domingo, 24 de dezembro de 2023

“Literatura: o pão nosso de cada dia”(XXI)

 Luís Souta

A ESCOLA SELECTIVA E OS NOVOS EXCLUÍDOS 

«o acto educativo é porventura, na sua raiz, um acto provocatório.»
(Rui Grácio, Educação e Educadores, 1996:99)

A aprendizagem na escola

A criação da escola alterou substancialmente o quadro de aprendizagem no lar (traçado no final do nosso artigo de Novembro). Um novo modelo económico e de desenvolvimento estava a emergir. A indústria não se compadecia com este tipo de trabalhador “(des)qualificado”.

A existência de uma instituição, em edifício próprio, dedicada integralmente à transmissão dos saberes, com gente especializada e treinada para o exercício dessa função, teve, naturalmente, fortes implicações na vida individual, familiar e colectiva.

Em Portugal, a sua implantação no tecido nacional foi lenta e muito irregular, ao longo destes últimos dois séculos. Em particular, a sua penetração no mundo rural, ficou-se, durante muitas décadas, pelos níveis elementares. O pós-primário, estava quase em exclusivo nas capitais de distrito e o universitário nas três principais cidades. No entanto, a política de escolarização foi progressivamente delapidando as famílias desse bem precioso que são os seus filhos (enquanto força de trabalho) e esvaziando-as da sua tradicional função educativa. Começou primeiro por lhes retirar os rapazes, para mais tarde as raparigas seguirem caminho idêntico. Inicialmente, durante uma parte do dia e num número reduzido de anos (os 3-4 correspondentes aos estudos primários). Para agora, nos nossos dias, as políticas de democratização do ensino – no âmbito de uma escolaridade obrigatória e universal progressivamente alargada e de um processo de massificação também no secundário – acabarem por levar ao limite essa separação entre a escola e o lar. Passa-se o dia na escola e durante anos a fio. Em certos casos, houve desvinculação geográfica com o local de origem: ter que sair da aldeia para frequentar a escola situada na vila ou na cidade. E assim emerge um “situated self” decorrente destas adaptações a novos contextos de diversidade, valores culturais e estilos de vida. A aprendizagem na escola é agora formal, explícita, dirigida por professores de que nada se sabe, para além daquele contacto fugaz que o tempo lectivo estipula (em regra, também eles uns “nómadas” vindos de longe). O professor é a fonte de um saber letrado, que se complementa nos manuais escolares. A trilogia do «saber ler, escrever e contar» torna-se no instrumental técnico de base que permite o acesso do aluno a outros conhecimentos, de que nunca ouviu falar ou sentiu que lhe fizessem falta (a si ou aos seus). Mas uma vez na posse de tais competências, as relações no seio familiar sofrem profundas mudanças. O detentor do saber inverteu-se: os pais nada têm agora para ensinar aos filhos (os seus conhecimentos práticos não são pertinentes para o saber teórico e abstracto da escola); os filhos “sabem mais” que eles.

«As batatas vieram da América», disse eu à minha mãe ao jantar, quando ela me pôs o prato à frente.

“Logo haviam de vir da América! Sempre houve batatas”, sentenciou ela.

“Não. Dantes comiam-se castanhas. E o milho também veio da América.” Era a primeira vez que tinha a clara sensação de, graças ao mestre, saber coisas do nosso mundo que eles, os pais, desconheciam.» (Que Me Queres, Amor?, Manuel Rivas, 1998:33)

Paulatinamente, afastam-se do trabalho manual (o tempo de estudo exige-lhes exclusividade), concebem formas alternativas de vida, têm outras aspirações sociais e profissionais. A ruptura está consumada.

A função clássica atribuída à escola como transmissora de saberes, isto é, privilegiando o ensinar (imprimir uma marca), tem, mais recentemente, vindo a ser contrabalançada pelo acentuar do aprender (incorporar em si). De qualquer modo, estaríamos sempre numa relação entre alunos e professores de «simples troca de bens e não da comunhão de pessoas» (Garcia, 2000:571) que um verdadeiro processo de educação, entendido como relação, pressupõe (ajudar alguém a ser). Ora é essa dimensão que prevalece no interior do grupo doméstico. O hábito de aprender, que pautava o viver dos jovens no seio familiar, deveria ser também a forma de estar no terreno escolar. Aprender seria assim um processo de continuidade, permanente e duradouro. Tal como o era nos contextos de aprendizagem informal no lar. E deste modo se evitariam rupturas sem sentido.

A escola selectiva

A «escola para alguns» era, no essencial, uma escola selectiva na entrada e na passagem de um ciclo a outro da escolaridade. Nesse sentido, os professores eram treinados no desempenho de uma função tida como primordial à sua actividade: ensinava-se mais com intuitos de avaliação do que de aprendizagem; avaliava-se para seleccionar, premiando ou excluindo conforme o (de)mérito dos alunos.

Essas práticas criaram raízes tão fortes no corpo docente que ainda estamos lembrados do tempo em que o valor de um professor variava na razão directa do número de alunos que reprovava. Claro, que neste crivo entravam apenas algumas disciplinas – Matemática, sempre em primeiro lugar, a Física, a Química, a Geometria Descritiva, o Português, as línguas estrangeiras – e desta forma se consolidava uma hierarquia docente e curricular (em que as «disciplinas bastardas» nem contavam para a nota).

Rui Grácio

Uma consequência imediata era o mercado paralelo das «explicações»: mais uma sobrecarga financeira no orçamento familiar e o aparecimento de uma nova profissão (o explicador), para a qual concorriam muitos professores numa dúbia situação de duplo “emprego” [1].

Por isso não é de estranhar que a mudança de paradigma de uma «escola para alguns», onde a selecção constituía um traço distintivo do seu funcionamento, para uma «escola para todos», onde o acesso e o sucesso devem ser universais, se tenha vindo a processar com enormes dificuldades e resistências. A comprová-lo estão as elevadas taxas de insucesso e abandono escolar. Estes indicadores mostram o desencontro de culturas (v.g., oral vs escrita) e como largas camadas da população mantêm com o ensino e os saberes escolares relações marcadas por estratégias de resistência ou de mera credencialização (cf. artigo XIX, nesta rubrica). A escola é vista como a instituição que confere um diploma que facilitará o acesso ao trabalho, mais do que um local onde se aprende e, se reforça a identidade cultural. Se tempo houve, em que a escola habilitava com graus e certificações que permitiam a integração na sociedade, a entrada garantida no mercado de trabalho e a consequente mobilidade social ascendente, hoje o diploma académico abre menos portas, vale cada vez menos. A sua desvalorização é célere.

A nossa escola, confronta-se com problemas crónicos que atravessam épocas, regimes e governos. O insucesso escolar é um dos mais notórios. Nos últimos anos, ao nível do ensino básico (com provas de aferição mas sem exames), tudo se fez para baixar esses valores. Foram caindo lentamente, mais por alterações administrativas na forma de o contabilizar e por pressão de factores endógenos (como o PIPSE - Programa Interministerial para a Promoção do Sucesso Escolar, de 1987, ou a(s) Reforma(s), ávidos de mostrar resultados positivos) do que propriamente por uma quebra do fenómeno em si. Estamos cientes que o insucesso real é bem maior do que o oficial, tornado público em pautas e fichas de avaliação final. Muitas das vezes não se avaliam as aprendizagens reais mas as «enviesadas manifestações». A participação em estudos internacionais (PISA ou TIMSS, por exemplo, que avaliam as competências da leitura, Matemática e Ciências, e onde são usados instrumentos de maior validade e fiabilidade) evidenciam as lacunas na formação académica dos nossos jovens (vejam-se os desastrosos resultados do PISA 2022 [2]). A consequência imediata do insucesso acumulado traduz-se no abandono escolar [3], com a entrada precoce no trabalho produtivo. É a chaga do trabalho infantil que não se estanca. Os mecanismos de selecção económica conjugam-se aqui com os baixos rendimentos académicos. A escola mostra-se incapaz de segurar no seu seio este tipo de alunos. A alternativa ao fracasso escolar não tem sido o de recomeçar, em novos moldes, os estudos, mas antes a saída da escola e procurar emprego, mesmo clandestino e ilegal.

Perante os números de abandono e reprovação, a generalidade da população mantém uma estranha atitude de benevolência perante estas instituições que não são capazes de cumprir as grandes finalidades que a sociedade lhes impôs. Em termos comparativos, que crédito nos mereceria um hospital onde morressem 20% daqueles que lá entram ou um estabelecimento prisional de onde fugissem, todos os anos, 20% dos seus reclusos, ou ainda de uma empresa industrial com semelhantes valores de desperdício no seu ciclo de produção? Estranha-se, de facto, no campo educativo, a falta de indignação, quer dos utentes directos (crianças e jovens), quer dos utentes indirectos (pais e suas associações), quer mesmo dos cidadãos em geral que financia as escolas, através dos seus impostos. A ausência de uma cultura de intervenção cívica em paralelo com o diminuto associativismo (mais acentuado ainda nas minorias étnico-culturais) pode explicar, em parte, que perante resultados tão negativos não se peçam responsabilidades à direcção das escolas, aos professores e, naturalmente, aos decisores de política educativa.

A “crise na educação” parece que passou de cíclica a permanente. Os professores oscilam entre a posição do “náufrago” e a do “astronauta” (Simões e Boavida, 1999), ou seja, ou se agarram à segurança da tradição, do conhecido e testado, ora avançam para inovações constantes, sempre na busca da novidade e da mudança pedagógica. E neste quadro ninguém se satisfaz com as condições em que exerce a sua profissão. Os investimentos aumentam mas os resultados não são proporcionais. As Reformas sucedem-se mas os problemas persistem. A recessão demográfica na população estudantil tem possibilitado melhorar os edifícios escolares e a sua funcionalidade (finalmente acabaram os “pré-fabricados” da fase do boom), mas as escolas continuam longe de possuir os equipamentos, os materiais técnicos e pedagógicos que se impõem nesta sociedade altamente tecnológica. A excepção regista-se no campo das tecnologias de informação e comunicação. Aí sente-se uma enorme vontade em alterar profundamente a situação de alguma escassez em que muitas ainda se encontram; há políticas, programas e acções. Os ventos sopram de feição: os propósitos não são só nossos mas de toda a comunidade europeia… É o imperativo básico para que o e-commerce funcione, se expanda e se rentabilize. Estamos em crer que também na Educação, só a pressão de factores externos, leia-se da UE [4], através da definição de “critérios de convergência” poderá superar as fragilidades do nosso sistema educativo, onde o analfabetismo [5], o insucesso, o abandono, a iliteracia e, agora também, a falta de professores (!), são males que, parece, não se conseguir sarar.

Os novos excluídos

Em Portugal são extremamente preocupantes os números que nos dão conta dos baixos níveis de literacia. Muitas dessas pessoas frequentaram a escola e chegaram mesmo a concluir os primeiros ciclos de estudo. Mas as aprendizagens escolares ficaram inertes e de nada lhes servem nas tarefas do quotidiano – são os analfabetos funcionais. Este fenómeno veio demonstrar que não basta haver escola. Quando «a escolarização se reduz a mero rito sem substância social» (Esteves, 1999:42) é porque os alunos a vão frequentando, sem motivação, com irregularidade, com muitas faltas, pouco trabalho. As aprendizagens não se realizam e o aproveitamento é mais que insuficiente… mas acabam por ir transitando de ano para ano. A escola, bem pelo contrário, precisa de funcionar com eficácia e cumprir a sua principal função que é habilitar os alunos com os conhecimentos, competências, atitudes e valores necessárias ao desempenho de tarefas nas esferas do emprego, da família e da cidadania. O clássico «ler, escrever e contar» (consignado já na Constituição de 1822) não é de modo algum suficiente numa sociedade cognitiva, da informação e digital como a do século XXI.

A escola para além de não ter conseguido, até agora, cumprir propósitos essenciais – como escolarizar todas as crianças, possibilitar a todas a conclusão com êxito do percurso escolar legal mínimo, o ensino obrigatório – começa a falhar também ao não preparar adequadamente aqueles a quem atribui um diploma académico. Vários estudos têm mostrado que «a maior parte das matérias ensinadas na escola são completamente inúteis para a vida prática»; outros indicam que a escola não prepara, ou prepara mal, «para a vida prática e profissional». O descrédito da escola e dos seus diplomas atinge hoje também aqueles que apesar de estudos superiores engrossam as fileiras do desemprego. Ou, quanto muito, aceita-se um trabalho mas que pouco ou nada tem a ver com as habilitações académicas obtidas no curso de origem, quantas das vezes segunda ou terceira escolha no acesso ao ensino superior [6]. Outra das vias a que se recorre é o permanecer no sistema da “educação permanente”, saltitando de curso em curso, de estágio em estágio, ganhando créditos, “fazendo currículo”, mas sempre adiando a entrada efectiva no cenário de emprego a tempo inteiro. E neste círculo vicioso parece que (quase) todos ganham: as instituições de formação que não deixam de ter clientes, os empregadores que vão tendo mão-de-obra paga ao preço de estagiário e o Estado que consegue, artificialmente, mostrar estatísticas de um desemprego controlado, abaixo da média comunitária. Queixam-se as famílias, hoje profundamente afectadas pela “síndrome do ninho cheio”, ou seja, o lar não se esvazia como seria natural na sequência da autonomia plena dos seus filhos. Mas a maioridade já poucas alterações traz para a vida familiar. A «geração canguru» acomoda-se, sente-se bem em casa (os conflitos de gerações cessaram), adia o casamento [7], prolonga os estudos, tarda em arranjar emprego. Os filhos não deixam a casa, não ganham independência. E quando finalmente saem, às vezes,… acabam por voltar. As separações e os divórcios esses são precoces e não param de aumentar.

Notas

1. Cf. “Explicações” in Direito ao Erro: a batalha da educação em Portugal de José Alberto Quaresma. Lisboa: Vega/ Outras obras, 2000.

2. Público 06/12/2023, pp. 6-9.

3. A taxa de abandono no 10º ano foi de 23% no ano lectivo de 1999-2000, o valor mais alto desde 1974. Em 2022, apenas 6% dos jovens entre os 18 e os 24 anos não tinham completado o ensino secundário.

4. António Barreto em Tempo de Incerteza (Relógio d’Água, 2002) considerava, então, que muitas das transformações ocorridas, na última década e meia, em vários sectores da sociedade portuguesa se devem à imposição europeia.

5. Nos Censos de 2001, o analfabetismo atingia os 9%; em 2021, é de 3,1% (292.809 pessoas com 10 ou mais anos que não sabem ler ou escrever).

6. Em 2002, só 6 em cada 10 alunos entraram nos cursos de primeira opção; em 2023-24, foram 56%.

7. Segundo a Pordata, em 2022, os homens casam aos 35,1 e as mulheres aos 33,7 anos quando, no início do milénio, a maioria dos casamentos se registava no grupo dos 25-29 anos.

Referências

ESTEVES, António Joaquim (1999) “Mitos, ritos e símbolos: a escola, o trabalho e a cultura nacional”. Cadernos de Ciências Sociais, nº 19-20, Outubro, pp. 39-60.

GARCIA, Mário (2000) “O horizonte da beleza no ensino da literatura”. Brotéria, nº 5/6, vol. 150, Maio-Junho, pp. 567-577.

GRÁCIO, Rui (1963) Obra Completa I - Da Educação. Lisboa: FCG, 1995.

RIVAS, Manuel (1995) Que Me Queres, Amor?. Lisboa: Publ. Dom Quixote/ Ficção Universal, nº 197, 1998.

SIMÕES, Mª das Dores Formosinho e BOAVIDA, João (1999) “Náufragos ou astronautas? Pós-modernidade e educação”. Revista Portuguesa de Pedagogia, nº 1, pp. 5-17.

sábado, 2 de dezembro de 2023

Agostinho da Silva no Brasil

por Manuel Luiz Touguinha

O sebastianismo erudito de Agostinho da Silva, continuador de Fernando Pessoa, influenciou, no Brasil, o tropicalismo de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé... e o cinema novo de Glauber Rocha.
Agostinho também manteve uma relação muito próxima e profícua com Dora e Vicente Ferreira da Silva, Gilberto Freyre, Oswald de Andrade, Murilo Mendes e Cecília Meireles, além de Ariano Suassuna, Pierre Verger, Darcy Ribeiro e José Aparecido de Oliveira.
Sua interlocução com muitos dos intelectuais portugueses que, como ele, encontravam-se exilados no Brasil foi igualmente ampla: de Eudoro de Sousa e Hernani Cidade a Adolfo Casais Monteiro, de Eduardo Lourenço e Manuel Rodrigues Lapa a Jaime Cortesão.
(Ao lado), uma dica de 2 recentes publicações, organizadas pelos professores Amon Pinho e Romana Valente Pinho, recentemente lançadas pela Cátedra Agostinho da Silva da UFU (Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais).

P.S.: os parêntesis são nossos.

domingo, 26 de novembro de 2023

"Literatura: o pão nosso de cada dia" (XX)

 Luís Souta

Questionar a escola

PERSPECTIVAS DA ANTROPOLOGIA DA EDUCAÇÃO

«A escola parecia-lhe bastante néscia, local onde geralmente insistiam no desinteressante,
escamoteando tudo o que pudesse ter um brilho de fascínio ou utilidade.»
(“O companheiro sinistro” in Os Sensos Incomuns, Maria Isabel Barreno, 1993:62)

Outras razões se podem avançar como explicativas para o não cumprimento da escolaridade obrigatória de 12 anos. Com a crescente massificação na entrada, coube ao insucesso escolar a função de manter a selectividade do sistema. A escola continuava fiel à sua génese: «criada para desnivelar as diferenças entre seres humanos» (Iturra, 1995:99). A instituição escolar não deu mostras de adaptabilidade à heterogeneidade dos novos públicos, portadores de culturas e estilos de vida bem distintos dos há muito dominantes no ensino. Exigiu-se, pelo contrário, a descaracterização cultural dessas crianças e jovens. A assimilação era o objectivo. A escola massificadora pautava-se por uma matriz estandardizada, unificadora e de rejeição das diferenças, fossem elas de género, classe social, étnicas, religiosas, linguísticas ou outras. Aos alunos exigia-se a aceitação do intocável modus vivendi escolar. Nesta perspectiva, os saberes de que os alunos eram portadores eram ignorados e depreciados, pois desconsiderava-se toda essa vivência exterior ao aprendizado escolar. As relações com o meio e, em particular, com as famílias eram evitadas. A escola fechada e centrada sobre si, auto-suficiente, era um “bunker” para a transferência livresca do saber letrado, abstracto e descontextualizado. No essencial, mantinha os traços fundadores e, naturalmente, continuava a “produzir” um tipo de aluno – o homo scholaris – que, também ele, não se distinguia das gerações precedentes. Hábitos, comportamentos e valores reproduzem-se, num processo de ensino e aprendizagem marcados pela continuidade e conservadorismo. De facto, a escola pouco tem mudado. O discurso político, dos líderes pedagógicos ou dos reformistas vai-se alterando (ainda que ao ritmo do “pêndulo oscilante”), mas a retórica e o texto legal não se podem confundir com a realidade das práticas escolares, que a observação participante e a literatura revelam como estáveis.

 É no quadro de alargamento da escolaridade a populações que tradicionalmente dela estiveram arredadas e dos problemas daí decorrentes – insucesso e abandono – que a Antropologia da Educação emerge com um importante contributo para a compreensão destes fenómenos. Historicamente, a Antropologia esteve próxima destes novos destinatários do “civilizacional bem educativo”, fossem eles (e/i)migrantes, gente rural, piscatória ou de grupos sociais mais ou menos marginalizados pelo desenvolvimento e pelo urbanismo. O conhecimento dessas culturas tinha sido, em certa altura, a razão de ser da disciplina antropológica. Foram o seu objecto de estudo privilegiado. As formas como adultos e crianças se relacionam e partilham a vida, em contextos informais de aprendizagem quer as experiências quer os saberes necessários à manutenção e reprodução da vida do grupo, foi dos aspectos que mereceu particular interesse por parte dos professores. A escola começava agora a questionar-se. Os seus ancestrais pilares eram postos em causa. O problema não estava tanto na criança (e no seu grupo doméstico) a quem era detectado um “défice cultural” mas na estrutura, organização e práticas curriculares da própria escola.

 «Lembro-me de pensar: “Como é que é possível que crianças tão criativas, tão observadoras, tão prontas a fazer perguntas e a defender as suas ideias tenham tão maus resultados na escola” E lembro-me de chegar à conclusão que era a escola que estava errada e não elas. Em muitos casos, aliás, ainda está.» (Elvira Leite e a sua experiência com os miúdos do Bairro da Sé, no Porto, em 1976-77).

 Reconhecer que também estes jovens eram portadores de um «capital cultural» e de formas próprias de entender e dar significado ao mundo real foi o princípio da mudança que ao respeitar a iden tidade do “outro” lhe atribui capacidades para um percurso de sucesso no seio escolar. Para tanto, a escola teria que repensar a sua escala de valores, abandonar a sua «cultura social de discriminação» (Afonso, 1998:272), legitimar um conjunto de saberes práticos que este tipo de alunos eram detentores e diversificar os métodos de ensino no sentido de uma maior  individualização. Articular esses dois mundos – o escolar e o de origem dos alunos – passou a ser um objectivo de acção educativa, agora já numa lógica de «escolapara todos» a que, alguns,  apelidam de «inclusiva». Os professores passam então a percepcionar o «meio» como uma recurso potenciador de aprendizagens significativas para os seus alunos e a ele recorrem como fonte de conhecimento, “laboratório” social e terreno pedagógico. Já Rui Grácio (1963:120-1) propunha:

 «Uma óptica que alargasse o campo de visão, da aula até ao pátio da escola e ao lar do aluno, e discernisse nestes três personagens que habitam uma só personalidade, repartida entre as obrigações familiares, discentes e de camaradagem.»

 E é neste novo quadro, de contacto directo com o «meio social envolvente», onde a aproximação às famílias ganha outro sentido para além da instrumental colaboração pedagógica, que a Antropologia da Educação evidencia toda a sua utilidade científica e metodológica.

Tal como o exprime Telmo Caria «a etnografia cria condições para entender a cultura do outro» (1999:27). A abordagem directa, personalizada e continuada junto das populações permite conhecer as culturas em presença, na sua globalidade. O conhecimento desses  saberes particulares possibilita a compreensão daquilo a que Raúl Iturra (1990) designa como a «memória cultural» dos jovens estudantes, marcada pela genealogia, pelo local e pelasexperiências do agir quotidiano. Na “posse” de tal conhecimento (que as histórias de vida mais facilmente possibilitam), o professor saberá então articulá-la com a «memória nacional», de que a escola é depositária. E deste modo o aluno deixa de ser esse ente anónimo para passar a ser visto pelos professores como pessoa, portadora de uma cultura. O desencontro entre o que  e o como se ensina e o que e o como aprende tende assim a ser minimizado. Utopia? Apenas o caminho que a Antropologia da Educação tem vindo a desbravar.

 A aprendizagem no lar

 Qualquer grupo social precisa de transmitir a sua experiência e o seu saber acumulados no tempo às novas gerações. Nisso reside a condição básica da sua continuidade histórica. A aquisição desses saberes fez-se, durante séculos, de uma forma informal, no seio de um grupo  doméstico alargado, pela observação, acompanhamento e contacto directo, permanente e continuado, dos mais jovens em todo o desenrolar das múltiplas actividades que os adultos(pais, avós, irmãos,…) protagonizavam. Nas sociedades agrárias, de tradição oral, os saberes pragmáticos do quotidiano agro-pastoril transmitem-se de forma directa no trabalho compartido de adultos e crianças. «Ver fazer e ouvir dizer são a base do seu envolvimento» (Iturra, 1990:121). Gradualmente, as crianças vão sendo solicitadas à participação nos trabalhos caseiros, nas actividades de produção, religiosas e de lazer. Num primeiro momento, fazem-se pequenos serviços, simples ajudas, bastantes “recados”; aprende-se mais na rua com os amigos e os companheiros, em jogos, brincadeiras, e num conversar constante. Nestes grupos de crianças, apesar de as diferenças etárias não serem acentuadas, há sempre os “mais velhos” que acabam por assumir papéis de liderança e de “mestres”; a experiência do que já se fez, no cumprimento das normas ou na sua transgressão, e do muito que se (ou)viu fazer aos adultos (em público ou numa privacidade “violada”), são um capital reconhecido entre os pares. Mas a brincadeira está sempre sujeita a ser interrompida, a qualquer momento, pela intervenção do adulto. Basta que o chame, para um trabalho a que é preciso dar cumprimento imediato. Vai, contrariado, mas vai. O adulto põe e dispõe, marca o ritmo da vida da criança. Decide o que ela deve fazer e o que ela deve aprender. Define o permitido e o interdito. A autoridade de quem deu a vida, dá o pão e fornece o saber (agrícola ou artesanal), não é questionada. E de um tra balho pontual, esporádico e ocasional, na infância, passa-se, com o avançar da idade, ao cumprimento de tarefas específicas de que progressivamente se é responsável (tratar do rebanho ou cuidar do irmão mais novo, por exemplo). No decorrer dessa longa aprendizagem, o trabalho faz-se sempre sob tutoria; aprende-se vendo, fazendo, errando… E logo no momento recebe-se feedback, é-se corrigido, repreendido ou premiado. Neste processo de endoculturação, a finalidade última é fazer da criança e do jovem um igual aos outros, torná-lo um do grupo, com os mesmos princípios, crenças, valores, comportamentos e práticas. Numa educação não formal que se confunde com a vida real e quotidiana do próprio grupo. Eles são educados no grupo e para o grupo:

 «Sou apenas o produto/ Do meio em que fui criado» (Este Livro Que Vos Deixo…, António Aleixo, 1975:49)

António Aleixo

 Adquirem a cultura com os seus «outros significativos» (Spiro, 1998:206). Assim se forma, o que Spindler & Spindler (1993) designam como “enduring self” (o sentido de continuidade, a ligação a um passado, a identidade social). Essa é a herança oral que recebem dos seus progenitores e de toda uma comunidade que funciona como uma rede de apoio e enquadramento. Quando adultos, autónomos e independentes, num novo ciclo de vida, espera-se que dêem continuidade à herança recebida e procedam de igual modo com os seus descendentes. Assim se garante a continuidade e a coesão do grupo.

Nota

1. “Elvira Leite. Tudo o que eles queriam era brincar na rua e uma sala para trabalhar”, Ípsilon, 25/08/2023, p. 8.

Referências

AFONSO, Almerindo Janela (1998) Políticas Educativas e Avaliação Educacional. Para uma análise sociológica da Reforma Educativa em Portugal (1985-1995). Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Centro de Estudos Centro em Educação e Psicologia.

ALEIXO, António (1969) Este Livro Que Vos Deixo... Lisboa: Edições Vitalino Martins Aleixo, 3ª ed., 1975.

CARIA, Telmo H. (1999) “A reflexividade e a objectivação do olhar sociológico na investigação etnográfica”. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 55, Novembro, pp. 5-36.

GRÁCIO, Rui (1963) Obra Completa I - Da Educação. Lisboa: FCG, 1995.

ITURRA, Raúl (1990) Fugirás à Escola para trabalhar a terra: ensaios de Antropologia Social sobre o insucesso escolar. Lisboa: Escher/ A aprendizagem para além da escola, nº 1.

ITURRA, Raúl (1995) “Tu ensinas-me fantasia, eu procuro realidade”. Educação, Sociedade & Culturas, nº 4, pp. 91-103.

SPINDLER, George e SPINDLER, Louise (1993) “The Processes of Culture and Person: Cultural Therapy and Culturally Diverse Schools” in Patricia Phelan e Ann Locke Davidson (eds.) Renegotiating Cultural Diversity in American Schools. NY and London: Teachers College Press, pp. 27-51.

SPIRO, Melford E. (1998) “Algumas reflexões sobre o determinismo e o relativismo culturais com especial referência à emoção e à razão”. Educação, Sociedade & Culturas, nº 19, pp. 197-230.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

3 Poemas Escolhidos

Luís Santos

(organização, palavras introdutórias e fotos)



A ILHA DOS AMORES

A dimensão espiritual que se liga à demanda portuguesa dos mares, descrita de forma magistral por Luís de Camões nos Lusíadas, muito particularmente no canto IX, refere-se a uma certa Deusa, que há muito acompanhava os lusitanos e, quem sabe, já andava por esta nossa terra, quando foi tomada a célebre Decisão que se fosse além dos mares, no regresso da Índia liberta os nautas do tempo e do espaço e fá-los desembarcar nessa Ilha divina de sonhos mil, onde acaba por expor ao Gama, capitão da frota, os mecanismos pelos quais se regem os destinos do mundo. E o canto é, de facto, uma deliciosa marav-ilha dos amores. E, assim sendo, aqui ficam seis das noventa e cinco estrofes que perfazem o idílico canto, muito se aconselhando total leitura.

CANTO NONO

(…)

Porém a Deusa Cípria, que ordenada
Era, para favor dos Lusitanos,
Do padre Eterno, e por bom génio dada,
Que sempre os guia já de longos anos,
A glória por trabalhos alcançada,
Satisfação de bem sofridos danos,
Lhes andava já ordenando, e pretendia
Dar-lhes, nos mares tristes, alegria. 

Ali, com mil refrescos e manjares,
Com vinhos odoríferos e rosas,
Em cristalinos paços singulares,
Formosos leitos, e elas mais formosas;
Enfim, com mil deleites não vulgares,
Os esperem as Ninfas amorosas,
De amores feridas, pera lhe entregarem
Quanto delas os olhos cobiçarem. 

 

Mil árvores estão ao céu subindo,
Com pomos odoríferos e belos;
A laranjeira tem no fruto lindo
A cor que tinha Dafne nos cabelos.
Encosta-se no chão, que está caindo
A cidreira com os pesos amarelos;
Os fermosos limões ali, cheirando,
Estão virgíneas tetas imitando. 

Nesta frescura tal desembarcavam
Já das naus os segundos Argonautas,
Onde pela floresta se deixavam
Andar as belas Deusas, como incautas.
Algumas, doces cítaras tocavam,
Algumas, harpas e sonoras flautas;
Outras, com arcos de ouro, se fingiam
Seguir os animais que não seguiam. 

Ó que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã, e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo. 

E fareis claro o Rei que tanto amais,
Agora nos conselhos bem cuidados,
Agora com as espadas, que imortais
Vos farão, como os vossos já passados.
Impossibilidades não façais,
Que quem quis sempre pôde; e numerados
Sereis entre os Heróis esclarecidos
E nesta Ilha de Vénus recebidos.

 

Os Lusíadas, Canto IX (A Ilha dos Amores), estrofes 18, 41, 56, 64 83, 95.



INICIAÇÃO

Não dormes sob os ciprestes,

Pois não há sono no mundo.

......

O corpo é a sombra das vestes

Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte

E a sombra acabou sem ser.

Vais na noite só recorte,

Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro

Tiram-te os Anjos a capa.

Segues sem capa no ombro,

Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada

Despem-te e deixam-te nu.

Não tens vestes, não tens nada:

Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,

Os Deuses despem-te mais.

Teu corpo cessa, alma externa,

Mas vês que são teus iguais.

......

A sombra das tuas vestes

Ficou entre nós na Sorte.

Não estás morto, entre ciprestes.

......

Neófito, não há morte.

s. d.

Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). 

 - 233.
1ª publ. in Presença , nº 35. Coimbra: Mai. 1932.


 Depois da visita do arco da velha, a lembrar que "tudo vale a pena quando a alma não é pequena", aqui fica para os amigos outro dos poemas mais significativos, de tal forma que deu porta de entrada para um duradouro estudo que nos coube fazer:                    

Se eu chegasse a ser dum Outro
            mas de mim não me perdendo
            e esse Outro todos os outros
            que comigo estão vivendo

não só homens mas também
            os animais e as plantas
            e os minerais ou os ares
            e as estrelas tais e tantas

terei decerto cumprido
            meu destino e com que sorte
            para gozar de uma vida
            já ressurecta da morte.

Agostinho da Silva, uns poemas de agostinho, Lisboa, ulmeiro, 1990, p.106 (2ª ed.)


terça-feira, 31 de outubro de 2023

Farfalla

 


Farfalla
Kity Amaral
2023
Técnica Mista


... que inspirou poema de Luís Santos:

FARFALLA

Voo di farfalla, voe amaralla

voi besuntalla di multicolorito

latino amore mio

demantequilla, amarilla

verdilla, palmita di flore

amorosita metamorfosis

uno ovo di sementilla

una parole encarnata

una larvasita de pupa

vulva vulcanita di fogo

alaranjata

saliente y corata crisalida

di rosada rosa calorosa

colo-rosa

imago feita una muller

recanto de azulata semente

mio Dio

una blanca pombita

fragilita, tremidita, indeciso voio

por lo mundo, pero lo mundo

qui si planta em nuestras palmillas

di celeste decorala, voi pintalla

voe amaralla,

voia farfalla


Nota final em jeito de diálogo entre poeta e pintora:

- um poema meio estranho que talvez se entranhe, mia farfallasita.

- muito legal, mio poeta maluquito! Adorei! Alegre!

- sai no Estudo Geral à chegada do 1 de novembro, dia de Todos-os-Santos, que vão sair para te ver passar.

- trabalhei mais a Farfalla depois dos seus escritos:


sábado, 28 de outubro de 2023

Literatura: o pão nosso de cada dia (XIX)

 Luís Souta


REACÇÕES À ESCOLARIZAÇÃO


«Não aprendeu a ler. A escola franqueava-se pouco às crianças nascidas no sulco das enxadas. 

Lá foi entretanto algumas vezes, quando o tio Taimão lho consentia (somente nos dias de inverno mais agrestes).»

(“Narrativa Bárbara” in O Sonho e a Aventura, José Marmelo e Silva, 1943:13)


Uma das temáticas constantes ao longo de décadas da nossa história refere-se à resistência, voluntária ou involuntária, aos processos de escolarização. O país rural, não letrado, vivendo nas incertezas da sobrevivência económica, resistia à perda dos seus filhos desviados para os «caminhos do ABC» (como lhe chamava Rogério Fernandes). Na síntese de Guerra Junqueiro, num dos seus poemas de 1874:

«Mandam-no ir à escola e põem-lhe ao ombro a enxada!» (“A Morte de D. João” in Poesia, p. 152)

Guerra Junqueiro

As aprendizagens escolares eram consideradas de pouca, ou nenhuma, utilidade prática para quem exercia actividades ligadas ao sector primário (agricultores, pastores, pescadores). A ida para a escola, quantas vezes forçada pela legislação do ensino obrigatório ou por pressão social de figuras proeminentes do meio local (padre, médico ou professor) quando reconheciam qualidades intelectuais em alguns garotos, acabava por se traduzir num percurso mínimo.

«E onde é que temos nós dinheiro para tu estudares?» (Para Sempre, Vergílio Ferreira, 1983:51)

E assim, com frequência, se interrompia precocemente o percurso académico – «fugirás à escola para trabalhar a terra» (Iturra, 1990) –, excepto se um “padrinho” tomava o encargo tutelar de lhes providenciar os meios materiais. A escola tornava-se fortemente selectiva logo no seu acesso e por razões exógenas ao próprio processo educativo. Factores culturais e socioeconómicos acabavam por excluir da escolarização muitos daqueles que manifestavam desejo, vontade e capacidade para aprender.

O caso português, ofereceu sempre, ao longo da sua história, exemplos (em demasia) de resistência aos intuitos alfabetizadores. Dois tipos de razões concorrem nesse sentido – económicas e culturais.

A alfabetização pouco ou nada diz(ia) às comunidades acústicas e/ou ágrafas. Em primeiro lugar, era percepcionada como um modelo cultural elitista, vindo do exterior, das urbes, do poder central. Funcionava aqui o sentido conservador do mundo rural, que resistia à “invasão” e à mudança, por defesa e segurança. Em segundo lugar, o camponês não sentia que a escolarização lhe trazia vantagens.

«Nos campos a família é hostil à escola, diz-se. Erro. A família não nega o filho à escola, requer o filho para o trabalho. A criança aí, de sete a dez anos, já conduz os bois, guarda o gado, apanha a lenha, acarreta, sacha, colabora na cultura. Tem a altura de uma enxada e a utilidade de um homem. Sai de madrugada, recolhe às trindades, com o seu dia rudemente trabalhado. Mandá-lo à escola, de manhã e de tarde, umas poucas de horas, é diminuir a força produtora do casal. Um aluno de mais na escola é assim um braço de menos na lavoura. Ora uma família de lavradores não pode luxuosamente diminuir as suas forças vivas. Não é por o filho saber soletrar a cartilha que a terra lhe dará mais pão. Portanto tiram a criança à escola para a empregar na terra.» (Uma Campanha Alegre - II, Eça de Queiroz, 1891:77)

Eça de Queiroz

Aqui é o sentido pragmático e de curto prazo que se impõe. Para as sociedades agro-pastoris, a escola é pouco (ou nada) atractiva porque não parece fornecer o instrumental imediato a uma reutilização, e investimento, na actividade produtiva. E mais do que isso, chega a ser entendida como um luxo: não lhes dá nada de concreto como ainda lhes tira elementos da força de trabalho – os seus filhos, preciosos adjuvantes nas lides da agricultura e do pastoreio. Deste modo, a troca da enxada pela caneta é vista como um prejuízo económico, nunca como um ganho. Já Almeida Garrett, num dos seus discursos, questionava: «Que incentivo há para os pais mandarem seus filhos às escolas?». Quanto àqueles que não se conformavam com o lugar ocupado na hierarquia social porque sofriam situações crónicas de carência económica, «a ambição de promoção social foi em larga medida canalizada para a emigração e não para a escola» (Matos, 1997:93). Esta implicava não só um acréscimo de despesas como os retornos desse investimento não eram garantidos, «sabe-se lá se o rapaz tem cabeça para os estudos?»

Apesar de, legalmente, termos um ensino obrigatório e com penalizações para pais incumpridores…

« – Ó diabo, isto é uma multa…

– Multa?!… Ó compadre Custódio, veja lá isso bem, home… Nam pode ser… Nam fiz nada…

Repôs os óculos, reuniu melhor as palavras, confirmou:

– Sim, homem. Multado em vinte escudos… Parece que por causa da cachopa. Não a mandaste à escola, eles souberam e como está na idade e tu tens uma casa… Vai à vila, anda, paga a multa e fica o caso arrumado.

Longe, a enxurrada rebramia na represa.

Após aquele aviso veio outro. E outro. Por fim o fiscal das execuções ameaçou-o com a venda da casinhola para pagamento do relaxe.» (“Planície” in Mosaico, Sousa Marques, pp. 190-3)

Em termos práticos, a escolaridade obrigatória nunca foi sinónimo de gratuitidade. A entrada na escola trazia, inevitavelmente, despesas com o material escolar básico – livros, cadernos, caneta, pasta, bata, etc. – e encargos colaterais – deslocações, vestuário, alimentação. Para aqueles (poucos) que iam para além da «primária», havia ainda que adicionar o pagamento das propinas. Dispêndios incomportáveis em contextos de pobreza e até de alguma miséria.

E com estes constrangimentos, acabava-se a frequentar a escola mas já em adulto…

«a única chama que queríamos ver acesa dentro de nós era a preciosa arte de assinar um nome. Receber carta de chamada, ir correr papéis para o embarque e poder dizer que tinha um nome e que o sabia assinar.» (Gente Feliz com Lágrimas, João de Melo, 1988:105)

João de Melo

Hoje, as despesas com o ensino são de outra ordem, não deixando de continuar a constituir um pesado fardo no orçamento familiar, tão difícil de suportar como no passado. Novos obstáculos se levantam gerados pelo marketing agressivo da sociedade de consumo. O fim das batas, por exemplo, veio desocultar desigualdades e despoletar pressões para se vestir apenas roupa ou calçado “de marca” ou outros símbolos de pertença associados às classes média e alta, tal como os telemóveis e outros dispositivos electrónicos (cf. Gilles Lipovetsky sobre a “massificação do luxo”). Neste contexto, as famílias sentem-se pressionadas agora no seu interior. São os filhos que reclamam equipamento e vestuário adequado à “altura”, para não se sentirem “marginalizados”, para poderem estar ao nível (do ter, não do saber!) dos colegas. Para muitos agregados familiares, este é um adicional financeiro difícil de comportar e que os leva, perante eventuais maus resultados académicos dos filhos, a abdicar da sua manutenção na escola.

Muitos agregados familiares colocaram entraves aos processos de alargamento da escolaridade obrigatória, primeiro, para 9 anos (a que correspondem os três ciclos do ensino básico, prescrito pela LBSE de 1986) e depois para os 12 anos (Lei nº 85/2009, mas entrando em efectividade apenas no ano lectivo de 2012-13). A universalidade no acesso ainda hoje não é integralmente cumprida e, menos, a sua conclusão. Tal ocorrência é mais flagrante em certos grupos étnicos-culturais, tradicionalmente marginalizados (Surdos, Ciganos e Circenses). Mas não se restringe a esses grupos. Outros sectores específicos da população, residindo em nichos urbanos e suburbanos, nas chamadas “bolsas de pobreza”, desenvolvem estratégias de resistência, fugindo ao dever de escolarizar os seus filhos, obstaculizando quer o acesso quer o seu percurso académico. Apesar da oferta escolar se ter alargado progressivamente, numa “rede de malha fina”, a procura por parte destas famílias mantém-se escassa, continuando esses grupos sociais a contornar impunemente (com mais ou menos subtileza) os dispositivos legais da obrigatoriedade do ensino formal. Essas crianças e jovens, em vez da estarem nos bancos da escola, andam a pedir, arrumam carros, vivem de todo o tipo de biscates e expedientes, num trabalho infantil clandestino (mas visível). «Crianças coisas tão profundas tão perdidas» (1). Mas quantos miúdos e quantos jovens não deixam de estar “em-risco” (“endangered self”) para mergulharem no “risco”, empurrados para marginalidades várias, ligadas ao narcotráfico, à prostituição, a furtos e a gangs. Com dinheiro fresco no bolso, querem lá, eles ou as famílias, saber da escola, onde todos os eventuais benefícios são “sempre para amanhã”.

Nota

1. Ruy Belo, “Transcrição de uns olhos pretos e de uns sapatos de fivela” in Todos os Poemas, 2000, p. 336.

Referências

FERREIRA, Vergílio (1983) Para Sempre. Venda Nova: Bertrand Editora/ Obras de V. F., 10ª edição, 1996.

ITURRA, Raúl (1990) Fugirás à Escola para trabalhar a terra: ensaios de Antropologia Social sobre o insucesso escolar. Lisboa: Escher/ A aprendizagem para além da escola, nº 1.

JUNQUEIRO, Guerra (1972) Obras de Guerra Junqueiro: Poesia. Porto: Lello & Irmãos Editores, 2ª edição, 1974.

LIPOVETSKY, Gilles (1987) O Império do Efémero: a moda e o seu destino nas sociedades modernas. Lisboa: Dom Quixote/ Biblioteca Dom Quixote, nº 5, 1989.

MARQUES, Sousa (1953) “Planície” in Mosaico. Colectânea de Autores Desconhecidos. Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural/ Contos e Novelas.

MATOS, Sérgio Campos (1997) “Política de Educação e Instrução Popular no Portugal Oitocentista”. Clio, nova série, vol. 2, pp. 85-107.

MELO, João de (1988) Gente Feliz com Lágrimas. Lisboa: Publ. Dom Quixote - Círculo de Leitores.

QUEIROZ, Eça de (1891) Uma Campanha Alegre. Volume II. Mem Martins: Europa-América/ livros de bolso, nº 494, [1987].