terça-feira, 31 de dezembro de 2019

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

A INAUGURAÇÃO DO QUARTO NOVO

Uf! Depois das férias as arrumações finais. 

Mas há quantos meses não víamos a casa limpa e sem pó. 

E agora que os móveis e os bibelôs regressaram ao lugar e que os tapetes foram recolocados e o quarto das miúdas está pronto a usar, damos conta que voltamos a habitar uma casa normal e, pelas alterações que lhe fizemos, com a particularidade simpática de termos a sensação de estarmos a viver num apartamento novo. 

Falta redistribuir as pinturas mas temos uma série de obras para emoldurar. 


Mas recuperámos o sossego de uma casa confortável. 



Acontece é que todos estes afazeres e o reajustamento dos sonos ao nosso fuso horário pouco ou nenhum espaço deixou para aqui registar o que quer que fosse e depois desta ausência também não tive oportunidade de me pôr em dia com as notícias. 

Vejo que o país continua na ressaca dos fogos ainda mais intensos que os do ano passado e mais um vez com os contornos do resultado de acções criminosas. 


Entre nós, o estado de direito vai a pique. 


Em Najaf, a polícia iraquiana e forças do exército norte-americano cercaram uma mesquita em que se refugiou Al-Sadr e o bando de foras da lei que constituem a sua milícia armada. Há conversações para que se entregue e desarme os seus homens, sabendo que lhe oferecem a possibilidade de transformar o seu movimento em partido político, podendo assim candidatar-se ao exercício do poder.

Cá para mim, só em troca de poder absoluto aquela gente aceitaria sair do lugar em que se encurralaram. 

Dentro de dias haverá o assalto àquele lugar de culto, com o que o líder radical pensa ter condições de originar uma onda de protestos e solidariedades entre as populações árabes e muçulmanas, capaz de traduzir em mais fortes apoios para a sua luta de impor à sociedade iraquiana uma visão totalitária e integrista do Islão, naturalmente sem a presença das tropas aliadas naquele território. 

Seria o pior cenário que poderia resultar da queda do regime de Saddam Hussein e parece-me incompreensível como no Ocidente continua a tibieza de não se apoiar clara e firmemente a consolidação de uma sociedade aberta e um estado de direito no Iraque. 


Em tempos de cinismo relativista, curvamos a espinha perante as trevas que uma visão medieval do mundo aspira por fazer cair sobre grande parte do planeta. 



A Matilde e a Margarida estão encantadas com o novo quarto. 
Ali dormiram esta noite pela primeira vez. 



E pela caixa do correio fiquei a saber que no passado dia sete, por ocasião da festa do octogésimo nono aniversário do CRI, perdi a cerimónia de entrega das medalhas de vinte e cinco anos de sócio a que já tenho direito. 


Alhos Vedros 
  11/08/2004

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

REAL... IRREAL... SURREAL.. (378)


Death to the Invader, David Siqueiros, 1941-42 
Piroxilina, mural, 240 m2 Escuela México, Chillan, Chile.

David Alfaro Siqueiros nasceu a 29 de Dezembro de 1896 na Cidade do México, e morreu a 6 de Janeiro de 1974 nesta cidade. Foi um dos maiores pintores mexicanos e um dos protagonistas do muralismo mexicano, juntamente com Rivera e Orozco.

Siqueiros fez pintura de cavalete, mas distinguiu-se principalmente pela pintura mural, onde foi um inovador em termos técnicos. Tinha uma grande preocupação em experimentar novos materiais e novas técnicas, tendo a sua investigação nesta área sido uma importante contribuição para a pintura mural.

A grande temática da sua obra é a revolução mexicana e o povo mexicano, que ele representou como o protagonista da luta por uma sociedade melhor, a sociedade socialista utópica. A sua pintura é de intervenção política, de crítica da sociedade capitalista e de defesa dos ideais comunistas, que em Siqueiros assumem uma dimensão monumental pela força e franqueza das suas convicções. Em 1966 foi-lhe atribuído o Prêmio Lenin da Paz.

in Wikipedia

Selecção de António Tapadinhas

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Histórias da Nossa Terra (2)


Luís Santos

UM CONSELHO RÉGIO NO "CAIS VELHO"

D. João I, Grão-Mestre da Ordem (religiosa) de São Bento de Avis e, por isso, também designado por Mestre de Avis, foi aclamado Rei de Portugal nas cortes de 1385 e esteve à frente dos destinos do país até 1433. Quatro anos depois de se tornar rei desposou Filipa de Lencastre, a mãe da famosa Ínclita Geração.

A “Ínclita Geração”, ou “Ilustre Geração”, era constituída por D. Duarte, futuro rei de Portugal, também escritor e poeta; D. Pedro, infante de reconhecido esclarecimento intelectual; o infante D. Henrique, o Navegador, figura de proa dos Descobrimentos Portugueses; D. Fernando, o infante Santo; D. João, condestável do reino; e a infanta Isabel, Duquesa de Borgonha.

Corria o ano de 1415 quando D. João I, em luto por sua mulher que falecera acometida pela peste negra, e para se defender da própria epidemia, se refugiou em Alhos Vedros, tendo ficado instalado, muito provavelmente, no Palácio do Cais do Descarregador, ou do “Cais Velho”, em lugar, mais ou menos coincidente, onde ainda hoje existe o Palacete dos Condes de Sampaio.

Nas traseiras desse Palácio haveria um alpendre que protegia daquele intenso sol do mês de julho, contíguo ao qual se estendia um belo jardim. Em resumo, podemos imaginar D. João I com seu filho bastardo D. Afonso, que o acompanhava, recebendo os infantes e debatendo sobre as possibilidades de, para o bem e para o mal, se ir guerrear a Ceuta, naquele que constituiu um dos três conselhos régios que se fizeram a este propósito (Lisboa, Torres Vedras e Alhos Vedros). Acentue-se que a conquista de Ceuta costuma ser referida como a primeira etapa da expansão ultramarina portuguesa, constituindo por isso mesmo um acontecimento de extrema importância na história do país e, logo, de maior valor para a história local.

Este foi, sem dúvida, um período áureo da história da região que tinha, então, Alhos Vedros como sede de concelho. Entre outros atributos, sabe-se que a dimensão do território era apreciável estendendo-se entre os limites da Aldeia Galega (Montijo), Palmela e Coina; o número de habitantes era muito significativo para a época, falando-se em “oitocentos e tantos moradores”, alguns deles da alta nobreza; tinha direito de voto nos destinos do país quando se reuniam as “Cortes”; dava-se conta de duas Igrejas, várias ermidas e dois conventos; uma crescente atividade económica que se foi desenvolvendo desde os inícios da nação, onde, relembre-se, pontificava uma importante indústria naval, uma abundante produção agropecuária, muito sal, lenha e cerâmica, num período onde a navegabilidade do estuário do Tejo e a proximidade com Lisboa eram elementos cruciais de produção de riqueza.
E é por estas, e por outras, que a recuperação do Palacete do Cais Velho, possível lugar de testemunho das histórias da história que por estes sítios se viveram, seria de grande importância para a região.


DE ALHOS VEDROS ATÉ À ÍNDIA

Valorizando a história da nossa região, D. Manuel I nasceu em Alcochete em 1469 e foi entronizado rei de Portugal em 1495. Haveria de seguir a política de expansão ultramarina dos seus antecessores, de tal forma que, dois anos depois de ter subido ao trono, no dia 8 de julho de 1497, Vasco da Gama estava de partida para a Índia, tal como, algum tempo depois, no dia 9 de Março de 1500, Pedro Álvares Cabral partia para aquela que acabou por ser a Viagem da descoberta do caminho marítimo para o Brasil.

Sobre esse crucial acontecimento da história de Portugal, a Viagem de Vasco da Gama à Índia, e continuando a estabelecer relações com a história local, deixamos breve testemunho sobre Álvaro Velho, cronista e marinheiro, o presumível autor do diário de bordo “Roteiro da Índia”, pois assim se chama o texto que nos é valioso legado e que, em 2013, foi inscrito pela UNESCO na lista do património Memória do Mundo.

Álvaro Velho era natural do Barreiro, na altura um lugar que ainda se encontrava integrado em Alhos Vedros. Como sabemos, o Barreiro é um dos “filhos” de primeira geração do Concelho de Alhos Vedros, do qual viria a autonomizar-se em 1521, através de “Carta de Vila” atribuída pelo rei D. Manuel I. Atualmente, além de alguma toponímia local, dá nome a uma Escola no Lavradio.

Como curiosidade, relembre-se que foi em memória deste “Roteiro da Índia” que a bola com que se jogou o Campeonato Europeu de Futebol, em 2004, que se realizou em Portugal, foi justamente batizada com o nome de “roteiro”. Enfim, uma breve nota de rodapé que poderá ter aproveitamento para o futuro museu do Palacete do Cais Velho.

Sobre Álvaro Velho, não existem muitas informações da sua vida. Sabe-se que viveu entre os séculos XV e XVI, marinheiro, cronista, que foi com Vasco da Gama à Índia e que na viagem de regresso, como diz Branquinho da Fonseca em As Grandes Viagens Portuguesas, “deve ter desembarcado na Guiné, onde terá ficado por qualquer razão imprevista. Na verdade o Roteiro termina bruscamente no dia em que atingem os Baixos do Rio Grande, e posteriormente há notícias dum Álvaro Velho na costa da Serra Leoa, onde parece ter estado durante oito anos. Escreveu, além deste Roteiro, uma "Descrição da costa ao sul do rio da Gâmbia", uma "Relação dos Reinos ao sul de Calecut" e um "Vocabulário malaio". O Roteiro foi publicado pela primeira vez em 1838, tendo sido seguidamente traduzido para francês, inglês e alemão.”


A ILHA DOS AMORES: ENTRE ALHOS VEDROS E O BARREIRO

No círculo que o rio faz
aqui, avista-se uma ilha
que a voz mansa das águas
chama de eterna maravilha,
num momento mais insensato
chamaram-lhe “Ilha do rato”,
mas eu nos meus sonhos às cores
chamo-lhe de “Ilha dos Amores”.

Podemos dizer, então, que o nosso cronista Álvaro Velho, o tal barreirense de Alhos Vedros, à semelhança dos outros nautas que foram na Viagem do Gama até à Índia, e seguindo o Canto IX dos Lusíadas, de Luís de Camões (1524-1580), também terá entrado na tal “Ilha dos Amores”.

Como diz Agostinho da Silva, “Aqueles marinheiros portugueses, aquela esquadra de Gama que volta, (…) é uma Deusa de fora, é a força interna do mundo, é a máquina interna da História que leva a Ilha dos Amores para diante dos navios portugueses. (…) Camões dá este conselho pedagógico aos portugueses: «os meus amigos, se querem alcançar o Céu na Terra, tratem do seu navio, mantendo-o em ordem, com disciplina a bordo, porque um dia a Ilha dos Amores aparece» (…) É como se eles tivessem entrado em alguma coisa na qual tivessem plena licença de serem homens inteiramente livres. São as Ninfas, é a comida, é a paisagem, são os passeios, o encanto das conversas, tudo isso há. Portanto, para Camões, um projecto de futuro inclui uma inteira liberdade do homem e um inteiro gosto do homem pela apreciação dos fenómenos.” E, continua Agostinho, “na Ilha dos Amores acontece uma coisa muito curiosa, das tais Deusas, vem a possibilidade deles descobrirem o futuro. Os marinheiros portugueses ouvem, da Deusa, aquilo que será o futuro da História de Portugal. Ao mesmo tempo que estão presos a fenómenos libertam-se da tal cadeia do Tempo.”

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

GRAFFITAR A LITERATURA (XXVII)

A Póvoa de Arquimedes

À memória do Dr. Arquimedes da Silva Santos (06/1921-12/2019)

«Aqui agora que dar-te
Um poeta pobre médico
Senão algumas palavras?»
(Cantos Cativos, 1967: 73

Arquimedes da Silva Santos, poeta neo-realista, deu-nos mais que palavras (em vários livros de ensaio e poesia). Cuidou do corpo e da mente, de muitos de nós, enquanto «médico dos nervos» (como o povo da sua terra, Póvoa de Santa Iria, desconhecedor do jargão científico, o qualificava profissionalmente). Fez obra no ensino e na investigação, sendo uma referência nacional no campo da Educação pela Arte (Conservatório Nacional, Escola Superior de Dança - IPL, Centro de Investigação Pedagógica do Instituto Gulbenkian da Ciência), na cultura (co-fundador da revista Vértice, em 1942, e do Museu do Neo-realismo, em 1990 e 2007), no associativismo (MOVEA, APECV…) e na intervenção cívico-política.

Reconhecido e celebrado em vida (algumas homenagens só pecaram por tardias): a Presidência da República agraciou-o com a Ordem do Infante (1998) e a Grã-Cruz da Ordem da Instrução Pública (2001); o Museu do Neo-realismo dedicou-lhe, na inauguração do seu novo edifício na Rua Alves Redol em Vila Franca de Xira, uma “Exposição Bibliográfica - Sonhando para os Outros”, aberta ao público de 20/10/07 a 10/03/08; a Junta de Freguesia incluiu-o na toponímia da cidade (uma Praça na zona nova da Póvoa); o município de VFX erigiu-lhe uma estátua (da autoria de Francisco Simões, inaugurada a 25 de Abril de 2008) no Parque público da Quinta da Piedade; foi-lhe atrubuído o doutoramento honoris causa, pela Universidade de Lisboa (2018): o elogio esteve a cargo de António Nóvia (embaixador na UNESCO, ex-reitor) que o caracterizou como «a força da serenidade». 

Muitos escreveram sobre Arquimedes da Silva Santos. Algumas dissertações se fizeram sobre si e a sua acção no campo da Psicopedagogia e da Educação pela Arte (Dalila Moura Baião, Carla Candeias Meira…). Muitas entrevista lhe foram realizadas; deixo a referência a uma das últimas, conduzida por Ana Bigotte Vieira, na Medi@ções, v. 2, nº 3, 2014, pp. 132-146 (revista online da escola onde leccionei durante 33 anos, ESE-IPS), aí confessa «eu que nem quis ser professor» (apesar de ter feito o curso de Ciências Pedagógicas na U. Coimbra, no ano do meu nascimento).

                                                                             
Aqui, gostava de realçar o seu trabalho poético. Autor de três obras – Voz Velada (Textos Vértice, 1957), Cantos Cativos (Lisboa: Portugália /colecção Poetas de Hoje, nº 27, 1967; obra que foi crescendo nas posteriores edições: 1986, Livros Horizonte e 2003, Campo das Letras) e Poemetos Locais (Póvoa Stª Iria: Lua de Marfim /colecção Luar de Poesia, nº 87, 2016; curiosamente, com o nome encurtado, apenas Arquimedes Silva; o que terá motivado tal amputação onomástica?).
Muitos dos seus poemas dão-nos conta de algumas das mudanças ocorridas na sua terra natal, na altura em que se comemora o 20º aniversário da elevação a cidade (a freguesia da Póvoa, criada em 1916, só passara a vila em 1985).

«O Tejo era o rio que passava na minha aldeia
ó lembrança
E no Tejo passavam
fragatas enfunadas
e golfinhos em fila saltavam
e o rio era dois mares
que a ilha separava
aqui
banhos matinais nos lodos marginais
além
oceano de sonhos
à espera de marés
hoje
o rio da minha aldeia outrora de marítimos
cidadela industrial
satélite dormitório da capital
cortejo de esgotos
ó Tejo» (Poemetos Locais, p. 23)

Um lugar onde a agricultura passou a segundo plano, com a instalação da Soda Póvoa, em 1934; esta unidade fabril foi o motor de transformação da Póvoa num importante pólo industrial e operário.

«E o mouchão
Todo orlado de lodo
De agricultura já mecanizada
E águas minerais –
E nesta margem
Os esteiros, as salinas
Chaminés fabris e cais industriais…» (Cantos Cativos, p. 63)


«Água do Tejo em tabuleiros geométricos
Pelos depósitos-comportas às salinas
Em quente Agosto lembra neve nas colinas
Que os rodos raspam de rectângulos simétricos,

Espelhos quebradiços das crostas de sódio
Onde o sol reverbera e ventos evaporam
Precipitam também daqueles que se exploram
As gotas de suor e as lágrimas do ódio.
(…)
Pirâmides de egiptos lá da minha Infância
Pela estrada do cais à casa do Avô.
Industriais memórias à mulher de Loth
Por lágrimas cristalizadas na distância…» (p. 69)

Alguns dos seus poemas foram orquestrados por Fernando Lopes Graça e interpretados pela Academia de Amadores de Música; um deles seria Hino do MUD (durante o seu funeral, não-religioso, no dia 11 deste mês, ouvimos, ao vivo, algumas dessas belas canções).

Estes dois ‘quadros’, que ilustram este artigo, são da autoria do conhecido writer Sérgio Odeith (1976) e reportam-se a outro rio (Sado) e integram um extenso mural pintado numa outra cidade, Alcácer do Sal. Mas podiam ilustrar os ancoradouros das pequenas embarcações dos avieiros – localizados entre o «cais da pedra» e o «campo da bola» – e os marnotos nas múltiplas salinas e no «barracão do sal» existente em dois locais da povoação.

Post Scriptum (mais pessoal)

Vivi na Póvoa de Stª Iria até aos 26 anos. Arquimedes da Silva Santos foi meu médico de família (quando tal conceito ainda não fora criado) e no UAP (numa recaída, fruto de excessos de «júnior», aconselhou-me, em vão, trocar o futebol por outro desporto menos violento).
Mas não nos cruzávamos apenas no seu consultório. Quando, diariamente, eu regressava do Liceu Nacional de Gil Vicente (Lisboa), apanhávamos o mesmo comboio, o das 13:33h (ele viajava na tranquilidade da 1ª classe); a minha curiosidade sobre aquelas suas deslocações, só veio a ser satisfeita muitos anos depois: ele vinha do Centro de Investigação Pedagógica, onde trabalhava desde 1965.
Nas peças de teatro do GDP (também lá representei algumas) era sempre um convidado especial.
Lembro-me, poucos dias depois do 25 de Abril de 1974, de o ouvir discursar, em cima de um improvisado ‘palanque’ num comício espontâneo no Largo da Estação; ele era, naquela terra, o símbolo da oposição anti-fascista (fora condenado, em 1949, a 18 meses de prisão).
Acompanhei-o, solidário, em dois momentos de consagração institucional: quando Jorge Sampaio o condecorou, em 24/01/98, no Palácio Nacional da Ajuda, na cerimónia de encerramento da ‘Semana da Educação’ e quando a Universidade de Lisboa lhe atribuiu, em 27/03/18 (e com que atraso!), o doutoramento honoris causa.
Trocámos cartas, em 2003 e 2009, a propósito da oferta de livros meus (que ele sempre comentou, avisando «não sou crítico nem exegeta, é a minha sensibilidade que me dita mais que as palavras sobre um texto poético») e da “Introdução a uma leitura” que redigiu para o meu Solitários Anónimos.
Àquele que tive como conterrâneo, médico e prefaciador, deixo aqui o público registo da profunda admiração, respeito e amizade que lhe devotei.

Luís Souta
texto e fotos

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

Dias sem história, repouso e praia, livros conversas e uma tarde de passeio pela floresta da Tijuca com a primeira mulher do Luís e mãe dos seus filhos. 


Foi bom revê-la e ficámos contentes por saber que está bem, a pensar em juntar trapinhos com Robson e em fase de abraçar um novo trabalho no sector das tipografias. 
De resto continua com o mesmo espírito alegre e positivo de sempre, apesar de continuar eternamente atenta à educação dos filhos e aos perigos potenciais que correm numa cidade como esta. 

Também ela gostou de nos rever e de conhecer o Quim, o Daniel e a Matilde e de rever a Margarida que está quase do tamanho da mãe. 



“-Então, pardalito, estás a gostar das férias?” 
“-Sim! Mas agora sai daqui que a mãe está a ler uma história.” –E, em acto contínuo, lá a Matoldas continuou a leitura para o primo Daniel, ambos refastelados no sofá da sala do tio onde se refugiaram das conversas dos adultos. 



Parece que afinal houve água com abundância no planeta Marte. 



E eu gozando estas semanas de férias esquecido de tudo, apenas mantendo os olhos abertos para o mundo que vou vendo neste dia a dia sem compromissos. 


Naturalmente continuamos a desempenhar as funções da paternidade que é permanente e intransmissível, mas agora já não temos que nos preocupar com o desempenho dos cuidados corporais da Margarida que trata de si, sequer dando ensejo a que tenhamos de transmitir qualquer indicação que seja e mesmo a Matilde começa a dar conta da maior parte do recado. 

Permanecem a atenção e os carinhos o que até nos faz bem à alma e completa enquanto seres que dão Graças pela alegria de estarem vivos. 

E é tão bom ter a companhia dos pardalitos e com eles partilhar o prazer das conversas. Eu tenho para mim que esta relação presencial e espontânea é a base do papel educativo dos pais, é ela que nos abre as vias para a autoridade natural de ensinarmos os aspectos e as condutas, de expormos os nossos valores e padrões de comportamento e, paralelamente, transmitirmos conhecimentos de todos os géneros e âmbitos. 
É este relacionamento diário, calmo e respeitoso, o fundamento de todas as restantes vertentes do que um pai e uma mãe devem ser, os adultos a quem compete prestar o auxílio e as condições para que os rebentos se façam gente de bem, com bom carácter. 


“-Quem é que é capaz de dizer onde está o Pão de Açúcar?” –Perguntei, na Vista Chinesa. 
“-Está ali.” –Respondeu a Matilde de imediato, apontando na direcção certa. 
“-Muito bem, pardalito!” –Aplaudiu a mãe, sorrindo orgulhosa. 



Jantar de despedida em casa do Zé Luís que fez questão de retribuir o convite para o aniversário do Luís e de estender a oferta aos familiares portugueses. 
Encontro de parentes, elegante mas sem cerimónias e aos pratos brasileiros de carne e camarão, a Newma acrescentou um bacalhau com natas que ela própria preparou. Vinho verde do meu sogro que todos aprovaram e, ou não estivéssemos entre filhos e netos de portugueses, o vinho do Porto para acompanhar o café que se seguiu aos doces de coco e chocolate. 


Troca de impressões com Edmond a respeito de uma viagem pelo Rio Grande do Sul. 

O Brasil pode ter influências do que quer que se possa entender por portugalidade, mas é americano no seu modo de vida, melhor será dizer, nos seus modos de vida. 



E agora eu já sinto saudade, enquanto do aeroporto vejo ao longe os contornos dos montes que pontuam o cenário de uma cidade maravilhosa. 

Rio de Janeiro

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

REAL... IRREAL... SURREAL... (377)


Rua Alegre, Alfredo Norfini, 1920
Óleo sobre Tela, 50,5  x 60 cm


Alfredo Norfini nasceu na cidade de Florença, na Itália a 23 de Dezembro do ano de 1867 e morreu no Rio de Janeiro, a 23 de Dezembro do ano de 1944.
Filho do pintor Luigi Norfini, cursa a Real Academia de Belas Artes de Lucca, Itália. Participa da Grande Exposição de Artistas Internacionais em Nice, França, em 1892. No ano seguinte, viaja para Buenos Aires, lá permanecendo até 1898, quando vem para o Brasil e fixa residência em Campinas, interior de São Paulo. Nesta cidade funda um curso de pintura com Angelo Bretoni e Agnelo Correia, e organiza a 1ª Exposição de Artes e Artes Aplicadas às Indústrias, em 1900. Mora um breve período, entre 1908 e 1911, no Rio de Janeiro, onde trabalha na revista Renascença. Neste mesmo ano, transfere-se para São Paulo, a convite de Ramos de Azevedo e é nomeado professor do Liceu de Artes e Ofícios, também colabora em jornais e revistas, inclusive a Antártica Ilustrada, da qual é fundador.

in Escritoriodearte.com

Selecção de António Tapadinhas

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

Congonhas e as estátuas dos apóstolos cinzeladas pelo Aleijadinho, doze esculturas cheias de expressão nos rostos de pedra. 


A visita a uma mina de ouro foi o destaque do dia. 
Descida a mais de trezentos metros de profundidade até à superfície de um pequeno lago de águas cristalinas. Pelo monocarril que nos leva e traz de volta à superfície, experimentamos o transporte dos últimos mineiros. 


Estamos cansados mas satisfeitos e só por isso deixamos que o almoço se prolongasse pelo adiantado da tarde. 



Minas Gerais é o primeiro estado federado do Brasil a aprovar legislação que permite a entrada na vida escolar a crianças com seis anos de idade. 

Esperemos que seja uma primeira medida e que se siga uma verdadeira aposta numa boa rede de ensino púbico, capaz de dar conhecimentos e competências às populações jovens, especialmente dos estratos mais desfavorecidos. 



As tangerinas que se compram à beira da estrada sabem bem como mel. 


Congonhas

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

REAL... IRREAL... SURREAL... (376)



O Cavaleiro Azul, Wassily Kandinsky, 1903
Óleo sobre Tela, 55 x 65 cm

Wassily Kandinsky nasceu em Moscovo, Rússia, a 16 de Dezembro de 1866 e morreu em Neuilly-sur-Seine, França, a 13 de Dezembro de 1944.

Filho de um comerciante de chá, após a separação dos pais em 1876, mudou-se para Odessa, com o pai e uma tia, que o incentivou na pintura.

As faculdades de artes costumavam ser vistas como um desafio quase insuperável para muitos, mas não para Kandinsky que se começa a formar, não apenas como pintor, mas também como um teórico das artes.

Paralelamente ao seu trabalho criativo, Kandinsky desenvolveu pensamentos sobre a arte que culminaram com a publicação de “Do Espiritual na Arte”.
Em parceria com Piet Mondrian e Kazimir Malevich fez parte do chamado “trio venerável da abstração”.

Em 1911, junto com August Macke e Franz Marc, formam o grupo “O Cavaleiro Azul”, que realiza diversas exposições em Berlim e em Munique.

Wassily Kandinsky é justamente considerado um líder na arte de vanguarda, fundador da pura abstração na pintura no início do século XX e um dos maiores de sempre.

Selecção de António Tapadinhas

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

O Rio


Infografia de Kity Amaral
Poema de Manuel Bandeira



O rio

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.

Notinha:
Ontem ao ouvir Débussy luzíamos...
https://www.youtube.com/watch?v=CvFH_6DNRCY


quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Um Anjo:


# Muitos vivem imaginando, sonhando , esperando etc, por uma transição, por uma passagem, por uma mudança, por uma evolução, por uma ascensão, pelo término de um ciclo, pelo fim do velho, pela instauração de novos padrões, por extra terrestres, por elevações vibracionais, uma nova terra... etc. Mas nada há de realmente novo para vir... Nada... Absolutamente nada. Não existirá sequer mudança alguma. Esperar, sonhar, passagem, evolução, mudança, velho, novo, término , ascender, etc. são terminologias designatórias e sinónimos de ilusão, conceitos que na verdade não existem. O que acontece é somente reflexo de memória, nem sequer consiste num despertar. Ninguém dorme, ninguém desperta. Tudo existe dentro. Todos possuem seus vários corpos astrais, além do corpo físico, e Todos possuem alma, espírito, além da personalidade e da lógica da mente. Tudo está em cada um de nós, inevitavelmente, constante, presente, vivo e emanante. Ninguém carece de conexão, pois nada foi separado. Tudo é o TODO. O que acontece é esse reflexo de memória ir-se clarificando... só isso. Não existe mudança, transição, portal, sonho a realizar, passagem, ascensão, nova terra, etc ...ninguém muda, ninguém desperta, só se clarifica. O que ocorre é uma clarificação de tudo. Exactamente em verdade é isso somente, clarificação. Clarificação é uma das imanências naturais e permanentes da Eternidade e tudo está sempre eternamente na Eternidade. A Eternidade não muda, não ascende, não passa, não evolui, não termina, nem começa. A ideia de separação, foi fruto de mente, deturpação da ilusão, miragem que nunca existiu, noção, ideia, algo que nunca existiu, nem nunca existirá na Verdade. TUDO É Plenitude, Verdade, Eternidade, Amor. o resto são todas as humanas e não humanas ilusões que não existem de facto.

Canalizado por Ana Pereira

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

Mariana repete a geometria e as fachadas de Ouro Preto. 

Lá estão as janelas que podemos ver em Portugal, desde as minhotas às algarvias, passando igualmente pelas ferragens nas varandas que tanto se repetiram de norte a sul, no século dezanove português. 
No entanto, agora parece-me que este padrão que se observa neste interior mineiro é já uma expressão da cultura brasileira que pode ter, como é de todo natural, reminiscências dos hábitos e costumes da terra dos primeiros colonos mas que não deixa de ser uma apropriação e recriação que os seus descendentes vieram a fazer com a herança que receberam e que, afinal, produziram a partir de uma ruralidade que a própria geografia tratou de diferenciar do mundo de origem e cujos cambiantes, ao absorverem e misturarem contributos de proveniências tão diversas como as dos índios ou das populações africanas, acabaram por materializar num modo de vida próprio do novo mundo. 


Ouro Preto, Mariana, Tiradentes, podem ter parecenças com Portugal mas são nada mais que isso mesmo, dão ares de, mas são lugares americanos, de expressão inteiramente americana, no caso, aliás, de um universo cultural inteiramente baseado na existência da escravatura e do trabalho escravo, facto que salta à vista quando facilmente nos apercebemos das dificuldades em caminhar sobre estes pavimentos empedrados e de que as liteiras e cadeiras para atravessar ruas, expostas no museu da cidade, são um bom indicador. 

Aliás, esse é outro facto que nos leva a compreender muito da tragédia da actualidade brasileira. 
Olhamos a demografia nativa e vemos o predomínio da mestiçagem e da pele negra e não podemos deixar de nos lembrar que a esmagadora maioria dessas pessoas que ainda há poucas gerações eram escravas e que lhes legaram a miséria e a ignorância em termos de competências para viverem numa sociedade de livre contratação do trabalho. 

Boa parte do drama brasileiro reside aí, na imensa mole populacional que nada mais tem para herdar que não sejam as condições propiciatórias da renovação da miséria. 



A Margarida e a Matilde estão cansadas mas andam satisfeitas e brincalhonas. 
Já o Daniel está na idade em que só as cavalitas do pai aguentam as caminhadas e a mãe não faz por menos, que longos são os momentos em que o miúdo deseja o aconchego dos seus braços. 

Para nós, essa fase pertence ao passado, mas sei o que é e o quanto custa. 


Mas também têm assim a alegria de estarem juntos e tão longe de casa. 


Mariana

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

REAL... IRREAL... SURREAL... (375)


Sueño de una tarde dominical en la Alameda Central.
Diego Rivera Muralismo-Mexicano

Diego María de la Concepción Juan Nepomuceno Estanislao de la Rivera y Barrientos Acosta y Rodríguez nasceu em 8 de Dezembro de 1886 em Guanajuato, México e morreu a 24 de Novembro de 1957. Um artista naturalmente dotado, começou sua educação artística formal em uma idade jovem, desde criança sempre quis ser pintor e todos percebiam ter talento para isso.
Ao ficar adulto, após estudar pintura na adolescência, participou da Academia de San Pedro Alvez, na Cidade do México, partindo para a Europa, beneficiado por uma bolsa de estudos, onde ficou de 1907 até 1921. Nesse período é que se tornou reconhecido.
A contribuição da obra de Diego Rivera a arte moderna mexicana foi decisiva em murais e pinturas em cavalete, foi um pintor revolucionário que buscava levar a arte para o público, para as ruas e edifícios, em uma linguagem precisa e direta, repleta de conteúdo social e realista.

in História das Artes

Selecção de António Tapadinhas

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

Manhã de trivialidades. 
Compras de artesanato em pedra sabão na praça fronteira à igreja de São Francisco de Assis. 

“-Ó mãe! Compras uma peça para cada uma e daqui podes levar as prendas para a avó, a Dona Rosário e a tia Engrácia.” –Disse a Matilde com o seu sentido prático. “-Há aqui tanta coisa diferente.” 


Leituras e repouso. 
As vistas merecem que deixemos o pensamento voar ao sabor do que os olhos observam. 

A paisagem está cheia de imagens do passado. 


Nas caves da Casa do Conto ainda está lá o espaço onde os escravos dormiam, as masmorras, melhor seria dizer, com grades de ferro e tudo, para que os pobres não fugissem, fartos do terror e da miséria em que viviam. 



Ouro Preto é a cidade do Aleijadinho, um escultor e Arquitecto do século XVIII que ficou fisicamente defeituoso devido a uma doença e que se dedicou de corpo e alma a expressar a sua profunda religiosidade quer nos traçados das igrejas que projectou, quer na estatuária de santos que deixou um pouco por todos os lugares de oração da cidade. 



A luz de Inverno faz das ruas uma aguarela. 


Ouro Preto

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

REAL... IRREAL... SURREAL... (374)



Retrato da Jornalista Sylvia von Harden, 1926
Óleo e Têmpera sobre Madeira, 121 x 89 cm

O pintor alemão Otto Dix nasceu em Unternhaus, a 2 de Dezembro de 1891 e faleceu em Singen, Alemanha, a 25 de Julho de 1969.
A sua obra expressionista retrata com muito realismo os horrores da primeira grande guerra, mas uma outra faceta menos referida versa o tema da vida nocturna, dos lupanares e da prostituição. Deste pintor é conhecido um tríptico, bastante famoso, Metrópole, que mostra a indigência do pós-guerra nos anos 30 e o aparecimento da música Jazz.
Nos seus magistrais retratos, Dix combinou uma minuciosa atenção ao pormenor com um refinamento amaneirado que se vê nas figuras alongadas e nos ademanes eloquentes.

Selecção de António Tapadinhas

domingo, 1 de dezembro de 2019

EG #118



ESTUDO GERAL
nov/dez    2019           Nº118


"“Onde posso encontrar um ser humano que tenha esquecido as palavras? É com ele que gostaria de falar” - Chuang Tse"


Sumário


2.              O Céu Está Coberto de Ti Pai – José Gil
poesia

3.              «Pescadores bacalhoeiros» - Luís Souta
graffitar a literatura

4.              O Diário da Matilde – Luís F. de A. Gomes
diarística

real…irreal…surreal

estórias
 

---------------------------------Fim de Sumário----------------------------------

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

GRAFFITAR A LITERATURA (XXVI)


«Pescadores bacalhoeiros»

Foto de Luís Souta, 2019

«A todos os pescadores bacalhoeiros portugueses que, se a pesca adrega de ser boa, cantam e bailam sozinhos, como os meninos e os loucos...»

Frederico Draw, arquitecto e graffiter, nascido no Porto, em 1988, com trabalhos no estrangeiro – Espanha, Itália, França, Reino Unido, Alemanha, Cabo Verde, Marrocos, USA – e em muitas localidades do nosso país, designadamente em Cascais. Aí deixou a sua marca no decorrer do Muraliza 2015. Rostos de pescadores anónimos, em grande escala, numa parede que liga a Rua Latino Coelho ao Largo Dr. Passos Vella.

Draw, no seu estilo único, dá-nos a imagem de dois homens do mar, ligados por uma âncora e pela inscrição «Cascaes». Associei este mural ao livro de Bernardo Santareno (1959) Nos Mares do Fim do Mundo, reeditado (fac-simile) pelo jornal Público, no passado Outubro, comemorando desse modo os 60 anos da primeira edição.

Na obra (com 77 capítulos curtos e 8 fotos), Santareno relata-nos a sua experiência nos «doze meses com os pescadores bacalhoeiros portugueses, por bancos da Terras Nova e da Gronelândia». Descreve-nos, em pormenor, um conjunto de figuras humanas, num registo quase etnográfico (em especial, na transcrição da oralidade popular). Gente vinda dos mais variados lugares: Fuzeta, Setúbal, Vila Franca de Xira, Lisboa, Cascais, Gafanhas da Nazaré, Ílhavo, Foz do Arelho, Vila do Conde, Âncora, São Miguel…

«É de Cascais. Verde, a bordo do Senhora do Mar. De pesca à linha… apenas sabe remar; mais nada. É um pobre de espírito: uma debilidade mental risonha, mesmo simpática. A cada pergunta que adreguem de fazer-lhe, responde sempre com o primeiro dislate que lhe venha à cabeça… E sorri contínua, inevitavelmente: um sorriso opaco, sem expressão, obstinado e infantil. É magrote, frágil; quando anda, cruza as pernas em X; e mostra sempre o sujíssimo cabelo loiro, caído para os olhos. 
Chama-se (imaginem!) Ulisses.
Os da companha troçam dele, mas todos o amam.
Pois há bocado fui dar com o Ulisses no meio de um magote de moços e verdes que, à popa, seguiam entusiasmados as maciças evoluções de duas gigantescas baleias: É a época do cio e elas ensaiam os rituais do amor.» (p. 207)

Histórias na primeira pessoa vividas no David Melgueiro, no Senhora do Mar e no Gil Eannes (navio-hospital da chamada frota branca) ou ouvidas de pescadores (verdes, maduros, homens de ofício) em outras viagens e noutros barcos: Bissaia Barreto, João Costa I, Maria da Glória, Infante de Sagres, Cruz de Malta, Paços de Brandão, Pedro de Barcelos… Tempos de um país pobre mas com uma apreciável frota bacalhoeira, direccionada para a pesca longínqua nas gélidas águas do Norte. Pessoas simples e humildes mas audazes e aventureiras, que naquele voluntário exílio de longos meses no alto mar, procuravam mitigar as adversidades de uma vida de miséria, numa sociedade marcada pela profunda desigualdade e exploração.

Nesta epopeia, que se prolongou pelos anos de 1957 e 1958, o jovem médico Bernardo Santareno, pseudónimo de António Martinho do Rosário (1920-1980), parte cheio de dúvidas e preocupações:
«Serei capaz? São mil e tantos homens entregues aos meus cuidados, confiantes na minha proficiência médica… Estarei eu preparada para tal? Terei que me habituar a decidir, rápida e eficazmente, nos casos de urgência: Serei capaz? Sou tão doentiamente indeciso!» (p. 13)

No final, o balanço:
«Cheguei ao fim – seis meses no mar! – da minha campanha de assistência (…)
Faço, mais uma vez, o exame da minha consciência: Cumpri realmente bem? Fui o clínico seguro e decisivo, o amigo sereno e infatigável (eu ia a escrever ‘o pai’) de que estes mil e tantos homens precisavam? Nem sempre: por ignorância, por tibieza, por comodismo. No entanto, uma verdade quase me sossega: eu amo estas gentes e elas sentem que é assim.» (pp. 236-7)

Numa recensão (“Regresso aos mares do fim do mundo”, Público-Ípsilon, 29/04/16, pp. 18-20), Abel Coentrão faz-nos a síntese desta narrativa de viagem: «Os relatos que transparecem nestas crónicas revelam sobretudo um ambiente de hostilidade, de agressividade latente, em que vêm à tona sentimentos subliminares, irrompem brutalmente o ódio, a força, a vingança, o medo na sua ‘pureza’ mais crua. O mar e a morte são dois companheiros persistentes, ambíguos e implacáveis que perseguem como um fado a vida destes pescadores.» Este «universo denso, tenso, e trágico, da obra do dramaturgo» mais se acentuou na sua peça O Lugre, estreada em 1959 no Teatro Nacional D. Maria II.

PS: Conheci pessoalmente o autor de O Judeu (1966), quando estudava e cumpria o serviço militar em Lisboa, nos anos de 1974-75; na altura, ficava frequentemente num apartamento no mesmo prédio onde ele residia, na Rua Rodrigues Sampaio; aí nos cruzávamos, amiúde, assim como na Pastelaria Smarta (um pouco mais baixo, na esquina com a R. Barata Salgueiro) para onde se deslocava num andar calmo e cigarro nos dedos. Homem alto, sempre vestido com elegância, usando óculos de lentes grossas e escuras… distinto e discreto. De uma grande bonomia e tolerância, por exemplo, com a minha confusão de juventude ao baralhá-lo com outro dramaturgo português, que escrevera, em 1968, As  mãos de Abraão Zacut (levada a cena no GDP da Póvoa de Stª Iria, em Março de 1971, onde eu interpretava a personagem David Levi).

Luís Souta

terça-feira, 26 de novembro de 2019

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCRITA

Passeios erráticos pelo sobe e desce da cidade. 


Cruzámo-nos com o pintor César que faz aguarelas dos recantos e vistas de um burgo tão colorido como os seus quadros, de que trouxemos dois exemplares e que a propósito de uma luta entre cães, nos explicou que o mais pequenote estava ali corajosamente a defender a sua dama, uma cadelita branca, “-Ela até que nem é estouvadinha e eles andam sempre junto.”, muito embora naquela tarde andasse a ser perseguida por dois cães vadios. 
“-Eu expliquei p´rá ele que os cachorro são ruim. Eu falei mais de quinze minuto. Tu tem cuidado. Mas o que é qui cê quer? Ele não me prestou atenção. Agora tá aí fugindo que nem um desalmado.” 



No museu histórico lá está a forca de Tiradentes, o general do exército colonial que chefiou uma revolta independentista contra a coroa portuguesa ao tempo de D. Maria I. 
A sentença que o condenou à morte e lhe confiscou todos os bens é um texto implacável. Chegou ao pormenor de determinar que lhe separassem o corpo em quatro pedaços e lhe empalassem a cabeça em lugar público, não sem lhe incendiarem a casa e cobrirem as ruínas com sal para que nada mais ali crescesse. 
Entre as provas reunidas no julgamento e que informaram a acusação está uma pequena brochura em francês a respeito da constituição dos Estados Unidos da América e o livro dos direitos. 

Quarenta anos mais tarde nasceria o Brasil, como império independente, sob a égide do príncipe de Portugal. 


Nos momentos da aguada, a família aproveita para se fotografar. 



Mas hoje jantámos na pizzaria mais agradável em que já alguma vez estive. 
Uma cave rectangular sobre comprida, com paredes em pedra e mesas e bancos de madeira, mas com uma sonoridade própria para conversas entre convivas que não impediam que se distinguisse nitidamente o canto de um único intérprete, com viola e que nos encantou com recriações de Djavan e Milton que acabaram por ser o quinto sabor das pizzas. 


Depois escutámos um concerto por uma orquestra de mulheres, evento que teve lugar num palco instalado na Praça do Palácio dos antigos Governadores e inserido no Festival de Inverno. 


Surpresas de viajante. 

E eis uma de todo inesperada. 

“-Olha Margarida que engraçado o nome nesta placa. O São Lourenço é o santo padroeiro de Alhos Vedros. Vamos ver esta igreja?” 
E lá desviámos por uma espécie de portão de adro e contornarmos a fachada até à porta de entrada. 

“-Olha que engraçado, Margarida, o tecto tem pinturas iguais às da igreja de Alhos Vedros.” 

“-O senhor, está gostando?” E foi assim que do outro do lado do oceano a não sei quantas horas de diferença horária da terra em que nasci e onde me habituei a ver tectos iguais àqueles, aquele sacristão me contou toda a história do martírio de São Lourenço e os significados de toda a simbologia que está associada à cena principal que é a sua condenação ao fogo em que, de acordo com a lenda narrada, ele terá sido assado. 

“-É a grelha em que o santo foi assado.” 

E cheio de humor e do seu sotaque cantado, contou-nos que o mártir brincava com os carrascos dizendo que o virassem para o outro lado, pois já estava bem tostadinho daquele. 

Ainda não foi há muito que o Nuno Cortez esteve comigo na igreja de Alhos Vedros, para escutar um recital de cântico gregoriano e me perguntou quem tinha pintado os tectos – que vale a pena ver, deve dizer-se – e o que significavam as imagens. 

Infelizmente para ele, deu de caras comigo que não soube responder-lhe. 

A Luísa e a Matilde chegaram junto de nós, quando o homem ria com o facto de termos ido tão longe para aprendermos uma história da terra em que nascemos. 

 Ouro Preto

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

REAL... IRREAL... SURREAL. (373)


No Moulin Rouge - A Dança, Toulouse-Lautrec, 1890
Óleo sobre Tela, 115 x 150 cm

Henri Marie Raymond de Toulouse-Lautrec Monfa nasceu em Albi a 24 de Novembro de 1864 e faleceu em Saint-André-du-Bois a 9 de Setembro de 1901.
Foi um pintor pós-impressionista e litógrafo francês, conhecido por pintar a vida boémia de Paris do final do século XIX. Sendo ele mesmo um boémio, faleceu precocemente aos 36 anos de sífilis e alcoolismo. Trabalhou por menos de vinte anos mas deixou um legado artístico importantíssimo, tanto no que se refere à qualidade e quantidade de suas obras, como também no que se refere à popularização e comercialização da arte. Toulouse-Lautrec revolucionou o design gráfico dos cartazes publicitários, ajudando a definir o estilo que seria posteriormente conhecido como Art Nouveau. Filho mais velho do Conde Toulouse-Lautrec-Monfa, de quem deveria herdar o título, falecendo antes do pai.

in Wikipedia

Selecção de António Tapadinhas

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Histórias da Nossa Terra


por Luís Santos



O CONCELHO DE ALHOS VEDROS

Nesses tempos do antigo Concelho do Ribatejo (secs. XIII/XIV), Alhos Vedros constituia conjuntamente com Santa Maria de Sabonha, hoje freguesia de São Francisco pertença do concelho de Alcochete, os dois principais centros territoriais do tempo.

Como diz José Manuel Vargas, "Em meados do séc. XIV, Alhos Vedros caminhava no sentido da sua autonomia municipal, separando-se do concelho do Ribatejo, do qual era, junto com Sabonha, uma das suas sedes concelhias. Desde 1384, pelo menos, que se conhecem referências a um paço do concelho em Alhos Vedros e a diversos ofícios da administração municipal (...).

Importante também será dizer que os direitos senhoriais de Alhos Vedros, desde finais do século XIII, eram em larga medida pertença da Ordem de Santiago. Mas, continuando a seguir Vargas, "Por uma carta régia, datada de 1395 (28 de Agosto), sabemos agora que todos os direitos, rendas e senhorios de Alhos Vedros e do seu termo foram comprados por Gonçalo Lourenço de Gomide, escrivão da puridade de D. João I".

Anote-se que:
i) "escrivão da puridade" era um cargo à época de altíssima importância na hierarquia da administração régia, um "quase" primeiro-ministro dos tempos atuais;
ii) Gonçalo Lourenço de Gomide é avô de Afonso de Albuquerque, governador e vice-rei da Índia.

A IGREJA MATRIZ E DOM DINIS

Embora não se conheça a data certa da sua edificação, pensa-se que a Igreja Matriz de Alhos Vedros tenha sido construída no século XIII, contando, por isso, perto de 800 anos!

Houve quem tivesse referido que a construção do seu núcleo inicial tenha acontecido em meados do século XII (1146), e que foi construída em cima de uma mesquita árabe que já existiria na freguesia, então ocupada pelos mouros, mas a verdade é que não se pode afirmar com rigor que quer a Igreja, quer o lugar de Alhos Vedros, pelo menos com este nome, tivessem origem antes da reconquista cristã, pois que, como se tem dito, o documento escrito mais antigo que refere a existência da Igreja Matriz é de 1298…

O ano de 1298 leva-nos até D. Dinis, nascido em 1261, depois coroado Rei de Portugal no ano de 1279 e até 1325. Diga-se, antes de mais, que falar de D. Dinis é uma forma simbólica de referir toda uma nação, todo um povo. Há referências no seu reinado à existência de um estaleiro de construção naval na área do antigo concelho de Alhos Vedros, denominado de Ribeira das Naus do Coina, no lugar da Telha Velha, hoje concelho do Barreiro, que trabalharia em complementaridade com a Ribeira das Naus de Lisboa, o grande estaleiro do império oceânico, messiânico, português. Como é sabido, foi D. Dinis, que fundou a Marinha Portuguesa. Fernando Pessoa, no seu livro “Mensagem”, designou-o como “o plantador das naus a haver”.

Ficou mais vulgarmente conhecido pelo Rei Lavrador, poderoso que foi o seu jeito reformista na política agrícola do país, jeito reformador que também teve na educação e, vai daí, funda o “Estudo Geral”, em Lisboa, a primeira Universidade Portuguesa que muito ajudou a dar “novos mundos ao mundo”, como diria Luís de Camões, já que vamos com poetas.

Foi ainda D. Dinis, rei e poeta, que protegeu os famosos Templários, ao arrepio do Papa e da poderosa corte francesa, que juntos deram a terrível ordem do seu aniquilamento. O nosso Rei não só os protegeu como lhes manteve os privilégios, tendo em Portugal a Ordem do Templo passado a Ordem de Cristo, a tal que teve um papel determinante na expansão ultramarina.

Não poderíamos acabar esta alusão a D. Dinis sem falar na sua Santa companheira, a Rainha Isabel de Aragão, ao que parece mulher muito piedosa, amiga dos pobres, espírito pacifista e, dizem, milagreira. Foi ela que introduziu em Portugal a famosa festa do culto popular do Espírito Santo que cultuava a partilha de bens pelos mais pobres, ocupava-se com a libertação social dos desavindos e, ponto alto da festa, sempre se coroava simbolicamente uma criança como imperador do Reino. Ora, como nós sabemos, e insistindo com Fernando Pessoa, “o melhor do mundo são (mesmo) as crianças”.

SÃO NUNO DE SANTA MARIA POR AQUI?

D. Afonso IV, filho de Dom Dinis e seu sucessor, rei de Portugal entre 1325 e 1357, na esteira das políticas do pai, desenvolveu muito a Marinha Portuguesa, nomeadamente a Marinha Mercante. É ainda durante o seu reinado que se fazem as primeiras explorações atlânticas e se descobrem as Ilhas Canárias. A existência de um estaleiro de construção naval, neste período, no concelho de Alhos Vedros, estaleiro complementar ao da Ribeira das Naus, como já se disse, faz com que a sua história se relacione de perto com o incremento desta política nacional virada para o mar.

D. Afonso IV, infelizmente, acabaria também por ficar na história pelas piores razões, ter mandado matar Inês de Castro...

Como a sucessão monárquica do poder se faz preferencialmente por legítimo filho primogénito, quando D. Pedro, filho de Afonso IV, ascendeu a rei, perdido de amores por Inês, não teve tempo nem vontade de fazer um com a rainha, acabou por ter que ascender na liderança do reino um D. Fernando ilegítimo que, por sua vez, morreu cedo e, continuando na mesma senda, só deixou filha única que haveria de fazer casamento em Castela, acontecimento que, por pouco, não levou o país consigo.

Como é sabido, Portugal salvou-se de Castela na Batalha de Aljubarrota, ali para os lados de Alcobaça, com o Condestável Nuno Álvares Pereira no comando de um pequeno exército que, por astúcia de tática militar, infligiu pesada derrota aos castelhanos. Como é sabido, Nuno Álvares Pereira, pessoa de grande vocação espiritual e religiosa, foi beatificado em 1918 e canonizado em 2009 com o nome de São Nuno de Santa Maria.

Mas, ao que vem a nossa terra para aqui chamada?

Sabemos que D. João I está ligado à história da região. Por aqui se terá refugiado em luto quando da morte da Rainha Filipa de Lencastre, na companhia do seu filho bastardo, D. Afonso, em palácio que se julga ter sido pertença deste. Este seu filho ilegítimo, por sua vez, era casado com D. Beatriz Pereira de Alvim, filha única de Nuno Álvares Pereira. Ora, embora não conheçamos documentos que o atestem, é muito provável que também Nuno Álvares tenha andado por aqui com D. João I, seu rei e compadre, cumprindo luto e arquitetando a partida para a conquista de Ceuta.