Abandonada estou e arruíno-me. Não cumpro mais a nobre função que é a minha: dar abrigo. Mas os graffiters viram em mim uma tela gigante, deram-me colorido, luminosidade, animação. Renasço, então, nas fachadas exteriores. Grata fico à criativa Arte de Rua e, no caso presente, a Belém, autor deste engraçado mural (primeira edição do Muraliza – Cascais, em 2014. Agora, até os pass[e]antes (quase sempre distraídos) param, miram, comentam… e, por regra, clicam, tornando-me perene. Por que o desmoronamento, esse, está certo e anunciado.
Falemos agora da velhice das pessoas (não a dos prédios). A senectude, no
feminino, tem os seus estereótipos: o carrapito, os cabelos brancos, os óculos
na ponta do nariz, o interminável tricot… Numa outra perspectiva,
Maria Judite de Carvalho (1921-1998), dedicou uma crónica aos «imprestáveis»,
os “Velhos” – incluída em O Homem no Arame (1979) textos
publicados no Diário de Lisboa entre 1970 e 1975 (reeditado em
2019 pela Minotauro: um dos três livros inserido no IV volume das Obras
Completas de MJC, pp. 209-210).
Na sua «iluminante sobriedade estilística», a escritora aborda a questão
(eterna?) da velhice nestes termos:
«Ei-los que esperam ao
sol. Esperam o quê, quem? Estão sentados, vegetais com raízes no dia de ontem,
esquecidos de quem são, de quem foram – foram-no há tanto tempo! – e com frio.
Desconhecem este mundo em que subsistem e que os ignora. (…) Só sabem – sentem
– que são velhos, inúteis, pesados aos filhos e mais ainda às noras e aos
genros. Pesos mortos que têm de ser alimentados, vestidos, alojados,
suportados. (…)
Muitas vezes ao dia
dizem (ou pensam) que no tempo deles, que dantes… Sem saberem que a maior
maravilha desse tempo era a sua idade jovem. Agora nada lhes pertence, estão a
ocupar o espaço indevido, parece-lhes às vezes que as pessoas em redor falam
outra língua, chegaram de outro planeta. E gostariam de se indignar, mas quem
para se indignar com eles? Já partiram os que podiam compreendê-los. Dos netos
e até dos filhos separa-os um fosso que ninguém procura – para quê? –
estreitar.»
Judite de Carvalho mereceu um lugar n’ O Cânone, em texto de Isabel Cristina Rodrigues, pp. 347-354, essa grande obra colectiva de referência (533 p.) coordenada por António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen, editado em 2020 pela Tinta-da-China. Aí, se evidencia que
«os vários tipos de cárcere que enformam o viver das personagens femininas de Maria Judite de Carvalho (…) determinam a imposição de uma vida de janela entre o insípido existir de cada uma delas e o mundo vivível lá fora, instituindo na experiência dos dias que lhes é comum uma espécie de limiar entre o viver e o não viver, entre o fora em que não participam e o dentro da sua astenia e do seu desamparo.»
Nos 100 anos do seu nascimento, a Associação Portuguesa de Escritores
promoveu, ao fim da tarde de 08/11/2021 na
Biblioteca Palácio Galveias - Lisboa, a sessão “Maria Judite de Carvalho: Reencontros em tempo de
Centenário”. À semelhança de outros encontros do mesmo género
levados a cabo pela APE, para além das intervenções
dos membros da “mesa” (aqui, designadamente, a sua neta Inês Fraga e a
professora universitária Isabel Cristina Mateus) houve a resposta
dos sócios da Associação ao convite «traga um livro e dê voz à obra do autor»;
tal permitiu que lá fossem lidos passagens das muitas obras de Judite de
Carvalho. Um formato bem participativo onde o público (leitor) mostrou a
qualidade ímpar de uma escritora que, em vida, esteve algo ofuscada pela
notoriedade de seu marido – professor, escritor e cidadão empenhado – Urbano
Tavares Rodrigues.
Mas a qualidade é como o azeite, vem sempre ao de cima. É tudo uma questão de tempo….
Post scriptum: A trepadeira selvagem das traseiras alastra-se imparável pela fachada lateral e tapa já parte substancial da obra artística de Belém. Acresce a acentuada degradação do edifício. Danos inevitáveis de uma arte que não pressupõe qualquer processo de "restauração".
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