segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

OS NOVOS TEMPLOS


Por
Abdul Cadre

Nunca será demais sublinhar que utopia não é aquilo que é impossível de realizar mas tão-só o que ainda não se realizou!
Eis a razão pela qual a utopia pode e deve estimular proficuamente os passos do homem: só o que ainda se não realizou merece verdadeiramente o nosso empenho e o nosso esforço, até porque o que está feito, feito está.
Os demitidos do sonho – e o sonho comanda a vida, como diz Gedeão – caracterizam-se, entre outras coisas, por nos atirarem à cara o rodriguinho pateta do «não sejas utópico», porque, nas suas precárias e cinzentas existências, substituíram os sonhos pelos pesadelos, pela miséria doirada com que a sociedade consumista nos ilude e robotiza a nossa humanidade. Esta sociedade é a realização espúria da mentira colocada no altar profano da verdade, dado esta ser habitualmente amarga para os que vivem sem vontade e aquela parecer doce, sobretudo ser doce na boca dos que se submetem e iludem.
Eis porque nos esvaímos em aparentes e efémeras felicidades, nesses fugazes momentos em que a posse nos possui entre o útil e o fútil.
A lucidez dói fundo sem bálsamo que a alivie. Por isso, Schiller gritava: «Porque me lançaste de olhos abertos na terra dos cegos, para lhes proclamar o vosso oráculo? Levai-me de novo esta agudeza de vista que me enche de tristeza! Tirai-me dos olhos esta luz cruel! Restituí-me a cegueira – as bem-aventuradas trevas dos meus olhos; levai-me, levai-me este dom fatal!»
Os templos onde dantes se cultuavam as inventadas divindades das nossas safadezas, dos nossos remorsos e de algum desejo de ascese foram há muito abandonados pela maioria, que ergue agora outros e novos templos de precários céus palpáveis. São os mini, os super, os híper e os megamercados da nossa conformação, da nossa tangível e falsa felicidade. Eis firmemente assente no chão o céu possível onde somos recompensados à medida da nossa bolsa, que é por ela que se afere o nosso merecimento. Os artigos comprados transformam-se paulatinamente em objetos de culto, círios e velas aromáticas, ex-votos. As prateleiras são facilmente muros de lamentação sobre as quais a nossa bolsa não tem poder e, para que tudo se enquadre na religião do palpável sem utopias nem lirismos, haverá os necessários bodes expiatórios, que serão todos aqueles que afrontem os nossos delírios induzidos.
Que belas catedrais concretas e tangíveis!
De entre esta maioria, destacam-se os iludidos de serem depositários da chama do desejo de altura. Afirmam não pertencer à corrente adormecida, mas estão igualmente infetados de mercado. Por isso, também eles inventam altares que, tal como os supermercados, têm santos para todos os gostos e para todas as bolsas em abundância e futilidade. É ainda e só o reino da quantidade, mas aqui no comércio blasfemo com o Alto e no engano de feira dos incautos. Num mercado e noutro, em tudo isto é o neopaganismo ctónico, desenfreado e inútil, onde tudo cabe e tudo se confunde para uso dos incautos e benefício dos astutos.
Mas não se creia que os incautos são inocentes. Não! Os incautos, tal como os escravos são sempre culpados da servidão a que se prestam, ou contra a qual não se revoltam.
Tampouco a ignorância pode atenuar a culpa, antes a agrava, pois que é bem mais grave que o homicídio, ou o suicídio, porque estes apenas matam o corpo, enquanto aquela mata a própria Alma. Uma Alma leva milhares de anos para atingir a maturidade, enquanto um corpo se faz adulto em uns escassos 25 anos.
Texto ligeiramente reformulado em relação ao original publicado em 2006 no Volume I da revista Lusophia


(ver em http://abdulcadre.blogspot.com/)


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