sábado, 23 de abril de 2022

Paulo Landeck, ao Dia da Terra

FLOR DAS MARÉS

Semeada ao vento
Foge a linda caligrafia
do bloco de notas.
Afasto-me,
assim que vislumbro
fórmula da equação,
como quem conta sílabas poéticas;
Porque alto voam patos-bravos,
e no solo ao longe pastam cavalos,
nas primaveris relvas miudinhas
junto ao canavial.
O poeta procura corrente nos esteiros,
que trazem alfaces e bodelhas;
esgueira-se por entre salicórnias e gramatas,
e destaca halófila escrita na paisagem,
pois das marés dependem
plantas marginais...
mesmo as que choram excessivo sal,
de oceano em flor.
No prado molhado de ásteres e bastardas madorneiras
reinam as cores da lavanda-do-mar.
Estevas e murtas aguardam noutro patamar.
Na cara, sinto a suavidade de um não.
Não fogem à sorte dos trevos
copiosas gramíneas,
há ovelhas que ruminam ao passar.
Fecho olhos e peço desejos.
Algo parece crepitar
na renovada verdura,
ao passo que folhas de zinco arrombam sonoridades
e velhas portas de madeira
ao barracão abandonado.
Pressagiada dor: plástico no caminho
Fere quem olha ao sentimento.
Queimo incensos e penduro ramos à proa,
para melhor sorte o mundo navegar.
Ao volver a casa
das margens salgadas
dançam papoilas…
em sangue vivo,
de poesia!
(Estuário do Tejo, Dia da Terra de 2022)

sábado, 9 de abril de 2022

PALAVRAS "IN MEMORIAM" de LUÍS GUERREIRO

 


Boa noite a todos!

Agradecer, antes de mais, o convite da Junta de Freguesia de Alhos Vedros para dizermos algumas palavras nesta sessão de homenagem ao amigo, e ao artista, Luís Guerreiro.

Falar do Luís Guerreiro, é falar de uma relação de amizade com cerca de 50 anos. Foram inúmeros os momentos em que juntos celebrámos a vida, foram muitas as tertúlias em que participámos, em variados contextos, onde sempre estiveram também muitos outros amigos. Por aqui, pela nossa terra, juntos fomos desfiando os anos: por aqui brincámos, estudámos, confraternizámos, conspirámos, trocámos energias através das quais nos fizemos homens e, daí, as múltiplas cumplicidades que nos foram constituindo.

E, como dar testemunho da nossa vivência, é também honrar amigos e amizade, na impossibilidade de nomear todos, relembramos os que em determinada altura lhe foram particularmente queridos, como foram os casos do Paulo Gil e do Lídio, que ainda mais cedo partiram, o que nos trás à memória alguns dos velhos lugares de então que para ele foram significativamente importantes, como foram o interessante projeto do Grupo de Teatro da Velhinha, ou a Cooperativa de Animação Cultural de Alhos Vedros, certamente entre vários outros lugares igualmente importantes.

Mais recentemente, entre outros momentos, pessoas e instâncias onde o Luís se terá realizado, gostaria aqui de relembrar o “TAL”, Temas Artísticos Livres, uma experiência fugaz que mais uma vez nos juntou, com outros amigos, mas que nos permite recordar da sua enorme costela brasileira, país que muito amou e onde levou a sua obra; e, a este propósito, recordar também do seu grande amigo “Delei”, artista plástico brasileiro muito próximo da casa, e também de um outro, o Zé José, realizador de cinema com quem tivemos o prazer de confraternizar na Oficina dos “Arquivos Guerreiro”, e também, claro, umas palavras para a sua parceira de sempre, a querida amiga de há muitos anos, e colega, Ernestina Sesinando (Tina para os amigos), e aqui, acentuando também da relação exemplar, ternurenta, amiga e cúmplice que sempre caracterizou a sua profunda e duradoura relação conjugal.

Como sabemos, o Luís Guerreiro, um espírito livre, anarquista, amante da boémia, era um homem de causas e, entre elas, revelou-se como um incansável lutador pela emancipação e desenvolvimento de Alhos Vedros, onde sempre demonstrou uma inabalável coragem, em tempos onde ser crítico era sinónimo de acrescidas dificuldades, de inserção social, falta de trabalho, dificuldades financeiras.

Falar do Guerreiro que é o Luís, do tamanho do coração do Luís, é falar de uma causa que muito se estende para lá de Alhos Vedros, que transborda de terra e universo, pois que com equivalente amor com que se refere a Alhos Vedros, assim faz com Portugal, com a Língua Portuguesa, com o mundo, e isso está bem espelhado em toda a sua extraordinária obra que, em boa altura, aqui homenageamos. Estávamos a pensar, por exemplo, nos seus incríveis painéis sobre as “cidades flutuantes” que um dia, esperamos, possa ser exposto no futuro Museu para admiração de todos... Mas, eis aqui, nesta renovada Capela, uma das suas últimas obras, ao que sabemos, de difícil execução que muito lhe custou o suor do rosto, como foram a recuperação e o restauro de alguns destes magníficos azulejos que nos permitem melhor disfrutar deste maravilhosos espaço que hoje nos reúne, a Capela da Santa Casa da Misericórdia de Alhos Vedros que tanto almejámos.

Falar na extraordinária obra que o Luís Guerreiro nos deixa, será, sobretudo, tarefa futura que teremos de cuidar e que é impossível deixar aqui em palavras que se querem breves. Chamemos apenas a atenção dos autarcas locais, além do já referido painel sobre as “Cidades Flutuantes”, de outras duas obras de particular valor que requerem especiais cuidados: referimo-nos aos lindíssimos painéis que estão expostos nas paredes da Biblioteca de Alhos Vedros e que merecem ser protegidos, sinalizados e, porventura, legendados, porque nos parecem valiosos demais para ficarem simplesmente entregues a si próprios; e, por outro lado, relembrar do significativo painel de azulejos, de 3 por 12 metros, sobre temas da história local recente, que está a ser concluído por artista de referência no ramo da azulejaria. Certamente, mais um valioso painel da representativa herança artística que o Luís nos lega e que deverá cuidado com critério, por quem de direito.

Por fim, fazer referência a um desejo familiar que subscrevo: que entre a Oficina dos Arquivos Guerreiro e o espaço do FAVO, onde agora se expõem algumas das suas obras, seja possível criar um espaço de formação que permita dar continuidade à obra e ao ramo artístico que o nosso amigo em boa hora iniciou por aqui. 

Obrigado Luís Guerreiro. Até sempre. (Luís Santos, no auspicioso dia de 3.4.2022)

sábado, 2 de abril de 2022

Graffitar a Literatura (III)

Luís Souta 
(foto e texto)

«Um século viverás, um século aprenderás e na velhice tolo ficarás»
(provérbio russo)

Cascais. Travessa do Visconde da Luz

Abandonada estou e arruíno-me. Não cumpro mais a nobre função que é a minha: dar abrigo. Mas os graffiters viram em mim uma tela gigante, deram-me colorido, luminosidade, animação. Renasço, então, nas fachadas exteriores. Grata fico à criativa Arte de Rua e, no caso presente, a Belém, autor deste engraçado mural (primeira edição do Muraliza – Cascais, em 2014.  Agora, até os pass[e]antes (quase sempre distraídos) param, miram, comentam… e, por regra, clicam, tornando-me perene. Por que o desmoronamento, esse, está certo e anunciado.

Falemos agora da velhice das pessoas (não a dos prédios). A senectude, no feminino, tem os seus estereótipos: o carrapito, os cabelos brancos, os óculos na ponta do nariz, o interminável tricot… Numa outra perspectiva, Maria Judite de Carvalho (1921-1998), dedicou uma crónica aos «imprestáveis», os “Velhos” – incluída em O Homem no Arame (1979) textos publicados no Diário de Lisboa entre 1970 e 1975 (reeditado em 2019 pela Minotauro: um dos três livros inserido no IV volume das Obras Completas de MJC, pp. 209-210).

Na sua «iluminante sobriedade estilística», a escritora aborda a questão (eterna?) da velhice nestes termos:

«Ei-los que esperam ao sol. Esperam o quê, quem? Estão sentados, vegetais com raízes no dia de ontem, esquecidos de quem são, de quem foram – foram-no há tanto tempo! – e com frio. Desconhecem este mundo em que subsistem e que os ignora. (…) Só sabem – sentem – que são velhos, inúteis, pesados aos filhos e mais ainda às noras e aos genros. Pesos mortos que têm de ser alimentados, vestidos, alojados, suportados. (…)

Muitas vezes ao dia dizem (ou pensam) que no tempo deles, que dantes… Sem saberem que a maior maravilha desse tempo era a sua idade jovem. Agora nada lhes pertence, estão a ocupar o espaço indevido, parece-lhes às vezes que as pessoas em redor falam outra língua, chegaram de outro planeta. E gostariam de se indignar, mas quem para se indignar com eles? Já partiram os que podiam compreendê-los. Dos netos e até dos filhos separa-os um fosso que ninguém procura – para quê? – estreitar.»

Judite de Carvalho mereceu um lugar n’ O Cânone, em texto de Isabel Cristina Rodrigues, pp. 347-354, essa grande obra colectiva de referência (533 p.) coordenada por António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen, editado em 2020 pela Tinta-da-China. Aí, se evidencia que

«os vários tipos de cárcere que enformam o viver das personagens femininas de Maria Judite de Carvalho (…) determinam a imposição de uma vida de janela entre o insípido existir de cada uma delas e o mundo vivível lá fora, instituindo na experiência dos dias que lhes é comum uma espécie de limiar entre o viver e o não viver, entre o fora em que não participam e o dentro da sua astenia e do seu desamparo.» 

Nos 100 anos do seu nascimento, a Associação Portuguesa de Escritores promoveu, ao fim da tarde de 08/11/2021 na Biblioteca Palácio Galveias - Lisboa, a sessão “Maria Judite de Carvalho: Reencontros em tempo de Centenário”. À semelhança de outros encontros do mesmo género levados a cabo pela APE, para além das intervenções dos membros da “mesa” (aqui, designadamente, a sua neta Inês Fraga e a professora universitária Isabel Cristina Mateus) houve a resposta dos sócios da Associação ao convite «traga um livro e dê voz à obra do autor»; tal permitiu que lá fossem lidos passagens das muitas obras de Judite de Carvalho. Um formato bem participativo onde o público (leitor) mostrou a qualidade ímpar de uma escritora que, em vida, esteve algo ofuscada pela notoriedade de seu marido – professor, escritor e cidadão empenhado – Urbano Tavares Rodrigues.

Mas a qualidade é como o azeite, vem sempre ao de cima. É tudo uma questão de tempo….

Post scriptum: A trepadeira selvagem das traseiras alastra-se imparável pela fachada lateral e tapa já parte substancial da obra artística de Belém. Acresce a acentuada degradação do edifício. Danos inevitáveis de uma arte que não pressupõe qualquer processo de "restauração".