sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Peregrinação à Índia

Partilho isto como contributo para o conhecimento da profunda cultura da Índia:
Os Cinco Grandes Sacrifícios (Pancha Maha Yajña) que todo o chefe de família hindu tradicionalmente deve praticar:
1. Brahma Yajña - Estudar, debater e praticar os textos sagrados, bem como recitar mantras.
2. Pitr Yajña - Fazer oferendas aos espíritos dos antepassados.
3. Deva Yajña - Fazer oferendas aos deuses.
4. Bhuta Yajña - Oferecer comida e bebida a todos os seres vivos, incluindo insectos, para cumprir o preceito do Sanatana Dharma (Dharma eterno, Lei cósmica) de devolver aos outros seres o que deles constantemente recebemos. Não fazer isto é considerado roubar.
5. Atithi Yajña - Praticar a hospitalidade para com viajantes, estrangeiros, estudantes e santos, acolhendo-os e alimentando-os como deuses.
Em peregrinação pela Índia, visitámos hoje uma favela em Delhi e almoçámos em casa de uma família local. Fomos assim tratados, como deuses, por pessoas muitíssimo ricas, apesar de, segundo os nossos parâmetros, parecerem muito pobres.
Texto de Paulo Borges
Foto de Rita Viana

domingo, 16 de outubro de 2022

ENCONTRO DE ESCRITORES. Uma reunião inesquecível.

Fomos convidados para dar testemunho sobre Encontro de Escritores no Mosteiro de Alcobaça, onde terão estado alguns dos grandes escritores portugueses de todos os tempos, em tempo sem tempo, fiat lux. Um Encontro ficcionado que se passou no mundo dos sonhos. E nós olhávamos aquela condensada etérea nuvem de escritores, entre seus rumores, e demos conta dessa matriz herdada, intemporal, que se veio a chamar Portugal.

Luís Santos


Sonhei com Alcobaça
e do sonho que sonhei
sonhei que sonhava
de um sonho em que acordei
e não era eu que ali estava,
era a alma de Portugal
egrégora universal

Ainda nos lembra os picos da Atlântida, de que os Açores são parte. As conversas telepáticas, o brilho dos cristais, das viagens espaciais. Rememorações ancestrais. Das asas, dos voos. Das pedras piramidais, dos enormes templos. Dos sacerdotes e dos deuses das jornadas iniciáticas. Das festividades, das homenagens, dos rituais.

Ainda nos lembra das árvores. Nossas casas. Das árvores e dos frutos. Dos guinchos e das poças de água em que bebiam e chapinhavam, e às vezes até lutavam, com paus, com ramos, que se foram tornando pontiagudos. Grupos enormes, famílias extensas. Nómadas à procura de tempos quentes, e das marés. Das fogueiras e das cavernas.

Do ferro e dos arados. Das cabanas em círculo de entre-ser e dos centros das aldeias em que dançámos e se contavam estórias sobre estórias. De tudo se falava e de nada se escrevia. Riscos e desenhos, pinturas no chão e nos corpos. E se percutiam as danças onde se saltava bem alto em frente delas para mostrarmos da imensa leveza, da elevação.

Matriarcais saudades de jovens amazonas que viviam nos campos de escravizantes agriculturas. Quando se deixaram as deambulações, de bichos à solta, e se fixaram os animais e as terras, e se construíram as cercas para as crianças e as mulheres, das escolas e dos lares e das mamas, do leite. Da carne.

Do peixe e daqueles pescadores da Judeia, de Belém, entre os latins romanos do império que rendiam os gregos, mas só nas armas que não na filosofia. Da democracia, mas não para mulheres e escravos e estrangeiros, metecos aristotélicos e platónicas curtes, por sua vez, herdeiros de socráticos devaneios. Da maiêutica, da arte de dar à luz, do mundo das ideias.

Afinal, o Amor. A universal fraternidade. O céu infinito. O Amor... e a cruz. Jesus! Para tanto sofrimento que nos redima. Então e da meditação, do Buda, que nos livra do sofrimento? Do possível transcendental salto védico que nos livre daqui.  Do Deus no lugar do homem que, doravante, será parte de Deus. Da oração, do silêncio, do deserto. De Ti!

Cadê a deusa-mãe, cadê os celtas. Cadê celtas e iberos, endovélicos lusitanos.  Dos bárbaros godos e visigodos que depois voltaram. Os pagãos, as forças da natureza, as mágicas alianças. Avalon. Os druidas, as poções, dos milagres, da cura e a doença. A lógica analógica, a consciência cósmica. A totémica identidade. Todos indo-europeus, todos cristãos virados pelo avesso, anunciada evangelização.

O crescente lunar e a arabesca astronomia. Das bússolas, do astrolábio. Do Maomé e do Alcorão. De Meca, de Medina e da mesquita. Das deusas encantadas, enamoradas. Dos cânticos de amor. Desgostos do Amor. Da “xaria”. Da expansão e da desejada reconstrução do "mare nostrum". De Poitiers e de Carlos Magno, Urbano VIII de joelhos, imperador da cristandade.

Da reconquista católica. Dos cruzados e das cruzadas. Raimundo e Henrique, Teresa e Urraca. Afonso de Castela. Do Condado Portucalense. Guimarães. São Mamede, 24 de junho de 1128. Um rei sonhado e a sonhar com cristo-rei. Vai e funda o meu reino, vai Henriques. E ele foi.

E lá foi fazer o que Ele quis. Vai Dinis. Vem Santa Isabel. Vinde Língua Portuguesa. Vinde todos os peregrinos, toda a ordem do templo, ordem de cristo. Venha o espírito santo. O pai, o filho e a Jerusalém Celeste.  Vinde vendavais que rumorejam nos pinhais, venham todas as naus. Todas as ilhas dos amores.

(in, AMORIM, Francisco Gomes de & FONSECA, Henrique Salles da (2022) Encontro de Escritores, uma reunião inesquecível. Lisboa: Edições Vírgula, pp.40-43)

domingo, 2 de outubro de 2022

"Graffitar a Literatura" (XXX)

Luís Souta

«A medida do amor é amar sem medida.»

(Victor Hugo)


Tomás Pires (ÔJE), nascido em Lisboa, em 1987, e licenciado em Design de Ambientes (ESAD.CR, 2010), deu vida aos monos urbanos (caixas dedistribuição de electricidade e telecomunicações) espalhados ao longo da estrada principal que atravessa a vila da Ericeira. Essas infraestruturas incrustadas nos passeios (!) são, para lá, de um empecilho para quem aí circula, uma mácula visual. Nesse labor de recuperação artística (até com um certo didactismoecológico), ÔJE recorreu a elementos marinhos – peixes, golfinhos, polvos…

Ericeira, junto ao miradouro, no início da via pedonal que vai até à Foz do Lizandro
 
Este, fez-me lembrar Os Homens do Mar (Les Travailleurs de la Mer) deVictor Hugo (1866): «uma história de amor verdadeiro, a história de um abnegado herói, de umhomem só (como o autor), insulado do Mundo que, por amor, tudo e todos enfrenta, homens, medos e monstros, na tentativa de resgatar das profundezas escuras de um mar de escolhos a máquina (símbolo do progresso e de um mundo novo), ao mesmo tempo que faz prova do seu amor, não correspondido, a que tudo sacrifica…» (sinopse de Luís Gomes, Público, 05/05/2016, p. 47)

Esta obra de Victor Hugo teve várias edições no nosso país; recorro aqui à 3ª edição da Guimarães & Cª Editores, s/d; uma publicação fac-símile que reunindo os 2 volumes, saiu, em 2016, na colecção “Quem Vê Capas, Vê Corações” do jornal Público.Victor Hugo (1802-1885), figura proeminente do romantismo, membro da Academia Francesa (1841), autor de uma prolífica produção literária (enquanto poeta, dramaturgo, romancista e ensaísta) e na qual se destacam os clássicos O Corcunda de Notre-Dame (1831) e Os Miseráveis (1862). Victor Hugo foi umescritor fortemente  empenhado na vida sociopolítica do seu tempo, um liberal reformista, batendo-se contra a pena de morte, pela defesa da República… pagou num longo exílio (1851-1870), a sua oposição a Napoleão III, a quem apelidou de Napoleão, o Pequeno. Os Homens do Mar abre com estas palavras:

«Dedico este livro ao rochedo de hospitalidade e liberdade, a esse canto da velha terra normanda, onde vive um punhado de valorosos filhos do mar, à ilha de Guernesey, sempre severa e meiga, meu actual asilo, meu túmulo provável.»

Tal não se veio a verificar; regressaria a Paris onde seria ainda deputado daAssembleia Nacional ( 1870) e senador (1876)… e ali morreu (de uma congestão cerebral) com 83 anos. «Chegam montanhas de flores de todos os cantos da França – e o povo, emocionado, acompanha o poeta à sua última morada, o Panteão.» (José Ramón Araña in Os Forjadores do Mundo Moderno, 1968:108).
Alma grande e generosa: «dou cinquenta mil francos aos pobres» (lê-se no seu testamento).
No romance Os Homens do Mar, dividido em três partes, destaco os episódios épicos em que o principal protagonista – Gilliatt – se debate, em plenomar, com “O monstro”, assim designado, pelo  autor, no Livro IV da Segunda Parte:

«A pieuvre não tem massa muscular, nem grito ameaçador, nem couraça, nem chifre, nem dardo, nem pinças, nem cauda que prende ou contundente, nem azas com garras, nem espinhos, nem espada, nem descarga electrica, nem virus, nem veneno, nem garras, nem bico, nem dentes. A pieuvre é de todos os animaes o que está melhor armado.
O que é então a pieuvre? É a ventosa.
Nos cachopos do mar largo, nos sitios onde a agua ostenta e occulta todos os seus explendores, nas cavidades dos rochedos não visitados, nas covas desconhecidas, onde abundam as vegetações, os crustaceos e os mariscos, sobre os profundos porticos do Oceano, o nadador que ahi se aventure, enlevado pela belleza do sitio, corre o risco de se encontrar com ella. (II vol., pp. 102-3)

Cascais, Antiga Rua Direita, frente à Praia da Conceição

Este é um pormenor de um mural concebido em 2021 por Jacqueline De Montaigne, anglo-portuguesa, formada em ciências da saúde e a residir em Cascais; uma muralista tardia cujo primeiro trabalho surge só aos 36 anos de idade.
A capa de Os Homens do Mar, da autoria de Roberto Nobre (1935), define- a José-Augusto França como «uma pintura futuro-expressionista, à moda alemã, que o cinema (de que foi o maior crítico da sua geração em Portugal) lhe trazia» (citado em Rita Gomes Ferrão, Público, 05/05/2016, p. 47). Nesse artigo, a historiadora de arte remete «a cena representada, descritiva de um episódio da narrativa (…) a luta entre a figura humana e o polvo gigante» para um gramática Art Déco e as influências do cinema expressionista alemão dos anos 20.

«O monstro era o habitante d’aquella gruta. Era o genio medonho d’aquelle logar. Especie de sombrio demonio da agua. (…) Gilliatt mettera o braço pela fenda: a pieuvre agarrara-o.
Tinha-o seguro.
Gilliatt era a mosca d’aquella aranha. (…) Dos oito braços da pieuvre trez aderiam ao rochedo, e cinco a Gilliatt. D’este modo segura por um lado ao granito, e pelo outro ao homem prendia Gilliatt ao rochedo. Gilliatt tinha sobre si duzentos e cincoenta sugadores. Complicação d’angustia e de desgosto. Ser apertado por uma enorme mão, cujos dedos são elasticos, e quasi de um metro de comprimento, e interiormente cheios de pustulas vivas que penetram pela carne.
Já dissemos que não é possivel desprendermo-nos da pieuvre. Se o tentarmos, mais ligados nos sentimos ainda. Cada vez nos aperta mais. O seu esforço cresce na razão do nosso. Mais abalos produzem mais constrição.
Gilliatt tinha apenas um recurso, a navalha.» (II vol., pp. 108-9)

Gilliatt abate o monstro mas não ganha o amor de Déruchette, essa mulher que «usava todo o anno chapéus guarnecidos de flores; tinha a fronte altiva, o collo flexivel e tentador, os cabellos castanhos, a pelle alvissima, com algumas manchas de sardas no verão, a bocca espaçosa e sadia, e, sobre essa
bocca adoravel e perigosa, o explendor do sorriso.» (I vol., p. 43)

Déruchette que, num certo dia, ao escrever no gelo, ao lado da marca dos seus pequenos pés, a palavra “Gilliatt” viria a deflagrar, sem o querer, uma chama no coração do solitário (que vivia numa «especie de lazareto», a casa do fim da rua) e pouco estimado Gilliatt («os indígenas detestam os estrangeiros
enigmaticos», p. 15). Um amor nascido de um equívoco pelo qual lutou com a bravura de um autêntico herói. Venceu no mar, perdeu em terra.