Luís Souta
«A medida do
amor é amar sem medida.»
(Victor Hugo)
Tomás Pires
(ÔJE), nascido em Lisboa, em 1987, e licenciado em Design de Ambientes
(ESAD.CR, 2010), deu vida aos monos urbanos (caixas dedistribuição de
electricidade e telecomunicações) espalhados ao longo da estrada principal que
atravessa a vila da Ericeira. Essas infraestruturas incrustadas nos passeios (!)
são, para lá, de um empecilho para quem aí circula, uma mácula visual. Nesse
labor de recuperação artística (até com um certo didactismoecológico), ÔJE
recorreu a elementos marinhos – peixes, golfinhos, polvos…
Esta obra de
Victor Hugo teve várias edições no nosso país; recorro aqui à 3ª edição da
Guimarães & Cª Editores, s/d; uma publicação fac-símile que reunindo os 2
volumes, saiu, em 2016, na colecção “Quem Vê Capas, Vê Corações” do
jornal Público.Victor Hugo
(1802-1885), figura proeminente do romantismo, membro da Academia
Francesa (1841), autor de uma prolífica produção literária (enquanto poeta,
dramaturgo, romancista e ensaísta) e na qual se destacam os clássicos O Corcunda de
Notre-Dame (1831) e Os Miseráveis (1862). Victor Hugo foi umescritor
fortemente empenhado na vida sociopolítica do seu tempo, um liberal reformista,
batendo-se contra a pena de morte, pela defesa da República… pagou num longo
exílio (1851-1870), a sua oposição a Napoleão III, a quem apelidou de
Napoleão, o Pequeno. Os Homens do Mar abre com estas palavras:
«Dedico este
livro ao rochedo de hospitalidade e liberdade, a esse canto da velha terra
normanda, onde vive um punhado de valorosos filhos do mar, à ilha de
Guernesey, sempre severa e meiga, meu actual asilo, meu túmulo provável.»
Tal não se veio a verificar; regressaria a Paris onde seria ainda deputado daAssembleia Nacional ( 1870) e senador (1876)… e ali morreu (de uma congestão cerebral) com 83 anos. «Chegam montanhas de flores de todos os cantos da França – e o povo, emocionado, acompanha o poeta à sua última morada, o Panteão.» (José Ramón Araña in Os Forjadores do Mundo Moderno, 1968:108).
Alma grande e generosa: «dou cinquenta mil francos aos pobres» (lê-se no seu testamento).
No romance Os Homens do Mar, dividido em três partes, destaco os episódios épicos em que o principal protagonista – Gilliatt – se debate, em plenomar, com “O monstro”, assim designado, pelo autor, no Livro IV da Segunda Parte:
«A pieuvre não tem massa muscular, nem grito ameaçador, nem couraça, nem chifre, nem dardo, nem pinças, nem cauda que prende ou contundente, nem azas com garras, nem espinhos, nem espada, nem descarga electrica, nem virus, nem veneno, nem garras, nem bico, nem dentes. A pieuvre é de todos os animaes o que está melhor armado.
O que é então a pieuvre? É a ventosa.
Nos cachopos do mar largo, nos sitios onde a agua ostenta e occulta todos os seus explendores, nas cavidades dos rochedos não visitados, nas covas desconhecidas, onde abundam as vegetações, os crustaceos e os mariscos, sobre os profundos porticos do Oceano, o nadador que ahi se aventure, enlevado pela belleza do sitio, corre o risco de se encontrar com ella. (II vol., pp. 102-3)
Este é um pormenor de um mural concebido em 2021 por Jacqueline De Montaigne, anglo-portuguesa, formada em ciências da saúde e a residir em Cascais; uma muralista tardia cujo primeiro trabalho surge só aos 36 anos de idade.
A capa de Os Homens do Mar, da autoria de Roberto Nobre (1935), define- a José-Augusto França como «uma pintura futuro-expressionista, à moda alemã, que o cinema (de que foi o maior crítico da sua geração em Portugal) lhe trazia» (citado em Rita Gomes Ferrão, Público, 05/05/2016, p. 47). Nesse artigo, a historiadora de arte remete «a cena representada, descritiva de um episódio da narrativa (…) a luta entre a figura humana e o polvo gigante» para um gramática Art Déco e as influências do cinema expressionista alemão dos anos 20.
«O monstro era o habitante d’aquella gruta. Era o genio medonho d’aquelle logar. Especie de sombrio demonio da agua. (…) Gilliatt mettera o braço pela fenda: a pieuvre agarrara-o.
Tinha-o seguro.
Gilliatt era a mosca d’aquella aranha. (…) Dos oito braços da pieuvre trez aderiam ao rochedo, e cinco a Gilliatt. D’este modo segura por um lado ao granito, e pelo outro ao homem prendia Gilliatt ao rochedo. Gilliatt tinha sobre si duzentos e cincoenta sugadores. Complicação d’angustia e de desgosto. Ser apertado por uma enorme mão, cujos dedos são elasticos, e quasi de um metro de comprimento, e interiormente cheios de pustulas vivas que penetram pela carne.
Já dissemos que não é possivel desprendermo-nos da pieuvre. Se o tentarmos, mais ligados nos sentimos ainda. Cada vez nos aperta mais. O seu esforço cresce na razão do nosso. Mais abalos produzem mais constrição.
Gilliatt tinha apenas um recurso, a navalha.» (II vol., pp. 108-9)
Gilliatt abate o monstro mas não ganha o amor de Déruchette, essa mulher que «usava todo o anno chapéus guarnecidos de flores; tinha a fronte altiva, o collo flexivel e tentador, os cabellos castanhos, a pelle alvissima, com algumas manchas de sardas no verão, a bocca espaçosa e sadia, e, sobre essa
bocca adoravel e perigosa, o explendor do sorriso.» (I vol., p. 43)
Déruchette que, num certo dia, ao escrever no gelo, ao lado da marca dos seus pequenos pés, a palavra “Gilliatt” viria a deflagrar, sem o querer, uma chama no coração do solitário (que vivia numa «especie de lazareto», a casa do fim da rua) e pouco estimado Gilliatt («os indígenas detestam os estrangeiros
enigmaticos», p. 15). Um amor nascido de um equívoco pelo qual lutou com a bravura de um autêntico herói. Venceu no mar, perdeu em terra.
Sem comentários:
Enviar um comentário