quarta-feira, 27 de novembro de 2019

GRAFFITAR A LITERATURA (XXVI)


«Pescadores bacalhoeiros»

Foto de Luís Souta, 2019

«A todos os pescadores bacalhoeiros portugueses que, se a pesca adrega de ser boa, cantam e bailam sozinhos, como os meninos e os loucos...»

Frederico Draw, arquitecto e graffiter, nascido no Porto, em 1988, com trabalhos no estrangeiro – Espanha, Itália, França, Reino Unido, Alemanha, Cabo Verde, Marrocos, USA – e em muitas localidades do nosso país, designadamente em Cascais. Aí deixou a sua marca no decorrer do Muraliza 2015. Rostos de pescadores anónimos, em grande escala, numa parede que liga a Rua Latino Coelho ao Largo Dr. Passos Vella.

Draw, no seu estilo único, dá-nos a imagem de dois homens do mar, ligados por uma âncora e pela inscrição «Cascaes». Associei este mural ao livro de Bernardo Santareno (1959) Nos Mares do Fim do Mundo, reeditado (fac-simile) pelo jornal Público, no passado Outubro, comemorando desse modo os 60 anos da primeira edição.

Na obra (com 77 capítulos curtos e 8 fotos), Santareno relata-nos a sua experiência nos «doze meses com os pescadores bacalhoeiros portugueses, por bancos da Terras Nova e da Gronelândia». Descreve-nos, em pormenor, um conjunto de figuras humanas, num registo quase etnográfico (em especial, na transcrição da oralidade popular). Gente vinda dos mais variados lugares: Fuzeta, Setúbal, Vila Franca de Xira, Lisboa, Cascais, Gafanhas da Nazaré, Ílhavo, Foz do Arelho, Vila do Conde, Âncora, São Miguel…

«É de Cascais. Verde, a bordo do Senhora do Mar. De pesca à linha… apenas sabe remar; mais nada. É um pobre de espírito: uma debilidade mental risonha, mesmo simpática. A cada pergunta que adreguem de fazer-lhe, responde sempre com o primeiro dislate que lhe venha à cabeça… E sorri contínua, inevitavelmente: um sorriso opaco, sem expressão, obstinado e infantil. É magrote, frágil; quando anda, cruza as pernas em X; e mostra sempre o sujíssimo cabelo loiro, caído para os olhos. 
Chama-se (imaginem!) Ulisses.
Os da companha troçam dele, mas todos o amam.
Pois há bocado fui dar com o Ulisses no meio de um magote de moços e verdes que, à popa, seguiam entusiasmados as maciças evoluções de duas gigantescas baleias: É a época do cio e elas ensaiam os rituais do amor.» (p. 207)

Histórias na primeira pessoa vividas no David Melgueiro, no Senhora do Mar e no Gil Eannes (navio-hospital da chamada frota branca) ou ouvidas de pescadores (verdes, maduros, homens de ofício) em outras viagens e noutros barcos: Bissaia Barreto, João Costa I, Maria da Glória, Infante de Sagres, Cruz de Malta, Paços de Brandão, Pedro de Barcelos… Tempos de um país pobre mas com uma apreciável frota bacalhoeira, direccionada para a pesca longínqua nas gélidas águas do Norte. Pessoas simples e humildes mas audazes e aventureiras, que naquele voluntário exílio de longos meses no alto mar, procuravam mitigar as adversidades de uma vida de miséria, numa sociedade marcada pela profunda desigualdade e exploração.

Nesta epopeia, que se prolongou pelos anos de 1957 e 1958, o jovem médico Bernardo Santareno, pseudónimo de António Martinho do Rosário (1920-1980), parte cheio de dúvidas e preocupações:
«Serei capaz? São mil e tantos homens entregues aos meus cuidados, confiantes na minha proficiência médica… Estarei eu preparada para tal? Terei que me habituar a decidir, rápida e eficazmente, nos casos de urgência: Serei capaz? Sou tão doentiamente indeciso!» (p. 13)

No final, o balanço:
«Cheguei ao fim – seis meses no mar! – da minha campanha de assistência (…)
Faço, mais uma vez, o exame da minha consciência: Cumpri realmente bem? Fui o clínico seguro e decisivo, o amigo sereno e infatigável (eu ia a escrever ‘o pai’) de que estes mil e tantos homens precisavam? Nem sempre: por ignorância, por tibieza, por comodismo. No entanto, uma verdade quase me sossega: eu amo estas gentes e elas sentem que é assim.» (pp. 236-7)

Numa recensão (“Regresso aos mares do fim do mundo”, Público-Ípsilon, 29/04/16, pp. 18-20), Abel Coentrão faz-nos a síntese desta narrativa de viagem: «Os relatos que transparecem nestas crónicas revelam sobretudo um ambiente de hostilidade, de agressividade latente, em que vêm à tona sentimentos subliminares, irrompem brutalmente o ódio, a força, a vingança, o medo na sua ‘pureza’ mais crua. O mar e a morte são dois companheiros persistentes, ambíguos e implacáveis que perseguem como um fado a vida destes pescadores.» Este «universo denso, tenso, e trágico, da obra do dramaturgo» mais se acentuou na sua peça O Lugre, estreada em 1959 no Teatro Nacional D. Maria II.

PS: Conheci pessoalmente o autor de O Judeu (1966), quando estudava e cumpria o serviço militar em Lisboa, nos anos de 1974-75; na altura, ficava frequentemente num apartamento no mesmo prédio onde ele residia, na Rua Rodrigues Sampaio; aí nos cruzávamos, amiúde, assim como na Pastelaria Smarta (um pouco mais baixo, na esquina com a R. Barata Salgueiro) para onde se deslocava num andar calmo e cigarro nos dedos. Homem alto, sempre vestido com elegância, usando óculos de lentes grossas e escuras… distinto e discreto. De uma grande bonomia e tolerância, por exemplo, com a minha confusão de juventude ao baralhá-lo com outro dramaturgo português, que escrevera, em 1968, As  mãos de Abraão Zacut (levada a cena no GDP da Póvoa de Stª Iria, em Março de 1971, onde eu interpretava a personagem David Levi).

Luís Souta

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