sábado, 31 de dezembro de 2011

Associados do Dialogos_Lusofonos com ligações na Rede



Amigos dos diálogos juntem-se a nós e visitem os associados do dialogos lusófonos  (br.groups.yahoo.com/group/dialogos_lusofonos/ )
com ligações na Rede. Destaco alguns a seguir:

africa21digital ;
angolanodeandrade   ;
António Borges Sampaio ;
Colóquios da lusofonia ;
didinho  ;
Estudo Geral ;
Instituto Camões ;
Jornal Recomeço  ;
Ler Jorge Sena  ;
Marciarfrazao
portugaldigital 
Projeto Releituras ;
saudades-sefarad ;
timorcrocodilovoador ;
Vidas Lusófonas ;

Mas partilhem os endereços dos vossos blogs  para fortalecermos  a Rede em Língua Portuguesa.  Estou certa que a nossa lista não está completa!

Margarida Castro

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

DA VISÃO

Este Mundo é uma ilusão (Civilização Maya).

A imagem tal como ela é concebida é uma projeção na dimensão. Sendo assim é uma forma limitada de algo que pode não o ser, logo ilimitada. Sendo o observador condicionado pelos seus sentidos, neste caso a visão, não tem acesso ao que originou a imagem, pois esta jamais pode ser vivenciada exteriormente. Assim a projeção é uma imagem deformada da introjeção.

A dimensão em que vivemos, chamada de terceira, é uma projeção criada. Sendo criada a partir de um observador limitado na sua visão, certamente não corresponde ao original, mas sim a uma imagem adaptada aos sentidos desse mesmo observador na frequência em que este se encontra. Questiona-se então se todas as imagens observáveis, observadores incluídos, não serão puras ilusões.

No princípio está o arquétipo, que se vai refratando de cima para baixo, de plano em plano, de frequência em frequência, em múltiplas formas, do menos denso para o mais denso, nenhuma delas igual à anterior. Aceitando o observável como verdade e realidade única estaremos a cooperar numa ilusão dimensional.

Espera-nos um futuro em que a aceitação duma multidimensionalidade iniciará o surgimento duma visão que se encontra em embrião no DNA de cada ser, será o fim da ilusão, o aparecimento do Novo Homem.

A.A

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

d´Arte - Conversas na Galeria LXX


Poeira de Estrelas Autor António Tapadinhas
Acrílico sobre tela 60x50 cm

Mistura de cores estranhas para gerar um espaço de descoberta com novas luminosidades cromáticas, induzindo uma impressão de autêntica liberdade criativa.

A minha maior realização em 2011 foi o lançamento do meu livro, por isso, vou terminar o ano com um conto.
Entretanto, façam-me o favor de ser felizes!

HISTÓRIA DE UM PINTOR

Aquele sou eu, deitado naquela cama, na fria brancura hospitalar. Estava cheio de dores, com tubos de drenagem na barriga, com agulhas que me injectavam soro nas veias, o peito mordido por pontos que ajudavam a juntar o esterno serrado e agrafado. Não me doía menos a perna esquerda, também cosida, depois de tirada a veia grande safena, da qual, três segmentos foram ligados a outras tantas oclusões arteriais coronárias. Agora, não me apetece voltar: estou aqui tão bem, junto ao tecto, perto do relógio cujo tic-tac abafa todos os sons, apaga todas as dores.
Não posso ficar a olhar para mim, eternamente. Poderei seguir a vereda luminosa que tenho à minha frente? O brilho é tão intenso, que não deixa ver onde termina aquele caminho ladeado por árvores de luz, que estranhamente parecem projectar sombras para o tornar mais apetecível de percorrer. Será que este fio de luz que me liga ao meu corpo, pode esticar o suficiente para eu o percorrer por inteiro?
O caminho faz-se, caminhando.
Curioso: o fim parece estar sempre à mesma distância, mas já não consigo ver o meu corpo. Será que ainda posso voltar? Tanta luz, tanta cor... Será que ainda quero voltar?
Começo a ouvir vozes. Melhor: sons que saem daqueles corpos de luz, envoltos por finas películas, como enormes bolas de sabão, com todas as cores do arco-íris e de outras que vejo pela primeira vez.
Estão a falar todos ao mesmo tempo. Sinto os sons na minha cabeça, só que não percebo o que dizem, como numa feira, com todos os amplificadores no máximo, mas mal sintonizados.
À medida que avanço, começo a entender alguns dos pensamentos sonoros, que as figuras trocam entre si. A cada momento, esta capacidade aumenta. Cada átomo do que sou deixa-se envolver pela carícia das mensagens trocadas.
Já não há árvores nem sombras, assim, sem transição. Estou numa clareira, imensa como um oceano de luz, num céu em que flutuam incontáveis películas que, ao aproximarem-se umas das outras soltam sons melodiosos e suaves que parecem comandar os tons luminosos das esferas, num concerto intraduzível, mas coerente, de luz e sons.
Dou por mim a movimentar-me ao compasso daquela música e, não sei como, os meus movimentos vão deixando no espaço réstias de luz que vão construindo o meu casulo.
Um som mais insistente sobrepõe-se a todos:
- Que fazes? Não podes ficar aqui!
Um casulo destaca-se dos outros. Parece formado por pétalas de girassol. Lá dentro distingo alguém com luminosos olhos verdes, com barba e cabelos ruivos, encimados por um chapéu de palha que lhe rodeia a cabeça como um halo. Um contraste de cores complementares, que me permite, sem esforço, identificar o meu interlocutor.
- Vai-te embora! Eu fico à tua espera na casa amarela.
E eu vi a casa! O pequeno terraço, o candeeiro, as mesas e as cadeiras, o toldo amarelo. De repente, a luz que penetrava tudo começou a desaparecer num turbilhão, como sugada por um vento cósmico gerado pelos ciprestes a roçar as estrelas desse céu exaltado e fantástico.
- Volto, quando? – pensava.
- Logo que estejas pronto, saberás.
Tal como a luz desaparecia, também o fio que me prendia ao meu corpo, parecia perder luminosidade.
Momentos antes, estava no paraíso; agora sentia uma urgência desesperada de regresso.
E regressei: rápido como a luz... para a luz, para a vida.
Fiquei com uma certeza: não posso desperdiçar um minuto. Não por mim – tenho a minha cadeira reservada no terraço da “Casa Amarela” – mas por algo que ainda tenho para fazer. Quando chegar o momento, saberei... e espero não falhar.
Há coisas que é melhor não sabermos – ou não as contar a ninguém!

ANTÓNIO TAPADINHAS

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Os Caminhos de Santiago



Na estalagem dos torpores,
eu deixei por esquecimento
o bornal das minhas dores,
ais dum rosário de vento.
Fui pelos penhascos da serra
e a cidade antiga vi,
no seio quente da terra
pelas cicatrizes me abri.
Dum corpo já depurado
comi, não tinha sabor;
na ara fui desmembrado
num parto quase sem dor.
Lagarto, insecto ou dragão,
alada bicho provei,
meu corpo fundido ao chão,
minh'alma na mão do rei.
Minha boca quis gritar,
uma romã me calou,
vêm espadas de cortar
e a três alfanges me dou.
Mergulhei fundo na treva
como quem foge da luz,
descendo como quem leva
aos ombros pesada cruz.
O peso que me afundava
fazia que fosse leve
quanto de mim se elevava
numa brancura de neve.
Nos dois pratos da balança
minhas entranhas e o nada
pesavam à confiança
somente o pó da jornada.
De ambos os lados intruso,
do avesso me vesti;
tal qual a tinta que eu uso
na luz doirada me vi.
Ardi no fogo viscoso,
minh'alma se embebedou
do meu sangue licoroso,
do sémen que me gerou.
Mais quente o sangue me corre
depois de às veias voltar,
renasci como quem morre
no verme que ousou voar.

ABDUL CADRE
Vendas Novas, 27 de Fevereiro de 2010

(In D. Quixote suplemento do Diário do Sul)

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

INTIMIDADES


NINGUÉM TELEFONA À ELISABETE


Para a
Maria Sarmento, o Joaquim Serra e a Paula Canena.
Que o graal não mais vos abandone e a poesia também.

É fácil de compreender que a Elisabete sempre tenha sido a minha prima preferida. Se o facto de sermos co-etários nos aproximou nas brincadeiras e, mais tarde, nos estudos, as cumplicidades acarretaram o aprofundamento dos laços até à indestrutibilidade. Sobre estas não vou falar por só a nós dizerem respeito e as primeiras são por demais evidentes para que percamos tempo com elas. A verdade é que, entre a nova geração da linhagem, era com ela que eu mais me relacionava e só a ela confessei alguns dos mais profundos suspiros da alma. Desde os primórdios dos meus registos memográficos que ela está lá, em baixos relevos, quase fazendo o pleno dos momentos decisivos da minha biografia. Foi ela que comigo escolheu a roupa que vesti no dia do meu casamento e os seus olhos sempre acompanharam os meus, quer nas vitrinas da entrada para a Universidade, quer nas esperas dos resultados de exames importantes. Quando não podia estar telegrafava ou usava o telefone e o mesmo sempre eu fiz que, nisto de amizades, a reciprocidade é uma condição imprescindível.
A Bétinha, para os pais e os tios, Bete para o irmão e simplesmente Bé, para mim, cedo se revelou uma criança de poucos segredos e muito virada para os aspectos mais alegres do estar acordado. Aquilo era um constante traz dali para aqui, um eco automático de novidades e opiniões, o que, associado às suas capacidades de síntese e exposição, faziam dela uma espécie de telejornal da fratria e utilizo propositadamente o vocábulo videográfico, pois era ela tão cheia de pormenores e mímica que, nas melhores reportagens, quase nos fazia ver os filmes das narrativas. Nas piores ocasiões das suas novas, os primos mais velhos chegavam a enxotá-la e o Zé Carlos, na sua qualidade de primogénito, avançava mesmo com o epíteto de abelha para a expulsar do local. Mas ela sabia estar perante brisas que, embora se repetindo, nunca iam além da sua natureza de ventanias temporárias. Até porque todos os outros gostavam dela e da sua maneira de estar e, depois, devo dizer que também não desdenhavam a larga maioria dos noticiários. A prima Elisabete encontrava, inevitavelmente, um modo de contar que arrastava os risos e, orelhas moucas que era para as suas cantorias públicas e os reparos que nos outros escapavam, a sua ausência jamais deixou de ser notada nas festividades familiares. Como pensa no instante de um relâmpago, não admira que tenha cursado língua e literatura inglesa com as duas pernas às costas, conseguindo um tempo de primeira opção para o Conservatório, onde se formou no canto lírico que actualmente exerce, de forma semi-profissional, em acumulação com a docência num dos liceus históricos da capital, onde mora, ainda solteira e muito dada a folias. Naqueles saraus em que os mais novos eram solicitados a mostrarem os seus talentos e em que eu, à falta de melhor, invariavelmente interpretava o “Ele E Ela” da Madalena Iglésias, sempre foi a Bétinha quem mais se esmerava no aprumo das suas actuações que, à voz, geralmente acrescentavam sofisticadas coreografias. Era a sua veia artística que tão precocemente se revelou e de forma indelével.
E que brincadeiras nós tínhamos, Deus meu, que de tantas e tão variadas, sem qualquer exagero, dariam para ilustrar um manual de passatempos para a infância. Entre aquelas havia uma que, pela sua raridade, era especial de se gozar pelo muito gargalhar que espoletava. Estou a falar da clandestinidade dos nossos telefonemas anónimos, com os quais nos divertíamos apenas por perguntar se o senhor Américo Pinto já tinha sido promovido a galo ou, então, para marcarmos encontros, com certos homens, em nome de potenciais amantes imaginárias, para posteriormente saborearmos as esperas infrutíferas a partir de qualquer ponto estratégico. Era uma tentação irresistível, sempre que a mãezinha tinha que sair e nós podíamos desfrutar a privacidade das portas fechadas do hall em que estava a mesinha de tripé para o telefone. Ele houve um dia em que fomos severamente castigados, depois de o meu pai ver a conta de uma tarde de telefonemas para os Estados Unidos e outros países, estes, europeus. Mas até essa condenação que, já a adolescência ia de vela aberta, acabou por desaguar no abandono daquela diversão, foram vários os períodos em que a paródia mais se parecia com um vício.
Mas acabou por chegar o dia em que o feitiço se virou contra o feiticeiro.
Para mal dos meus pecadilhos, a Bé tinha uma amiga muito amiga que me irritava solenemente e que, sem que alguma vez a tivesse incentivado para tanto, em redor das despedidas liceais começou a perseguir-me com intuitos namoradeiros que apenas tinham por consequência o obrigar-me a fazer-me invisível e instantâneo nas desaparições. Estas coisas não se explicam e o que acontecia é que eu não sentia qualquer atracção por ela o que, na concomitância de um verdadeiro comportamento de lapa, não me apresentava qualquer alternativa às pernas para que te quero.
Ora vêem, como vocês são espertos, é claro que a minha querida priminha lançava os seus pauzinhos para o fogo e, não contente com as incertezas que expressava de maneira a que a outra alimentasse esperanças, estava sempre a providenciar para que eu me cruzasse com ela e, de preferência, sem interferências de terceiros. E estais vós a imaginar como ela era pródiga e eficaz naquela sua santa-antoniedade.
Certa vez eu apurei que ambas se preparavam para me levarem até Sesimbra, onde, para efeitos de pernoita, ficariam apenas os dois que já se sabe.
Ah marota que me queria pôr a vida em perigo. Mas eu, então, consegui levar a vante.
A coisa era para elas aparecerem casualmente em minha casa e me convidarem para fazer, já me esqueci o quê, mas pouco importa, o certo é que tudo terminaria com uma estadia num hotel daquela vila pesqueira e balnear.
Pois no fim da tarde anterior, eu tratei de telefonar à minha tia Emilinha e, voz camuflada, pois então, em nome de uma dada pessoa, deixei um recado que pedia à Bé para esperar um telefonema, na tarde seguinte, a fim de decidir um encontro que andava para acontecer há algumas Luas.
Escusado seria dizer que a prima Bé passou a tarde e a noite em casa, prenhe de lamentos e impaciências, mas a campainha nunca se fez ouvir em nome da voz desejada.

Alhos Vedros, 30 de Abril de 1998

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

"Quebrando Nozes No Paraíso"



Trilho o Caminho do Mundo
Misturo-me com a poeira do Tempo
Encho-me de sons Humanos
Abro os ouvidos ao piar das coisas
Oiço os passaros cantando em côro
Estou no Paraíso por momentos a cada virar de página
Viro-me para o Sol para o adorar todos os dias
Abraço a Lua como se a uma noiva o fizesse
Atiro-me ao mar de braços e mente abertos
Mergulho nas profundezas da vida e do ser
Lavo-me das impurezas e dos bocados de pecado
Visto-me de laço e terno para a noite da eternidade
Lanço-me festa adentro até ao seio do Universo
Só de lá volto após um bom repasto na ultima seia
Saio mais humilde e cabisbaixo do que nunca
Venho vergado do peso da alegria que me cerca o coração
Trago a Alma solta e sem mágoas algumas
As minhas asas espraiam-se pelo horizonte todo
Vôo para lá da existência em um imaginário sem fim...


Escrito por manuel de sousa, em Luanda, Angola, a 22 de Dezembro de 2011, em Homenagem aos Mestres Maiores da Iluminação e do Pensamento Inteligente...e dedicatória a todos os que celebram o Natal...

domingo, 25 de dezembro de 2011

O Largo da Graça


Cidadania

Se banalizarmos a vida, banalizamos o eterno, diz Agostinho da Silva.

Vivemos tempos de neo-liberalismos triunfantes, mas lá virão socialismos de mercado. Iremos continuar a democratizar as democracias.

Generalizadas ideias de competição e de concorrência entre as nações são palavras limitadas que hoje os economistas muito utilizam, porque lhes facilitam as contas...

Enfim, o que é, é. Estamos como estamos.

A torneira roda e lava-se o rosto, o esquentador liga-se e aquece a água, o frigorífico é omni-presentemente frio, a hélice gira e partimos a voar. Milagres da capacidade de pensar. Só a utilização que se dá à indústria militar era dispensável, mas lá chegarão os primos dos rabudos lémures, na justa medida que descobrirem os caminhos do espírito.

Assim, melhoraremos as nossas capacidades de participação social, cooperando em vez de competir, equilibrando mecanismos de troca em vez de concorrer.

De barriguinha cheia aprenderemos melhor a aprender, organizaremos melhor o trabalho (toda a gente sabe que o trabalho dá trabalho de mais, mas pouco se fala nisso, porque ainda não chegou lá a consciência dominante), descobriremos novos e mais interessantes caminhos de cura, abrir-se-ão os caminhos dos anjos.

Na organização política temos de arranjar maneira de instituir o Conselho dos Sábios em vez do Conselho de Estado. Mas o que é um sábio? Será que existem homens sábios capazes de nos ajudar a traçar o caminho?

Se banalizarmos a vida, banalizamos o eterno.


Luís Santos


sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Onze teses contra os inimigos do Acordo Ortográfico (II) *

Fernando dos Santos Neves **

«Muito mais do que questão técnico-linguística, o Acordo Ortográfico é uma questão político-estratégica», sustenta o reitor da Universidade Lusófona, no Porto, em artigo publicado no jornal Público, de 9/8/2011. Destinatários: «[Os] que ainda não entenderam que, "conosco ou sem-nosco" como humoristicamente se tem dito e escrito, em virtude da globalização contemporânea e da emergência do Brasil como grande potência (já ouviram falar do BRIC, iniciais de Brasil, Rússia, Índia, China..., a que eu gostaria de ver acrescentada também a inicial "A" de Angola...?), será imprescindível a existência de um Acordo Ortográfico (por enquanto, com alguma magnanimidade dos outros parceiros da língua portuguesa).» * Trata-se de um texto mais desenvolvido em relação a outro anterior, com o mesmo título, publicado no Jornal de Letras de 14/8/2008, e em linha desde então, também neste espaço.

1. Onze Teses. Inspiram-se no célebre manuscrito de Karl Marx, simplesmente intitulado Ad Feuerbach, em que a preposição latina "Ad" significa "Contra" e em que Marx estigmatizou os conceitos e preconceitos daquele filósofo alemão, como aqui se pretendem estigmatizar os conceitos e preconceitos de todos aqueles que, consciente ou inconscientemente, continuam a fazer suas as, por opostas razões, também célebres palavras do luso ditador «orgulhosamente sós». Aliás, como é sabido, das 11 Teses de Marx contra Feuerbach foi a 11.ª, de todas a mais breve, que se tornaria também de todas a mais famosa:«Até agora os filósofos têm interpretado o mundo de diversas maneiras, mas o que verdadeiramente importa é transformá-lo»!



2. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa quer ser isso mesmo e nada mais: um acordo sobre a ortografia e não um acordo sobre o vocabulário, a sintaxe, a pronúncia, a literatura e tudo o resto (que é, indubitavelmente, o mais importante) que constitui uma língua viva e, ainda por cima, uma língua potencialmente universal como a língua portuguesa e até uma das pouquíssimas línguas potencialmente universais do século XXI, como já Fernando Pessoa anteviu nos princípios do século XX.

3. Para satisfação dos antiacordistas deverá mesmo dizer-se que, do ponto de vista técnico-linguístico, o proposto Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa padece de muitos defeitos e carece de muitos aperfeiçoamentos, sendo que até não será um exagero afirmar que a sua principal virtude é a de existir (à semelhança, por exemplo, das democracias portuguesa, brasileira, etc., que, imperfeitíssimas embora, é bem melhor que existam do que o seu contrário). Ou será que não?




4. E já agora, e como a subjacente acusação dos antiacordistas é a de que o Acordo Ortográfico constitui um verdadeiro ato de traição a Portugal (o que não deixa de fazer lembrar velhas acusações e despertar velhos fantasmas...), bastaria um mínimo de lucidez para entender que é, precisamente, o Acordo Ortográfico que permitirá a continuação da existência da língua portuguesa no Brasil, etc., a qual, sem ele, inevitavelmente se tornará, a breve trecho, a "língua brasileira”, como de algum modo principiaria a ser o caso. Sem nenhuma tragédia, aliás, para a Humanidade, mas, suponho, com algum legítimo sofrimento para todos os portugueses.




5. Além das motivações "patrioteiras", como se vê sem qualquer fundamento, há também as motivações "interesseiras" dos editores e livreiros portugueses, e que só são devidas à curteza de vistas que o nosso crónico e anacrónico analfabetismo global ainda continua a alimentar e de que as atuais Feiras do Livro de Lisboa e Porto constituem ilustríssimo documento, não tendo surtido grande efeito o pequeno ensaio por mim publicado há anos e que tinha por título: "As velhas feiras do livro português estão mortas, vivam as feiras do livro lusófono!" (Público, 10 de junho de 2006)



.

6. Na verdade, muito mais do que questão técnico-linguística, o Acordo Ortográfico é uma questão político-estratégica e só os referidos "patrioteiros" e "interesseiros" é que ainda não entenderam isso, nem também entenderam que, "conosco ou sem-nosco" como humoristicamente se tem dito e escrito, em virtude da globalização contemporânea e da emergência do Brasil como grande potência (já ouviram falar do BRIC, iniciais de Brasil, Rússia, Índia, China..., a que eu gostaria de ver acrescentada também a inicial "A" de Angola...?), será imprescindível a existência de um Acordo Ortográfico (por enquanto, com alguma magnanimidade dos outros parceiros da língua portuguesa). Será assim tão difícil de entender?





7. A já denominada «ressaca colonialista» do velho Portugal é, sem dúvida, uma das razões, por vezes inconsciente, da oposição de muitos ao Acordo Ortográfico, que não se dão conta do que isso tem de anacrónico e de ultrapassado. Quando entenderão isso tanto os velhos colonialistas de antanho, como os anticolonialistas de sempre?





8. Outro factor igualmente ultrapassado e anacrónico é o que também já foi designado de «síndroma salazarista de Badajoz», para aludir ao facto de Salazar nunca ter ido, simbolicamente, além daquela cidade fronteiriça e que, também simbolicamente, traduz a estreiteza das suas vistas e visões (suas, dele e suas, de todos estes retardatários históricos) ...




9. É por tudo isto que a questão do Acordo Ortográfico não pode deixar de estar ligada à questão da lusofonia, entendida ela também não só nem sobretudo como "questão linguística", mas sim como "questão político-estratégica" e que, nos últimos anos, depois de aparentemente ter conseguido introduzir o vocábulo nos dicionários da língua portuguesa, tenho procurado estender a outros níveis, nomeadamente pela recorrente formulação da seguinte "tese": mais que projeto ou "questão cultural" e até "linguístico-literária", a lusofonia é um projeto ou uma "questão de estratégia comum de desenvolvimento humano sustentável e de espaço geopolítico próprio no globalizado mundo contemporâneo. O que também é válido para a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), que deveria adotar o nome mais cairológico e menos restritivo de "Comunidade Lusófona".





10. Que, ao menos, não se chame a qualquer "Manifesto contra o Acordo Ortográfico" "Manifesto em defesa da língua portuguesa", porque não haverá maneira mais eficaz de acabar com esta, independentemente, claro, das boas intenções de muitos dos ditos "manifestistas", aos quais, não sem alguma maldade, já foi aplicada a sentença evangélica: «Perdoai-lhes porque não sabem o que dizem e escrevem!
»




11. Até aqui já se disse e escreveu quase tudo e o seu contrário sobre e contra o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa; o que importa, agora, é efetivamente começar a praticá-lo.



 À falta de uma verdadeira Academia Lusófona da Língua Portuguesa (finalmente proposta na "XIV Semana Sociológica", realizada no Porto, a 7, 8 e 9 de abril de 2008), esperemos que o Governo da nação e toda a sociedade portuguesa não venham a ser condenados por falta de comparência a este apelo e desafio da História.

08/08/2011

** Sobre o Autor:
Criador da primeira licenciatura portuguesa de Ciência Política. Primeiro reitor da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias e da Universidade Lusófona do Porto.

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Texto enviado por:
J. CHRYS CHRYSTELLO, Presidente da Direção,
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quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

d´Arte - Conversas na Galeria LXIX


Centro Comercial Autor António Tapadinhas
Acrílico sobre tela 80x100cm

No momento em que comecei a escrever estas palavras faltavam 3 dias, 15 horas, 02 minutos e 4 segundos, para o Natal! Sei isto, porque tenho no computador um relógio enviado por um amigo, que está a fazer a sua contagem decrescente.
Em Portugal, o comércio em geral irá facturar montantes aproximados ao total dos restantes onze meses do ano.
Todas as novidades aparecem nesta altura e as campanhas publicitárias são tão arrasadoras que não dão tréguas em nenhum sector da nossa sociedade. Esta data, agrava a tendência para fazermos as coisas como autómatos. Alguém anda a programar a nossa vida sem nos dizer nada: vamos para o trabalho à mesma hora, comemos e dormimos ao mesmo tempo. E agora, aquilo que nos interessa, fazemos as compras no mesmo mês do ano, com tendência para ser na mesma semana e, com o passar do tempo, no mesmo dia: o último...
A Teoria da Evolução, de Darwin, afirma que as espécies animais existentes na Terra, sofrem ao longo das gerações, uma modificação gradual que põe em evidência a selecção natural. Na luta pela sobrevivência, os mais bem adaptados são os que deixam mais descendentes.
Um Centro Comercial, no Natal, ou na altura dos saldos, é um espaço cheio de cor, de luzes berrantes, de homens e crianças berrantes, distribuido por diversos pisos, em que as pessoas se atropelam para chegar primeiro, chegar mais alto, lá no cimo da prateleira, onde está aquele brinquedo que ainda ninguém viu, onde está aquela folha verde, jovem, tenrinha e suculenta, a que só a girafa com o seu pescoço imenso poderá chegar...
Da conjugação destes dois conceitos tão diferentes, Centro Comercial e Teoria de Darwin, nasceu esta obra. Espero que gostem dela, porque apesar de tudo,
EU ADORO O NATAL!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Dois Poemas


Fernanda Leite Bião[1]

Menininho!

Menino rasteiro
Olhos preguiçosos
Carinha de dengo
Sorriso sem dono

Responde com sempre
Acumula tarefas
Nem sempre satisfeito
Corre, corre a léguas

Não sabe se é sim
Quem sabe o não
Aprendiz da razão
Converte em leis

O dever é o presente
A moral eterniza
O direito é de quem?
Para sempre menino!




O tempo

O tempo se abre
Chovem anos
Chovem caminhos
Chovem possibilidades

O tempo passou
Com ele, a saudade
A dor que machuca
A lágrima pulsante

O tempo é alegria
De noite, de dia
Em cima
Embaixo

Passeia com a vida
Estadia certeira
História vivida
E, quem sabe, contada



[1] Psicóloga e Professora de Psicologia em Belo Horizonte.  E-mail: fernandabiao9@hotmail.com.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

INTIMIDADES



UM BRINDE COM CHAMPANHE

Para a
Elisabete Gonçalves,
um pela sugestão, dois pela amizade,
from the deep of the heart.

A mãe sempre disse que eu era um cabeça na Lua. Não que alguma vez tenha sido alguém que passa pelos dias sem lhes observar as colorações ou que participa no quotidiano sem lhe sentir o pulsar. Nada disso e até desde muito cedo que eu gosto de indagar as ondas que me envolvem e aqui e ali me encharcam a pele, ora acolá se ficam pelo humedecer do rosto. É, em mim, precoce, o hábito de cogitar sobre as diferenças entre os sapatos que amparam os múltiplos caminhares deste mundo e os mistérios das estrelas e da física terrestre de há muito que me fascinam e deixam cheio de vontade de perguntar. Aliás, de que outra forma eu poderia ter vindo a fazer-me escritor, sem tais recordações, quando sabemos, a expressão da escrita é, em parte, igualmente um trabalho de memória? Mas a santa senhora tinha razão, eu desempenhava aquelas atenções com a negligência de outras e, sem ser um gaiato virado para o nariz e o umbigo, eu vivia esquecido de uma série de pequenos eventos e coisas que interessavam aos outros. Isso notava-se e levava-os a referirem-se-me como uma pessoa que facilmente se deixava navegar pelos circuitos que o imaginário cria.
A verdade é que desde a mais tenra idade me vi forçado a conviver com esse jeito pouco cómodo de abandonar, no olvido de brincadeiras, aquilo que deveria levar pela mão e, como deveis calcular, a sofrer as consequências que isso me trazia em termos de punições e das dores de alma que, amiúde, vinham associadas às perdas. Dos óculos que ficavam nos bancos de jardim ou se partiam atrás das pedras que demarcavam as balizas de jogos que nos faziam sentir Eusébios e Pelés, aos chapéus de chuva que ainda hoje, anualmente, desaparecem com a intermitência das primeiras chuvas, ele houve trabalhos de casa por cumprir, recados trocados com desencontros e bagagens extraviadas e até correrias atrás de carreiras que levavam a mala esquecida no banco em que tinha travado uma converseta de se lhe tirar o chapéu, se não, tão só, por deixar que os olhos pousassem nas sucessões de imagens no caminho para a escola. Hoje é com um sorriso que me recordo das aflições que me invadiam quando, numa boa mão cheia de ocasiões, logo no hall do instituto superior, fui recebido pela verificação de ter que prestar provas de exame daí a um simples par de horas.
Qualquer um de vós tomaria por incómodos estes rastos de boca aberta e mãos à cabeça e o mesmo se passa comigo. Compreensivelmente, muito teria preferido que a maioria dos casos não o tivessem sido. O problema é que sempre tive em mãos algo que me ocupava o cérebro e quase apenas por intuição, Sol bocejante, percebi a falta de tempo para me concentrar nos propósitos de obviar os aspectos mais desastrosos da minha maneira de ser. E dou graças a Deus por não me ter sido muito difícil a aprendizagem da coexistência com essas pedras caídas sobre o pé.
No entanto, com este meu olhar flutuante, nem só em espinhos me espicacei. A vida é assim mesmo e a lei dos equilíbrios, só por si, encarregar-se-ia de trazer a fragrância das compensações e rosas houve que bem perfumosas me foram polvilhadas sobre o contentamento.
Um dos prémios para a minha inocência aconteceu-me num jantar do staff e convidados de um festival de cinema, em Tróia, já lá vão uma boa dezena de anos. Aproveitei eu e a Luísa a folga daquele Sábado para nos entretermos com películas que sabíamos não virem a passar nos circuitos comerciais e outras que, ali, teríamos oportunidade de ver em género de estreia. Ela convidou uma amiga de infância e lá fomos os três com o entusiasmo de quem vai satisfazer curiosidades cinéfilas. Telefones para cá e para lá e a minha mulher combinou encontro com a Léninha e o Rui que ali permanecia para efectuar a cobertura jornalística do evento. Amigos de universidade e cumplicidades da juventude, logo ele tratou de nos convidar para jantar, para o que se dispôs, de imediato, a obter-nos os ingressos necessários para lhes fazermos companhia no salão onde todo o pessoal participante se alimentava. Lamentavelmente, na opinião do meu amigo, só lhe foi possível requisitar dois convites, muito embora, em acto contínuo, eu tenha manifestado a disponibilidade para pagar a minha despesa, o que fiz com toda a naturalidade e é claro que algo diverso não seria de esperar. Chegada a hora do manduco e sabendo que me deveria dirigir para a mesa quatro, depois de ver os meus convivas entrarem por uma portinhola de fundos, lá fui em demanda do sítio de pagamento. Na antecâmara do espaço gastronómico, não dei conta de nada que se assemelhasse a um local de cobrança, mas vi uma fila de pessoas, à entrada, na qual me coloquei. Pouco depois estava em frente dos meus companheiros, não sem antes ter sido salamalequeado pelos empregados que iam passando e conduzido à mesa devida pela cordialidade e educação de um deles. Sentei-me e jantei, num convívio feito de sétima arte e recuerdos, bem como as opiniões avulsas que, nestas ocasiões, sempre acontecem a respeito dos assuntos que fazem as gordas dos media. Quando o repasto foi dado por findo, chamei um empregado e perguntei-lhe quanto estava a dever, uma vez que não trazia qualquer daquelas tarjetas de passe. E o outro, com um sorriso que não sei se de gozo se de complacência, disse-me com bons modos que eu estava ali como convidado do festival pelo que nada teria que desembolsar.
Mas tenho para mim que o pódio está ocupado por uma certa garrafa de champanhe.
Tudo começou por uma das minhas desgraças, quando, já perto da Ericeira onde iríamos passar um fim-de-semana em casa da Teresa e do João, dei conta de não trazer comigo as chaves do carro que deixara perto da residência deles, em Campo de Ourique. A memória dizia-me que aquelas apenas podiam ter ficado na porta do veículo. Por entre o meu susto do pensar no dinheiro que iria perder se me furtassem o automóvel e a opinião do João sobre a reduzida probabilidade de passar ali alguém que simultaneamente reparasse no meu esquecimento e tivesse a intenção de me causar dano, lá regressamos a cem à hora à capital e eu, bufando, no viaduto Duarte Pacheco, deixei escapar a promessa de brindarmos com champanhe se o objecto fosse recuperado a contento. E o suspiro de alívio nem se fez esperar. Um pedreiro de uma obra fronteira ao estacionamento tinha visto tudo e guardado o abre-te sésamo. O reatar do lazer foi uma rodagem de gargalhadas e na estância balnear, no supermercado em que fomos comprar o vinho para o jantar, dei conta da venda do prometido néctar francês. A palavra tinha sido dada e eu apresentei a garrafa à menina da caixa que digitou o preço enquanto eu tirei as notas que tinha no bolso e eram, uma de cinco mil escudos, uma de mil e outra de quinhentos. Mal tive tempo de lhes atirar o rabo do olho, pois a rapariga, com maus modos e ar de desdém, sacou-me uma de imediato e à velocidade do som, deu-me cento e cinquenta em moedas como troco. Guardei o dinheiro e saí dali sem me certificar se a conta estava certa ou não.
Foi quando eu me ofereci para pagar os cafés, após o jantar e o primeiro brinde comemorativo que eu verifiquei que mantinha comigo as duas notas mais altas.

Portel, 29 de Abril de 1998

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Vidas Lusófonas



ANCORAR!
Sim Amigos,
acabámos de ancorar VIDAS LUSÓFONAS
junto à barra do nosso porto. Os 143
passageiros começam a descer para ir
festejar convosco o NATAL e o ANO NOVO.
Para chamá-los, queiram clickar sobre
o nome de cada qual.

Os vultos vão assinalados com um P (de Portugal), ou um Br (de Brasil), ou ainda um Ang (de Angola),
CV (de Cabo Verde), G (de Galiza), GB (de Guiné-Bissau), Moç (de Moçambique), STP (de São Tomé
e Príncipe) e TL (de Timor Lorosae).

domingo, 18 de dezembro de 2011

Corpo Total

corpototal 56
13/11/2011
(fotografia de tiziana & gianni baldizzone, 2006)

vamos ser positivos entre as canadianas cinzentas, e negras
o pé no ar, a sala está quase escura vejo a literatura como
o fim do dia a mão arrancando de uma só vez a pele da parede
tudo se descobre como o sangue dos tijolos, o mel do cimento
quente, a volatilidade do fim do dia, desce quando começa, o princípio
do corpo quando não há outro para fazer arrebatador, na voz única
o corpo debruçado ao topo num primeiro plano há ainda tulipas violetas
espalhadas no pau preto, a dureza da madeira incontornável, superior
ao castanho, o perfil selectivo, ondulação, deslizar como um animal
dou o pé ao meu olhar, a mão limpa na parede, vinho escondido nos trilhos
da janela da manhã em istambul casa erguida voa até aqui no mar

corpototal 57
28/11/2011
(fotografia de marc riboud, "eiffel tower painter", 1953)

escrevo aos que me observam
levanta-te e põe-te de pé
dança aí no meio da mesa
a saia cada vez mais larga
e grande pronta a saltar a
cabeça contra o mar, estende
a mão traz-me a espuma da onda
e nos dedos a certeza que a poesia
está sã, nunca tive segredos azuis
dançamos depois todos no horto
o inverno está a chegar, já não
vaza a saudade, o amor nunca se
escolhe, sei nada, uns calados
para os outros em aparição a lã

José Gil
 http://joseamilcarcapinhagil.blogspot.com

sábado, 17 de dezembro de 2011

ONDE PERDI PAPAI NOEL?



Faz muitos anos, nem sei mais quantos, que perdi Papai Noel. Na verdade não entendo bem se o perdi ou se ele me perdeu...

Lembro-me de um natal, não sei bem se tinha nove ou dez anos, em que, não conformada em nunca ver o Papai Noel, cheguei mesmo a cogitar a possibilidade dele chegar apenas depois que eu estivesse dormindo para que não tivesse que falar comigo. Certamente porque não gostava de mim, cumpria apenas o dever de levar-me algum presente como fazia, na minha imaginação era assim, com todas as crianças do mundo. Eu deveria ter feito alguma coisa de muito terrível para que isso acontecesse. O sentimento de culpa começou a tomar conta de mim sem que eu soubesse porque, ainda mais que escutava de meus pais, avós e tios, durante o ano inteiro, que se eu não fosse uma boa menina Papai Noel não me traria nada porque ele não gostava de criança malcriada, teimosa, desobediente e toda uma ladainha de pecadilhos infantis. Como sempre gostei de enfrentar as situações ao invés de fugir delas, na noite de natal pedi para dormir na sala porque, assim, poderia encontrar os pacotes na árvore de natal logo que acordasse. Muito a contragosto meus pais concordaram. Terminada a ceia, corri ao meu quarto e peguei um travesseiro e um saco de dormir. Naquele tempo as mesas de jantar eram enormes, a lá de casa acomodava doze pessoas, era comprida e larga. Sem pestanejar, arrumei o meu saco de dormir sob a mesa e fechei os olhos. É claro que eu não estava dormindo, mas por mais que vez por outra meu pai e minha mãe viessem até a sala, bem devagarinho, e mexessem em meus braços ou nos cabelos eu não abria os olhos e até ressonava. Convictos do meu sono apagaram as luzes da sala, deixando aceso apenas o pisca da árvore de natal. Passado algum tempo ouvi uns passos, entreabri os olhos e vi um par de pés calçando uns chinelos que eu conhecia, olhando um pouco mais para cima reconheci o pijama listrado que cobria aquelas pernas no mesmo instante em que elas se curvaram e os embrulhos de presentes foram colocados no chão, ao pé da árvore. Dei um pulo e gritei “peguei Papai Noel”. Meu pai me olhou um tanto assustado, como se tivesse feito uma asneira e eu, imediatamente, senti um grande vazio dentro de mim. Abracei-me com ele e chorei. Havia desmoronado, na minha frente, o meu mais belo sonho de menina, mas ao mesmo tempo eu havia também perdido o sentimento de culpa que me atormentava. Foi um misto de decepção e alívio. E ali, naquele instante, na madrugada do natal eu perdi Papai Noel... ou será que ele me perdeu?


Nádia P. Chaia

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Mondego, de Daniel Pinheiro (VP)

Cá fica o belíssimo documentário sobre o rio "Mondego", de Daniel Pinheiro, agora na versão portuguesa. Pode ser visto também no You Tube em: http://www.youtube.com/watch?v=ztT9UXinq3E

"MONDEGO" Versão Portuguesa from Daniel Pinheiro on Vimeo.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

d´Arte - Conversas na Galeria LXVII


Caldeira do Moinho Pequeno Autor António Tapadinhas
Acrílico sobre tela 80x100cm

Tenho mostrado algumas das muitas telas que pintei em que os Moinhos de Alburrica são a figura central do quadro. Há outros moinhos, os de maré, que funcionavam com os ritmos da subida ou descida das águas.
O esqueleto da casa, que aparece na parte esquerda do quadro, é onde funcionava o moinho de maré. Da língua de terra, em frente, vêem-se as entradas de água que faziam girar o sistema. Num dos meus passeios pela zona, apercebi-me das possibilidades pictóricas daquela casa e do seu moinho. Depois de estudar o horário das marés, e ver as condições do tempo, porque precisava de um céu sem nuvens para poder tirar o máximo partido dos surpreendentes e espectaculares reflexos dos tijolos na água, consegui realizar uma obra que me deu grande satisfação produzir.
O que eu não sabia é que, afinal, a história do moinho ainda não estava completa!
Um dia, fui ver uma exposição na escola Alfredo da Silva, que fica junto ao rio. Naturalmente, olhei para a caldeira e fiquei espantado com o grau de destruição atingido pela casa e moinho, em tão pouco tempo. E fiquei fascinado pelo esqueleto que parecia o resultado de um incêndio que tivesse atingido a construção.
Resolvi perpetuar na tela a destruição daquela casa que, ao contrário da adaptação cinematográfica do livro de Ray Bradbury, dirigida por François Truffaut, não precisou de nenhum bombeiro, Montag ou outro qualquer, para atingir um grau de destruição máximo (ver aqui). Esta obra é o resultado da falta de interesse pelo nosso património, não num futuro distante, não num regime totalitário, mas sim na actualidade e num regime democrático. Só falta, mesmo, dizer que a beleza faz as pessoas infelizes e improdutivas, como nesse livro/filme de culto.
Talvez seja a altura de lá voltar para ver o que aconteceu.
Os pintores consideram interessantes as coisas mais inesperadas, não acham?
Concluo dizendo que infelizmente por todo o lado há "Pombinhas"...

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

"Pombinha"




Aqui vai uma foto da "Pombinha", que continua em agonia no estaleiro do mestre Jaime em Sarilhos Pequenos.

Abraço.
Joaquim Raminhos

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

INTIMIDADES


 

OS LIMITES DO UNIVERSO


É fácil de ver, eu fui um menino de família, ali criadinho entre os quintais e a praça vizinha da porta da residência, sempre sob o olhar atento de alguém e sem o mínimo laivo de ousadia para andarilhar muito além do raio de uma corrida. Eu até cedo experimentei as deslocações geográficas; meus pais faziam época balnear em Sesimbra e possibilitavam-nos mais vadiagens em outras estações do ano, ao que devo acrescentar as idas para as termas, em Monte Real e mais tarde no Luso, com isso materializando a noção da diversidade e grandeza do território. Logicamente, após ter aprendido a ler e a escrever passei a ter a oportunidade de contactar com a vastidão terrestre através de atlas e de mapas e em outros livros e, desde então, ganhei definitivamente a consciência da pequenez relativa do meio em que cresci. Mas até à idade dos sete anos, quando entrei naquilo que então se chamava a escola primária, fora do quarteirão circunvizinho à casa onde vivia, apenas saía dali pela mão dos mais velhos. Pelo meu pé, o ir até meio de uma rua que do largo partia na direcção do que para mim era desconhecido, o ir até meio dessa rua, precisamente até ao ponto em que ela se esquinava com a viela que a unia a uma outra, sua paralela, isso era uma aventura que eu vivia com o trepidar no coração de quem sente uma aflição que pela barriga parte para tolher as pernas. E mal aí chegado voltava para trás; um portão de chapa, ondulada, pintada de encarnado e que fazia a frente do entroncamento, era esse o marco do mundo meu conhecido e, não sei porquê, olhava a continuação da rua e o que se avistava do que se lhe seguia como uma espécie de terra de ninguém, imaginando-a selvagem e insegura.
São as transformações coisa curiosa de se observar ainda que se discuta em que pode consistir o progresso e se muitas delas efectivam ou não aquele. Não quero aqui entrar em discussões teóricas, mas apenas dizer que sempre gostei de olhar aquilo que se ia alterando à minha volta. E, tal como acontece à realidade envolvente, também as pessoas se modificam. Creio até que a primeira mudança ocorre em nós, nos olhos que lançamos sobre o que nos rodeia e que vamos assimilando de maneira diversa à medida que vamos crescendo. No entanto, a cultura é, por natureza, dinâmica e mesmo as paisagens que mais aparentam imutabilidade sofrem, de facto, os mais diversos acréscimos ou subtracções, bem como variadíssimas transmutações.
Eu cresci naquilo que podemos designar como uma pequena localidade, uma comunidade cujo núcleo urbano não chegava às duas mil pessoas que, praticamente, se conheciam todas entre si. Cheguei a disputar a bola em plena estrada que ligava a vila às outras e actualmente existe um nó rodoviário que tirou o trânsito do centro, em cujo viaduto e semáforos se assiste a horas de ponta e a um tráfego intenso que se prolonga pela madrugada. Às vezes, quando estou sentado e ocioso numa esplanada que agora existe no largo dos meus calções, em frente do coreto, afluem-me à memória os assobios das andorinhas, nos fins de tarde. Mas o que mais radicalmente se modificou, talvez tenha sido o facto de estar ali com a minha mulher ou qualquer outra amiga. No tempo em que eu era miúdo, as mulheres não frequentavam os cafés e muito menos se sentavam à mesa com os homens. A par desta, a remodelação da geografia perfaz o fim do mundo da minha infância, a ponto de hoje, ainda que muitas casas e ruas sejam as mesmas, eu tenha dificuldades no reconhecimento dos sítios.
E o engraçado é que moro num lugar que para mim estava nas paragens do fim do mundo. Na época em que entrei para a escola, à direita do edifício estilo Estado Novo começava a lezíria domada pelas quintas e as salinas e viveiros de peixe, na beira-rio. Agora sei-o, mas naquele primeiro dia em que fui levado pela mão do meu pai até aos degraus de entrada, naquelas primeiras semanas, eu olhava o caminho entre valados e lá voltava a atribuir-lhe o mistério de uma superfície inexplorada. Lembro-me até como me arrepiava só de pensar que por ali podiam andar homens maus armados com facas e paus.
Era a idade em que eu, de ver imagens das estrelas e do cosmos em algum livro ou revista, imaginava a imensidão do Universo e perguntava-me se nos seus limites não haveria nenhum portão encarnado. Não, não, portão, fosse de que cor fosse, não poderia ser; o portão era feito pelas pessoas e nesses limites não havia ninguém. Mas pensava que a assinalar o fim de tudo deveria haver uma qualquer espécie de pórtico, cujas formas me intrigavam e que uns dias fantasiava de uma maneira e noutros dias de modo diferente. Nem eu sei quantas não terão sido as noites em que eu adormeci com aquelas reflexões.
E quem seria o construtor de tal pórtico?

Portel, 27 de Abril de 1998


segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O Largo da Graça


E-ternidade (cont.)

"O Homem é aquilo que pensa" disse Buda, mais de seiscentos anos Antes de Cristo, ouvi eu dizer ontem.

Temos o maior respeito por todos os textos sagrados, sejam Védicos ou Hindús, venham dos Árabes ou dos Judeus, de Buda ou Lao-Tsé...

Todas as pessoas com as suas crenças e fé merecem-nos a maior atenção, e esperamos que o seu sentimento seja recíproco. Esperamos e desejamos que o tempo das fogueiras inquisitórias, da eliminação do outro só porque ousava ser diferente, pertença a um passado triste e de má memória.

Também nós temos a nossa matriz espiritual e para lá das pontes que podemos e devemos estabelecer com todos os outros povos e civilizações, devemos integrar e desenvolver o que é nosso.

Recuando, até, ao paganismo lusitano que continua vivo, mas, sobretudo, desenvolvendo a nossa matriz cristã que nos dá os instrumentos necessários para uma magnífica navegação à bolina, com vela triangular e tudo.

Creio que era a essa ampla espiritualidade portuguesa, ou melhor, lusófona, de interesse mundial, e mais além, que Agostinho da Silva se referia quando rebuscou no fundo da nossa alma histórica o culto popular do Espírito Santo.

Ele que dizia que a melhor religião, decerto, seria aquela que conseguisse pensar todas as outras...

Luís Santos

sábado, 10 de dezembro de 2011

O Largo da Graça



Ir à escola...

As nossas escolas reflectem o espírito da organização económica competitiva e concorrencial, neo-liberal, em que vivemos.

Somos aquilo que conseguimos Ser. O resultado das sucessivas reformas educativas que cada "ministro" transporta na lapela... essa tão árdua e difícil tarefa. Será?

Mudámos alguma coisa nas últimas décadas? Creio que sim.

Podemos mudar algumas coisas nos próximos anos? Claro.

No horizonte vejo uma Escola que ajuda pessoas a relacionarem-se com pessoas. Que partilha, que para lá do si percebe da importância dos outros e do mundo, que aprende a estar em Paz, que ama o Amor...

E assim direi que (auxiliando-me de Sua Santidade Dalai Lama e do Professor Agostinho da Silva) uma vez dotados de um precioso corpo humano, nave tão difícil de obter, não devemos amesquinhar a vida, porque senão amesquinhamos o eterno.

Mas o que é isso de ser e-terno?

Luís Santos

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Tempos


Avesso ao calendário traço
no espaço o tempo onde me distraio:

sei do amanhecer que me acorda
do meio dia que me alimenta
da tarde propícia à tormenta
da noite em que me desoriento

revisito o tempo na capa
da magia e me refugio
em mim mesmo

mantenho o som do rádio
e me delicio em estáticas: olhos
fechados
            imagino a cena na tela
            despegada.


(Pedro Du Bois, inédito)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

d´Arte - Conversas na Galeria LXVI

Lisboa, Tejo e Tudo Autor António Tapadinhas
Acrílico sobre tela 60x70cm

Era uma vez um sábado à tarde de um dia de Verão, com aquele céu azul de que só os pintores não gostam: sabem que, por muito que tentem, a realidade suplanta sempre a sua obra! Saímos de casa, eu, a minha mulher e as nossas duas filhas, Elsa de cinco anos e Dulce de seis anos, e atravessámos a ponte 25 de Abril, com destino ao Parque Eduardo VII, em Lisboa. A minha mulher tinha nessa tarde uma reunião. Ficou combinado que, enquanto ela ia cumprir uma árdua missão de trabalho, eu iria ficar com as crianças a brincar no parque! Mulher sofre! Como eu estava enganado...
Num primeiro momento, o Paraíso: crianças (eu incluído) a jogarem às escondidas, gargalhadas joviais, o prazer da descoberta em cada gesto, em cada corrida...
De repente, Elsa começa a chorar, a chorar, a chorar... Dulce, oferece-lhe tudo o que tem. O que não tem, inventa – um passarinho azul na mão, no jardim rouba flores de todas as cores... Eu faço o pino, subo às árvores, guincho como um macaco, grito como Tarzan... O choro sempre a aumentar! Dulce, a fazer beicinho, vai dizendo: “Bebé não chora, bebé não chora!”. Em três horas podemos ter uma boa noção do que é o Inferno!
O grande drama, sabem qual foi? Não havia telemóveis, porque quando a minha mulher chegou, Elsa calou-se!
Até hoje ainda não arranjámos explicação para o acontecido!
A minha filha mais nova formou-se em Marketing e Publicidade. Eu não tive nenhuma influência na sua opção: na altura, eu era Group Product Manager, no Marketing da Colgate-Palmolive Portuguesa. Pronto, se calhar tive um bocadinho de responsabilidade...
A minha filha mais velha, Dulce de seu nome (como era o da minha mãe), formou-se na Fundação Ricardo Espírito Santo e, no Instituto Piaget, tirou a licenciatura para Professora de Ensino Básico, variante de Educação Visual e Tecnológica, com a média de 17 valores, estágio 18 valores. Não é uma média fabulosa? Actualmente, está a dar aulas de EVT. Não tive nada a ver com essa opção: na altura ainda não pintava! Limitava-me a fazer uns bonecos para elas se rirem!

Esta minha filha já nasceu assim talentosa. No dia de dos meus anos, ofereceu-me este desenho como prenda. Aquele cabeludo, sou eu a treinar na mesa de bilhar que tinha em casa, porque jogava no Sport Lisboa e Benfica, e ela está a oferecer-me os chocolates de que eu tanto gosto. Na cabeceira da cama, tenho outro desenho lindo, que ela fez a partir duma fotografia, com o seu retrato e o da irmã.
E sabem uma coisa? Apesar de tudo o que está a acontecer com a Escola e o ensino em Portugal, ela não admite outra hipótese: quer ser professora!
O seu indomável espírito, foi buscá-lo, não tenho dúvida, aos genes da mãe.
Para o bem e para o mal, o seu gosto artístico e o masoquismo, só podem ser meus...
(Texto escrito em Outubro de 2008)

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Os Caminhos do Espírito


“Os óculos são uma prova de que nós não fomos feitos para ler”. (Leonel Limão)

 A manifestação do Espírito em nós é pessoal e interior. Para a sua manifestação é preciso uma libertação de todas as vãs distrações, solicitações, a tudo o que nos prende. É necessária uma disponibilização absoluta.

A experiência com o Espírito é uma experiência de unificação. Deixa de haver separação alguma, por exemplo, entre corpo e alma. A experiência da plenitude é tudo o que o Homem mais deseja.

O Espírito é aquilo que nos abre para o ilimitado, para o absoluto, o infinito, a eternidade.

Sínteses de experiências místicas:
- O real é holístico;
- Tudo é simultâneo, tudo está aí. O espaço e o tempo, medidos, são separações feitas pelo Homem;
- A eternidade, a maravilha é aqui. Tudo está dado. É agora e é sempre agora. A evidência é que estar aqui é estar dentro do coração da totalidade.

As religiões são veículos para que a experiência da plenitude se possa concretizar.
Religião=relicare=religar: Aspiração humana à ligação com o divino.

Os exercícios espirituais têm como objetivo (re)trazer a consciência à não dispersão, ao centro, à perceção dessa realidade Una. A necessidade de recolhimento tende a evitar aquilo que mais nos prende: o prazer (desejo) e o medo. É necessária uma disponibilidade total.

Sentimento de compaixão, o devido sentimento de todos pela felicidade de todos, sem exceção.
Ascese, etimologicamente, exercício contínuo.
Mística, unificação com a divindade (o real absoluto).
O exercício contínuo visa tornar-nos melhores.

Eventualmente, não podemos sempre presenciar a experiência pura, mas temos a ideia de que ela existe.

Religioso ou ateu, em ambos pode haver lugar para a afirmação da alma, ou do espírito. Ambos são caminhos que podem permitir o desenvolvimento espiritual.

Em suma, a beatitude, a salvação, não são só para depois. Podem ser para já. E não é preciso ser religioso, pode ser ateu.

Carlos Rodrigues

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

INTIMIDADES


O DESPERTADOR

Ainda que não seja uma lei universal, hoje em dia já são raros os pais que se intrometem nas escolhas amorosas dos filhos e é vulgar que estes se limitem a comunicar a decisão quanto ao laço, absurdo que é, para tantos jovens, a ideia de pedirem o consentimento parental para que se cambiem as delícias e carícias de um namoro. Nem sempre foi assim, mesmo nestas nossas latitudes em que as novas atitudes ganharam fóruns de cidade; houve um tempo em que os mais novos escutavam ou, se quisermos, eram obrigados a escutar os mais velhos, quiçá se sinceramente anuindo e respeitando os seus pontos de vista, sendo certo e sabido os dramas e dramas a que as inúmeras desobediências tinham conduzido.
Eu não estou, nem quero estar a fazer o julgamento das situações, a pretender que fosse melhor como era, por isso lamentando aquilo que se tenha perdido ou, ao contrário, a tomar a defesa da realidade actual. Nem isso é importante para o que me traz aqui. Provavelmente, como em tantas coisas deste mundo, ambos os casos terão os seus aspectos positivos e negativos e se os catarmos bem catados –e sempre de cabeça fria e aberta- em qualquer deles encontraremos ensinamentos que nos poderão ser úteis para a definição das nossas próprias opções e consequentes expressões. Enfim, a isto se chama o senso comum. Pela minha parte, limito-me à constatação, dou por irrelevante a opinião e, aqui, pouco ou nada me interessam outras indagações.
Fácil é adivinhar, eram meus avós gentes de outra época. Diz minha mãe que a minha avó não era mulher de impor um noivado aos filhos e tão só razões que ela nunca conseguiu descortinar a levariam a propor e a apoiar a proibição de uma determinada preferência que de resto, diga-se com justiça, jamais aconteceu. Mas é claro que não abdicava da sua colherada e tanto lhe acontecia mofar da cara e dos ares de uma hipotética candidatura, como não se coibia de opinar, aos mais diversos níveis, em tudo o que tivesse a ver com o futuro dos que lhe tinham mamado do peito. E a todos repetiu que se preocupassem em encontrar alguém que fosse trabalhador e poupado.
Imaginem, mulher que personificava a genica, pau para manter em espelho uma casa com uma ninhada de sete, a quem nunca faltou a inspecção para que tudo estivesse bem e ainda com tempo e espaço mental para orientar, ao pormenor, as canseiras da parcela gastronómica e dormitória de um restaurante pensão que o avô possuía e era único na vila. A todos punha num virote que ela mais não dava que as ordens e depois tinha aquela arte feiticeira de aparecer sempre que a manchinha de pó ainda permanecia sobre um móvel qualquer. E com o marido partilhava as contas e preocupações e, em consonância, se resguardava da cobiça alheia, fazendo eco de uma narrativa que, em muito, diminuía os cabedais que, em lugar secreto, iam guardando.
Perante alguém assim, era obra querer contrariar-lhe os intentos ou a maneira como ela lia os sinais do quotidiano.
Lá diz o povo que santos da casa não fazem milagres, não é verdade? Na História há o equivalente e nas histórias das famílias também. É que os anais registam os nomes e façanhas dos comandantes, mas quase sempre calam a memória do imediato e isto para nem chegar a falar do soldado raso. Pois bem, a minha avó tinha o seu braço direito em quem, a parir de uma certa idade, delegava as responsabilidades, se não as mais importantes, pelo menos as mais árduas e entediantes. Era a minha tia Benita, a quem a vida se encarregou de atirar para o papel da filha que permanece para companhia e amparo dos pais.
Eu não sei explicar o que possa ter originado semelhante fado, até por causa da beleza dessa minha tia que, de acordo com os olhos de minha mãe, a muitos trouxera pelo beicinho e a todos cerceara sequer as vias para a mais leve das aproximações. Aconteceu e para aqui é quanto basta. Mas estou em crer que em muito terá contribuído a tal omnipotência materna de que falei. É que a minha tia Benita era tímida e tanto que, já anosa, ainda lhe testemunhei o recato de sorrisinhos atrás da palma da mão direita. De toda a prole, era ela quem mais guardava o silêncio em face das oratórias superiores e era ela a primeira a corar com as brincadeiras e ditos dos irmãos, bem como dela partiam os avisos que constituíam a presença das autoridades.
Cronos tratou do resto. Qual a rosa que não murcha e perde o brilho, mesmo que mantenha o perfume por muito e muito tempo? A minha tia não fugiu à lei e com isso deixou escapar a condição casadoira, dela se dizendo o desperdício que era um partido tão rico e encantador.
Quando a minha avó faleceu tinha ela pouco mais de cinquenta anos e um pai e um restaurante para cuidar –a pensão encerrara há uma boa mão cheia de translações.
Talvez tenha sido isso que a levou a pensar ter chegado a hora de contrair matrimónio e se decidiu melhor o fez, sem dar atenção a quem quer que fosse.
O eleito foi aquele que veio a ser o meu tio Tomás, um operário electricista que, de uma fábrica da CUF, passou a trabalhar em empreitadas por conta própria para a construção civil.
Ele teve a particularidade de apenas uma vez na vida ter chegado atrasado ao trabalho. Foi depois de uma noite em que, não interessa porquê, eles tiveram de pernoitar em casa dos maus pais. Simplesmente aconteceu que o despertador que tinham trazido, por motivos óbvios, naquela manhã não tocou.
“-Eu não te disse?” –Começou ele com o seu compasso de eterna calmaria, enquanto se preparava para buscar o dever. “-O despertador estranhou a mesa de cabeceira.”

Portel, 24 de Abril de 1998