quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Os Caminhos de Santiago



Na estalagem dos torpores,
eu deixei por esquecimento
o bornal das minhas dores,
ais dum rosário de vento.
Fui pelos penhascos da serra
e a cidade antiga vi,
no seio quente da terra
pelas cicatrizes me abri.
Dum corpo já depurado
comi, não tinha sabor;
na ara fui desmembrado
num parto quase sem dor.
Lagarto, insecto ou dragão,
alada bicho provei,
meu corpo fundido ao chão,
minh'alma na mão do rei.
Minha boca quis gritar,
uma romã me calou,
vêm espadas de cortar
e a três alfanges me dou.
Mergulhei fundo na treva
como quem foge da luz,
descendo como quem leva
aos ombros pesada cruz.
O peso que me afundava
fazia que fosse leve
quanto de mim se elevava
numa brancura de neve.
Nos dois pratos da balança
minhas entranhas e o nada
pesavam à confiança
somente o pó da jornada.
De ambos os lados intruso,
do avesso me vesti;
tal qual a tinta que eu uso
na luz doirada me vi.
Ardi no fogo viscoso,
minh'alma se embebedou
do meu sangue licoroso,
do sémen que me gerou.
Mais quente o sangue me corre
depois de às veias voltar,
renasci como quem morre
no verme que ousou voar.

ABDUL CADRE
Vendas Novas, 27 de Fevereiro de 2010

(In D. Quixote suplemento do Diário do Sul)

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