NINGUÉM TELEFONA À ELISABETE
Para a
Maria Sarmento, o Joaquim Serra e a Paula Canena.
Que o graal não mais vos abandone e a poesia também.
É fácil de compreender que a Elisabete sempre tenha sido a minha prima preferida. Se o facto de sermos co-etários nos aproximou nas brincadeiras e, mais tarde, nos estudos, as cumplicidades acarretaram o aprofundamento dos laços até à indestrutibilidade. Sobre estas não vou falar por só a nós dizerem respeito e as primeiras são por demais evidentes para que percamos tempo com elas. A verdade é que, entre a nova geração da linhagem, era com ela que eu mais me relacionava e só a ela confessei alguns dos mais profundos suspiros da alma. Desde os primórdios dos meus registos memográficos que ela está lá, em baixos relevos, quase fazendo o pleno dos momentos decisivos da minha biografia. Foi ela que comigo escolheu a roupa que vesti no dia do meu casamento e os seus olhos sempre acompanharam os meus, quer nas vitrinas da entrada para a Universidade, quer nas esperas dos resultados de exames importantes. Quando não podia estar telegrafava ou usava o telefone e o mesmo sempre eu fiz que, nisto de amizades, a reciprocidade é uma condição imprescindível.
A Bétinha, para os pais e os tios, Bete para o irmão e simplesmente Bé, para mim, cedo se revelou uma criança de poucos segredos e muito virada para os aspectos mais alegres do estar acordado. Aquilo era um constante traz dali para aqui, um eco automático de novidades e opiniões, o que, associado às suas capacidades de síntese e exposição, faziam dela uma espécie de telejornal da fratria e utilizo propositadamente o vocábulo videográfico, pois era ela tão cheia de pormenores e mímica que, nas melhores reportagens, quase nos fazia ver os filmes das narrativas. Nas piores ocasiões das suas novas, os primos mais velhos chegavam a enxotá-la e o Zé Carlos, na sua qualidade de primogénito, avançava mesmo com o epíteto de abelha para a expulsar do local. Mas ela sabia estar perante brisas que, embora se repetindo, nunca iam além da sua natureza de ventanias temporárias. Até porque todos os outros gostavam dela e da sua maneira de estar e, depois, devo dizer que também não desdenhavam a larga maioria dos noticiários. A prima Elisabete encontrava, inevitavelmente, um modo de contar que arrastava os risos e, orelhas moucas que era para as suas cantorias públicas e os reparos que nos outros escapavam, a sua ausência jamais deixou de ser notada nas festividades familiares. Como pensa no instante de um relâmpago, não admira que tenha cursado língua e literatura inglesa com as duas pernas às costas, conseguindo um tempo de primeira opção para o Conservatório, onde se formou no canto lírico que actualmente exerce, de forma semi-profissional, em acumulação com a docência num dos liceus históricos da capital, onde mora, ainda solteira e muito dada a folias. Naqueles saraus em que os mais novos eram solicitados a mostrarem os seus talentos e em que eu, à falta de melhor, invariavelmente interpretava o “Ele E Ela” da Madalena Iglésias, sempre foi a Bétinha quem mais se esmerava no aprumo das suas actuações que, à voz, geralmente acrescentavam sofisticadas coreografias. Era a sua veia artística que tão precocemente se revelou e de forma indelével.
E que brincadeiras nós tínhamos, Deus meu, que de tantas e tão variadas, sem qualquer exagero, dariam para ilustrar um manual de passatempos para a infância. Entre aquelas havia uma que, pela sua raridade, era especial de se gozar pelo muito gargalhar que espoletava. Estou a falar da clandestinidade dos nossos telefonemas anónimos, com os quais nos divertíamos apenas por perguntar se o senhor Américo Pinto já tinha sido promovido a galo ou, então, para marcarmos encontros, com certos homens, em nome de potenciais amantes imaginárias, para posteriormente saborearmos as esperas infrutíferas a partir de qualquer ponto estratégico. Era uma tentação irresistível, sempre que a mãezinha tinha que sair e nós podíamos desfrutar a privacidade das portas fechadas do hall em que estava a mesinha de tripé para o telefone. Ele houve um dia em que fomos severamente castigados, depois de o meu pai ver a conta de uma tarde de telefonemas para os Estados Unidos e outros países, estes, europeus. Mas até essa condenação que, já a adolescência ia de vela aberta, acabou por desaguar no abandono daquela diversão, foram vários os períodos em que a paródia mais se parecia com um vício.
Mas acabou por chegar o dia em que o feitiço se virou contra o feiticeiro.
Para mal dos meus pecadilhos, a Bé tinha uma amiga muito amiga que me irritava solenemente e que, sem que alguma vez a tivesse incentivado para tanto, em redor das despedidas liceais começou a perseguir-me com intuitos namoradeiros que apenas tinham por consequência o obrigar-me a fazer-me invisível e instantâneo nas desaparições. Estas coisas não se explicam e o que acontecia é que eu não sentia qualquer atracção por ela o que, na concomitância de um verdadeiro comportamento de lapa, não me apresentava qualquer alternativa às pernas para que te quero.
Ora vêem, como vocês são espertos, é claro que a minha querida priminha lançava os seus pauzinhos para o fogo e, não contente com as incertezas que expressava de maneira a que a outra alimentasse esperanças, estava sempre a providenciar para que eu me cruzasse com ela e, de preferência, sem interferências de terceiros. E estais vós a imaginar como ela era pródiga e eficaz naquela sua santa-antoniedade.
Certa vez eu apurei que ambas se preparavam para me levarem até Sesimbra, onde, para efeitos de pernoita, ficariam apenas os dois que já se sabe.
Ah marota que me queria pôr a vida em perigo. Mas eu, então, consegui levar a vante.
A coisa era para elas aparecerem casualmente em minha casa e me convidarem para fazer, já me esqueci o quê, mas pouco importa, o certo é que tudo terminaria com uma estadia num hotel daquela vila pesqueira e balnear.
Pois no fim da tarde anterior, eu tratei de telefonar à minha tia Emilinha e, voz camuflada, pois então, em nome de uma dada pessoa, deixei um recado que pedia à Bé para esperar um telefonema, na tarde seguinte, a fim de decidir um encontro que andava para acontecer há algumas Luas.
Escusado seria dizer que a prima Bé passou a tarde e a noite em casa, prenhe de lamentos e impaciências, mas a campainha nunca se fez ouvir em nome da voz desejada.
Alhos Vedros, 30 de Abril de 1998
3 comentários:
Eu só li partes de A Arte da Guerra, de Sun Tzu, século IV a.c.
mas tenho a certeza que está lá uma estratégia para vencer uma batalha como a que descreves...
Abraço,
António
Não conheço quem citas, nem o livro, nem a pessoa, mas se a batalha a que te referes era o furtar-se às investidas da amiga prima, tudo indica que a coisa acabou por correr a contento, pois o narrador -o Sebastião Sorumenho- não veio a namorar e muito menos a cara-se com ela.
Aquele abraço, companheiro
Luís
Muito gostava eu (isto é mesmo verdade) de descobrir quem esta Bety é. Penso que a conheço d'outras paragens. farwest1960@msn.com
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