de confrontação, em que a
compartimentação do saber atribui
à antropologia a condição de ciência e à educação, a condição de prática.»
(Neusa Gusmão, Cadernos CEDES, nº 43, 1997:9) 

A Antropologia da Educação é um campo disciplinar relativamente jovem. Quer aposicionemos na área da Antropologia quer a vendo como a mais recente das Ciências da Educação. A Antropologia da Educação autonomiza-se em meados dos anos 50 nos Estados Unidos da América e consolida-se, no último quartel do séc. XX, com George Spindler, John Ogbu, K. Wilcox, F. Eric kson, entre outros. Os seus antecedentes são possíveis de detectar logo nos trabalhos fundadores da disciplina, quando os antropólogos se interessaram pelos processos de endoculturação e socialização das crianças nas sociedades ditas “tradicionais”. Franz Boas (1858-1942) e Nina Vandewalker, com trabalhos em 1898, são os primeiros antropólogos a escrever sobre educação e antropologia. O grande impulso metodológico, que lança as bases do trabalho de campo, vem de Bronislaw Malinowski (1884-1942). Por sua vez, Margaret Mead (1905-1978), ao analisar a educação nos EUA, defende que certos tipos de escola necessitam de professores específicos, e que serão tanto melhor professores quanto forem capazes de conhecer, pela observação e experiência, os contextos particulares de socialização dos seus alunos.

Margaret Mead

A Antropologia da Educação nasce numa zona charneira, de confluência disciplinar onde se cruzam antropólogos e educadores (muitas das vezes essa dupla filiação encontra-se reunida numa só pessoa); esse diálogo teórico-prático, alargou o enquadramento de análise no qual se encontravam por resolver alguns “nós górdios”, como o do insucesso escolar, por exemplo. No caso português, a obra de Iturra (1990) foi um marco para um outra abordagem a esse crónico problema do nosso sistema educativo (“Insucesso escolar: o sucesso do sistema”, como o exprimia Rui Grácio (1980). A Antropologia da Educação abriu fissuras no mainstream educativo onde a teoria meritocrática e a teoria dos dons continuavam a dominar.

Outra das temáticas para qual a Antropologia da Educação veio dar um forte contributo, prende-se com as questões da heterogeneidade racial e étnica, que estiveram na sua origem histórica, e o da pluralidade social e cultural das sociedades modernas. Ou seja, o problema da alteridade que se colocava de novo e que tem sido um dos objectos centrais da Antropologia ao longo do seu percurso disciplinar. Procurar entender e explicar uma cultura que não é a sua foi sempre a tarefa do antropólogo. Só que agora a diversidade de culturas, de formas de pensar, de agir e de ser, se faziam sentir no terreno do próprio investigador, não no exótico longínquo de outros continentes a colonizar. Analisar de forma compreensiva e não etnocêntrica estas situações de descontinuidade cultural, que geram fortes desigualdades dentro do próprio sistema educativo, foi uma importante achega dos antropólogos da educação. Nos contextos multiculturais, a Antropologia desbrava novos trilhos no conhecimento da complexidade das culturas periféricas, invisíveis e do silêncio e da compreensão dos fenómenos de hibridação cultural e das novas identidades (re)construídas.

Os antropólogos alertaram para a necessidade de os professores descentrarem os “problemas” dos alunos para um contexto mais vasto, extra-escola, na qual a articulação com os grupos domésticos e as comunidades locais poderia ser uma das chaves para esse atravessar  de fronteiras culturais que possibilitaria um novo tipo de relacionamento pessoal e pedagógico. Nesse sentido, é imperioso sair do pequeno mundo fechado (e artificial) da sala de aula, saltar os muros da escola, conhecer as comunidades reais pois «é preciso entender o que o lar ensina», como nos determina Raúl Iturra (1997:37). E reconhecer isso, é abandonar a ideia (quantas vezes geradora de uma acção improdutiva) de o aluno como “tábua rasa”, qual “esponja” disponível para absorver todo o saber escolar1, formatado num «pensamento positivista e racionalista» de que já Aquilino Ribeiro nos dava conta em A Via Sinuosa:

«o ensino oficial, francisante, tão falho de sentido como pretensioso em considerar a vida como um debate em que só jogam elementos racionais» (1918:345).

Aquilino Ribeiro, 1952

Alguns resultados são já visíveis, quando se passaram a considerar como tarefa do acto educativo, o promover a identidade cultural dos alunos, o fomentar a herança cultural pela manutenção dos laços com a sua língua, tradições e costumes de origem, o reconhecer a sua experiência social e cultural como válida e significativa, o respeitar os ritmos e estilos de aprendizagem e de desenvolvimento de cada um (Cardoso, 1998, 2001, 2001a). Ir além do consignado nas orientações curriculares e nos perfis de desempenho profissional, e pôr em prática «pedagogias da divergência e não apenas de convergência», como o propõe Ricardo Vieira (1999a:152), é um dos desafios que se coloca à generalidade dos professores e não apenas àqueles que enveredaram pelos complexos e atribulados caminhos da educação multicultural.

O terceiro grande contributo da Antropologia como ciência para a pedagogia como prática, veio da sua especificidade metodológica. O método etnográfico tem ganho adeptos no seio da comunidade escolar. Investigadores educacionais, ligados aos métodos qualitativos (desenvolvimento de projectos de investigação-acção, estudos de caso, histórias de vida) e Professores apostados num posicionamento construtivo, reflexivo e investigativo perante um currículo em acção, têm encontrado no instrumental antropológico as ferramentas operativas para esse trabalho de campo, situado e contextualizado. Numa investigação cada vez mais centrada na escola, nas práticas concretas de professores e alunos, e nos territórios educativos, os saberes metodológicos desenvolvidos pela Antropologia revelam-se de uma enorme utilidade e eficácia (cf. Caria, 1997). A observação participante tem-se, por isso mesmo, vulgarizado a tal ponto que a antropóloga brasileira Neusa Gusmão, que realizou trabalho de campo em várias escolas de Portugal, alerta para o risco que se corre, quando os professores aplicam a técnica, despem a teoria e num processo de reducionismo da antropologia fazem «participação observante em vez de uma observação participante»2. Uma prática até certo ponto compreensiva, quando no profissional da educação há, em primeira instância, a preocupação natural com a “acção” quotidiana, imediata, quantas vezes urgente, no cumprimento de deveres funcionais com os seus alunos, junto dos colegas e da administração. Daí o relegar-se para um outro plano a “investigação”, que implica uma outra atitude, até de um certo distanciamento face aos problemas concretos que urge resolver (e numa instituição viva como a escola, povoada de tantos actores e com tantas carências, os problemas são o trivial naquele viver colectivo). Esta inversão metodológica de que nos alertava Neusa Gusmão, é um “mal” transitório, assim o esperamos, pois a formação dos professores tem vindo a pautar-se por padrões de qualidade e exigência acrescidos (o mestrado é hoje a habilitação mínima indispensável) e a tornar-se uma prática permanente (quer nas modalidades de formação contínua, complementar ou especializada). Sendo assim, a aquisição de competências metodológicas neste domínio e o contacto com o conhecimento acumulado na área da Antropologia da Educação parecem-nos inevitáveis, senão a curto, pelo menos a médio prazo.

Numa fase inicial, a Antropologia da Educação colocou-se a montante do processo educativo formal. Centrou-se naturalmente nesse mundo “para além da escola”, nos contextos familiares e comunitários onde a criança aprende a integrar-se no grupo, a fazer sua a cultura desse mesmo grupo. Preocupou-se com as aprendizagens informais inerentes aos processos de endoculturação dos grupos sociais. Privilegiou os saberes locais. A aprendizagem e a transmissão da cultura inicia-se muito antes da entrada formal na escola e mantém-se mesmo enquanto esta decorre. Ora esta realidade educativa e cultural, exterior ao universo escolar,tendia a ser  ignorada, subestimada ou mesmo desvalorizada pelos agentes responsáveis das instituições escolares que «terão hierarquizado o que apenas é diferente» (Vieira, 1999:80). Incompreensões, mal entendidos, desajustes, choques, conflitos, eram o resultado desses «dois mundos à parte». O olhar etnocêntrico ou discriminatório da escola, muitas das vezes sem disso ter consciência, sobre práticas culturais dos seus alunos, dos seus grupos domésticos e comunidades de origem (Carlos Cardoso, em relação às famílias e comunidades das minorias, fala mesmo num «olhar socialmente patológico», 2001:22) conduzia a becos sem saída: a rentabilidade académica era afectada, o relacionamento era tenso, o insucesso emergia, o abandono fechava o ciclo. E tudo por desconhecimento da forma como essas crianças operavam em termos culturais, de como elas dão sentido à realidade. A Antropologia da Educação, combinando a análise emic e etic, deu visibilidade a esses mecanismos e desocultou os processos de subalternização ou marginalização. Habilitou os professores com novos saberes, que lhes permitiram deixar de ver no aluno a “causa” exclusiva do fracasso escolar. Repensar os processos de ensino, e a organização interna das próprias escolas passou a ser um objectivo estratégico. Um modo de equacionar práticas ancestrais num espaço pouco dado à mudança e à auto-crítica.

Mais recentemente, a Antropologia da Educação passou também a interessar-se pela escola, enquanto instituição autónoma, com vida própria. Consequência lógica da centralidade que a escola tem vindo a ganhar na generalidade das sociedades contemporâneas. Uma das instituições a que mais anos se está ligado e umas das mais importantes para dar o sentido de coesão e continuidade sociais a um qualquer país. Durante bastante tempo, a escola foi um campo de trabalho relativamente descurado pelos antropólogos (as sociedades sem escrita não a conheciam). No entanto, a escola reúne condições similares às que a tradição da pesquisa antropológica encontrou noutros objectos de estudo. A saber: comunidade pequena em termos numéricos, bem delimitada em termos espaciais, relações personalizadas entre actores sociais, certa unidade e coerência interna que lhe advêm de objectivos mais ou menos comuns, e um certo conservadorismo nos seus propósitos de acção. Tudo isto permite que dela se tenha uma visão de conjunto, sendo possível abarcá-la como um todo. Esta preocupação em conhecer o seu funcionamento, por dentro, decorre, nomeadamente, da crescente heterogeneidade cultural das populações estudantis, que introduziu ainda mais complexidade à tessitura escolar. Hoje, nela interagem diversificados actores sociais, portadores de identidades, lógicas e estratégias, de poder e de resistência, diferenciadas e, não raras vezes, contraditórias e até conflituais. Saber como a escola se organiza e gere, segundo princípios de inclusividade vs. exclusividade, as pluralidades de apropriação dos espaços da escola e dos seus saberes, é um dos objectivos de estudo da Antropologia da Educação. A análise das dinâmicas endógenas à escola pressupõe um trabalho etnográfico desse ritualizado quotidiano educativo. Conhecer e entender a “cultura escolar”, nas suas reconfigurações temporais, é possibilitar, ao conjunto da chamada «comunidade educativa», a reflexividade institucional que (re)orienta as racionalidades que procuram dar sentido à acção educativa formal.

Em suma, e socorrendo-nos de Henry Trueba, podemos definir Antropologia da Educação como uma disciplina que «attempts to identify the schooling experience of children and the role of the family in children’s education from the perspective of the home culture, and to examine school problems in their cultural context» (1993:196).

Notas

1. Cf. Paulo Freire e a sua crítica à concepção “bancária” da educação.

2. Intervenção de Neusa Gusmão no seminário de doutoramento, ISCTE, 25/10/2001.

Referências

CARDOSO, Carlos (coord.) (1998) Gestão Intercultural do Currículo – 1º Ciclo. Lisboa: ME-Secretariado Coordenador dos Programas de Educação Multicultural/ Educação Intercultural, nº 10.

CARDOSO, Carlos (coord.) (2001) Gestão Intercultural do Currículo – 2º Ciclo. Lisboa: ME-Secretariado Entreculturas/ Educação Intercultural, nº 11.

CARDOSO, Carlos (coord.) (2001a) Gestão Intercultural do Currículo – 3º Ciclo. Lisboa: ME-Secretariado Entreculturas/ Educação Intercultural, nº 12.

CARIA, Telmo H. (1997) “Leitura sociológica de uma experiência de investigação etnográfica”. Sociologia -Problemas e Práticas, nº 25, pp. 125-138.

GRÁCIO, Sérgio (1980) “Insucesso escolar: o sucesso do sistema”. Escola, nº 25, Maio-Junho 1982, pp. 22-4.

ITURRA, Raúl (1990) Fugirás à Escola para trabalhar a terra: ensaios de Antropologia Social sobre o insucesso escolar. Lisboa: Escher/ A aprendizagem para além da escola, nº 1.

RIBEIRO, Aquilino (1918) A Via Sinuosa. Amadora: Livraria Bertrand/ Obras Completas de A.R., 1983.

TRUEBA, Henry T. (1993) “Culture Diversity and Conflict: The Role of Educational Anthropology in Healing Multicultural America” in Patricia Phelan e Ann Locke Davidson (eds.) Renegotiating Cultural Diversity in American Schools. NY and London: Teachers College Press, pp. 195-215.

VIEIRA, Ricardo (1999) Histórias de Vida e Identidades: Professores e Interculturalidade. Porto: Edições Afrontamento/ Biblioteca das Ciências do Homem, nº 31.

VIEIRA, Ricardo (1999a) “Da Multiculturalidade à Educação Intercultural: a Antropologia da Educação na Formação de Professores”. Educação, Sociedade & Culturas, nº 12, pp. 123-162.

segunda-feira, 17 de abril de 2023

UMA SALADA DAS NOSSAS

 Luís Santos

Salina da Fonte em Alhos Vedros

Aqui nesta região, distrito de setúbal, margem sul do Tejo, a exploração do sal é atividade que se perde em tempos atrás dos tempos, idade da pedra. Os processos de produção foram-se alterando, mas o sal foi (e ainda é) um elemento fundamental na alimentação e na preservação dos alimentos, mas não só. O seu uso mais que terapêutico está bem explícito numa das boas aventuranças cristãs: “sois o sal da terra”.

Por exemplo, nos vedros onde se cristalizaram marinhas, ou nos vestígios de antigas cetárias, relembram-se sinais da ocupação romana do lugar que nos trazem à memória Equabona, ou Aquabona, nome romano de Coina antiga, posteriormente moura, lugar de elogiadas medicinais, ou no lugar que costumamos designar por “Alius Vetus” (nem que o topónimo tenha sido inventado em tempo posterior), entre outros lugares do distrito, a produção de sal e a salga do “garum”, pasta de peixe que se produzia e circulava por todos os cantos do vasto império que circundava o “mare nostrum”, era coisa sagrada.

Sal que por aqui tinha elevada qualidade, branquíssimo, puríssimo, que valia o seu peso em ouro, facilitador de fortunas imensas que não para os marnotos. De resto, sal donde provém a palavra salário... um tipo de moeda corrente a um tempo com que se "pagavam os salários", mas também absolutamente precioso, para preservar peixe e carne, com que se enchia a barriguinha e dava força extra aos infindáveis exércitos e aos divinais bacanais dos democratas cidadãos de Atenas ... até que chegaram os frigoríficos.

Além da importância do sal e das boas águas de prata que brotavam das fontes, em nascentes que por debaixo da terra vão descendo desde a Arrábida e se estendem pelo vale do Tejo, existe uma famosa planta de folhas verdes, alimento de utilizações várias que vão desde os embalsamamentos e mumificações, até ao uso na cura de várias doenças. A salicórnia, de seu nome científico, mas também conhecida popularmente por espargos do mar, ou cristo marino, ou alhos verdes… Diz no portal “Horta dos Peixinhos”, uma das empresas que promove a sua cultura, um alimento extremamente versátil que cresce ao longo das salinas costeiras do mediterrâneo, podendo ser consumida crua ou cozinhada, numa grande diversidade de pratos, planta diurética e medicinal, rica em vitaminas e sais minerais que possui características imuno-estimulantes, antioxidantes, anti-inflamatórias, anti-tumorais e antidiabéticas, contribuindo para a prevenção de problemas de hipertensão artéria. E, certamente, um dos ingredientes da poção mágica dos gauleses, Astérix e Obélix, acrescentamos nós.

Eis o resumo perfeito para um texto que se quer curto: os alhos verdes, mais os seus sais e o sal, e as águas de prata, pretensa salada do rejuvenescimento, elixir da longa vida e da imortalidade, qual pedra filosofal. 

E, agora, que nos ajudem os fitoterapeutas.