quarta-feira, 27 de novembro de 2019

GRAFFITAR A LITERATURA (XXVI)


«Pescadores bacalhoeiros»

Foto de Luís Souta, 2019

«A todos os pescadores bacalhoeiros portugueses que, se a pesca adrega de ser boa, cantam e bailam sozinhos, como os meninos e os loucos...»

Frederico Draw, arquitecto e graffiter, nascido no Porto, em 1988, com trabalhos no estrangeiro – Espanha, Itália, França, Reino Unido, Alemanha, Cabo Verde, Marrocos, USA – e em muitas localidades do nosso país, designadamente em Cascais. Aí deixou a sua marca no decorrer do Muraliza 2015. Rostos de pescadores anónimos, em grande escala, numa parede que liga a Rua Latino Coelho ao Largo Dr. Passos Vella.

Draw, no seu estilo único, dá-nos a imagem de dois homens do mar, ligados por uma âncora e pela inscrição «Cascaes». Associei este mural ao livro de Bernardo Santareno (1959) Nos Mares do Fim do Mundo, reeditado (fac-simile) pelo jornal Público, no passado Outubro, comemorando desse modo os 60 anos da primeira edição.

Na obra (com 77 capítulos curtos e 8 fotos), Santareno relata-nos a sua experiência nos «doze meses com os pescadores bacalhoeiros portugueses, por bancos da Terras Nova e da Gronelândia». Descreve-nos, em pormenor, um conjunto de figuras humanas, num registo quase etnográfico (em especial, na transcrição da oralidade popular). Gente vinda dos mais variados lugares: Fuzeta, Setúbal, Vila Franca de Xira, Lisboa, Cascais, Gafanhas da Nazaré, Ílhavo, Foz do Arelho, Vila do Conde, Âncora, São Miguel…

«É de Cascais. Verde, a bordo do Senhora do Mar. De pesca à linha… apenas sabe remar; mais nada. É um pobre de espírito: uma debilidade mental risonha, mesmo simpática. A cada pergunta que adreguem de fazer-lhe, responde sempre com o primeiro dislate que lhe venha à cabeça… E sorri contínua, inevitavelmente: um sorriso opaco, sem expressão, obstinado e infantil. É magrote, frágil; quando anda, cruza as pernas em X; e mostra sempre o sujíssimo cabelo loiro, caído para os olhos. 
Chama-se (imaginem!) Ulisses.
Os da companha troçam dele, mas todos o amam.
Pois há bocado fui dar com o Ulisses no meio de um magote de moços e verdes que, à popa, seguiam entusiasmados as maciças evoluções de duas gigantescas baleias: É a época do cio e elas ensaiam os rituais do amor.» (p. 207)

Histórias na primeira pessoa vividas no David Melgueiro, no Senhora do Mar e no Gil Eannes (navio-hospital da chamada frota branca) ou ouvidas de pescadores (verdes, maduros, homens de ofício) em outras viagens e noutros barcos: Bissaia Barreto, João Costa I, Maria da Glória, Infante de Sagres, Cruz de Malta, Paços de Brandão, Pedro de Barcelos… Tempos de um país pobre mas com uma apreciável frota bacalhoeira, direccionada para a pesca longínqua nas gélidas águas do Norte. Pessoas simples e humildes mas audazes e aventureiras, que naquele voluntário exílio de longos meses no alto mar, procuravam mitigar as adversidades de uma vida de miséria, numa sociedade marcada pela profunda desigualdade e exploração.

Nesta epopeia, que se prolongou pelos anos de 1957 e 1958, o jovem médico Bernardo Santareno, pseudónimo de António Martinho do Rosário (1920-1980), parte cheio de dúvidas e preocupações:
«Serei capaz? São mil e tantos homens entregues aos meus cuidados, confiantes na minha proficiência médica… Estarei eu preparada para tal? Terei que me habituar a decidir, rápida e eficazmente, nos casos de urgência: Serei capaz? Sou tão doentiamente indeciso!» (p. 13)

No final, o balanço:
«Cheguei ao fim – seis meses no mar! – da minha campanha de assistência (…)
Faço, mais uma vez, o exame da minha consciência: Cumpri realmente bem? Fui o clínico seguro e decisivo, o amigo sereno e infatigável (eu ia a escrever ‘o pai’) de que estes mil e tantos homens precisavam? Nem sempre: por ignorância, por tibieza, por comodismo. No entanto, uma verdade quase me sossega: eu amo estas gentes e elas sentem que é assim.» (pp. 236-7)

Numa recensão (“Regresso aos mares do fim do mundo”, Público-Ípsilon, 29/04/16, pp. 18-20), Abel Coentrão faz-nos a síntese desta narrativa de viagem: «Os relatos que transparecem nestas crónicas revelam sobretudo um ambiente de hostilidade, de agressividade latente, em que vêm à tona sentimentos subliminares, irrompem brutalmente o ódio, a força, a vingança, o medo na sua ‘pureza’ mais crua. O mar e a morte são dois companheiros persistentes, ambíguos e implacáveis que perseguem como um fado a vida destes pescadores.» Este «universo denso, tenso, e trágico, da obra do dramaturgo» mais se acentuou na sua peça O Lugre, estreada em 1959 no Teatro Nacional D. Maria II.

PS: Conheci pessoalmente o autor de O Judeu (1966), quando estudava e cumpria o serviço militar em Lisboa, nos anos de 1974-75; na altura, ficava frequentemente num apartamento no mesmo prédio onde ele residia, na Rua Rodrigues Sampaio; aí nos cruzávamos, amiúde, assim como na Pastelaria Smarta (um pouco mais baixo, na esquina com a R. Barata Salgueiro) para onde se deslocava num andar calmo e cigarro nos dedos. Homem alto, sempre vestido com elegância, usando óculos de lentes grossas e escuras… distinto e discreto. De uma grande bonomia e tolerância, por exemplo, com a minha confusão de juventude ao baralhá-lo com outro dramaturgo português, que escrevera, em 1968, As  mãos de Abraão Zacut (levada a cena no GDP da Póvoa de Stª Iria, em Março de 1971, onde eu interpretava a personagem David Levi).

Luís Souta

terça-feira, 26 de novembro de 2019

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCRITA

Passeios erráticos pelo sobe e desce da cidade. 


Cruzámo-nos com o pintor César que faz aguarelas dos recantos e vistas de um burgo tão colorido como os seus quadros, de que trouxemos dois exemplares e que a propósito de uma luta entre cães, nos explicou que o mais pequenote estava ali corajosamente a defender a sua dama, uma cadelita branca, “-Ela até que nem é estouvadinha e eles andam sempre junto.”, muito embora naquela tarde andasse a ser perseguida por dois cães vadios. 
“-Eu expliquei p´rá ele que os cachorro são ruim. Eu falei mais de quinze minuto. Tu tem cuidado. Mas o que é qui cê quer? Ele não me prestou atenção. Agora tá aí fugindo que nem um desalmado.” 



No museu histórico lá está a forca de Tiradentes, o general do exército colonial que chefiou uma revolta independentista contra a coroa portuguesa ao tempo de D. Maria I. 
A sentença que o condenou à morte e lhe confiscou todos os bens é um texto implacável. Chegou ao pormenor de determinar que lhe separassem o corpo em quatro pedaços e lhe empalassem a cabeça em lugar público, não sem lhe incendiarem a casa e cobrirem as ruínas com sal para que nada mais ali crescesse. 
Entre as provas reunidas no julgamento e que informaram a acusação está uma pequena brochura em francês a respeito da constituição dos Estados Unidos da América e o livro dos direitos. 

Quarenta anos mais tarde nasceria o Brasil, como império independente, sob a égide do príncipe de Portugal. 


Nos momentos da aguada, a família aproveita para se fotografar. 



Mas hoje jantámos na pizzaria mais agradável em que já alguma vez estive. 
Uma cave rectangular sobre comprida, com paredes em pedra e mesas e bancos de madeira, mas com uma sonoridade própria para conversas entre convivas que não impediam que se distinguisse nitidamente o canto de um único intérprete, com viola e que nos encantou com recriações de Djavan e Milton que acabaram por ser o quinto sabor das pizzas. 


Depois escutámos um concerto por uma orquestra de mulheres, evento que teve lugar num palco instalado na Praça do Palácio dos antigos Governadores e inserido no Festival de Inverno. 


Surpresas de viajante. 

E eis uma de todo inesperada. 

“-Olha Margarida que engraçado o nome nesta placa. O São Lourenço é o santo padroeiro de Alhos Vedros. Vamos ver esta igreja?” 
E lá desviámos por uma espécie de portão de adro e contornarmos a fachada até à porta de entrada. 

“-Olha que engraçado, Margarida, o tecto tem pinturas iguais às da igreja de Alhos Vedros.” 

“-O senhor, está gostando?” E foi assim que do outro do lado do oceano a não sei quantas horas de diferença horária da terra em que nasci e onde me habituei a ver tectos iguais àqueles, aquele sacristão me contou toda a história do martírio de São Lourenço e os significados de toda a simbologia que está associada à cena principal que é a sua condenação ao fogo em que, de acordo com a lenda narrada, ele terá sido assado. 

“-É a grelha em que o santo foi assado.” 

E cheio de humor e do seu sotaque cantado, contou-nos que o mártir brincava com os carrascos dizendo que o virassem para o outro lado, pois já estava bem tostadinho daquele. 

Ainda não foi há muito que o Nuno Cortez esteve comigo na igreja de Alhos Vedros, para escutar um recital de cântico gregoriano e me perguntou quem tinha pintado os tectos – que vale a pena ver, deve dizer-se – e o que significavam as imagens. 

Infelizmente para ele, deu de caras comigo que não soube responder-lhe. 

A Luísa e a Matilde chegaram junto de nós, quando o homem ria com o facto de termos ido tão longe para aprendermos uma história da terra em que nascemos. 

 Ouro Preto

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

REAL... IRREAL... SURREAL. (373)


No Moulin Rouge - A Dança, Toulouse-Lautrec, 1890
Óleo sobre Tela, 115 x 150 cm

Henri Marie Raymond de Toulouse-Lautrec Monfa nasceu em Albi a 24 de Novembro de 1864 e faleceu em Saint-André-du-Bois a 9 de Setembro de 1901.
Foi um pintor pós-impressionista e litógrafo francês, conhecido por pintar a vida boémia de Paris do final do século XIX. Sendo ele mesmo um boémio, faleceu precocemente aos 36 anos de sífilis e alcoolismo. Trabalhou por menos de vinte anos mas deixou um legado artístico importantíssimo, tanto no que se refere à qualidade e quantidade de suas obras, como também no que se refere à popularização e comercialização da arte. Toulouse-Lautrec revolucionou o design gráfico dos cartazes publicitários, ajudando a definir o estilo que seria posteriormente conhecido como Art Nouveau. Filho mais velho do Conde Toulouse-Lautrec-Monfa, de quem deveria herdar o título, falecendo antes do pai.

in Wikipedia

Selecção de António Tapadinhas

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Histórias da Nossa Terra


por Luís Santos



O CONCELHO DE ALHOS VEDROS

Nesses tempos do antigo Concelho do Ribatejo (secs. XIII/XIV), Alhos Vedros constituia conjuntamente com Santa Maria de Sabonha, hoje freguesia de São Francisco pertença do concelho de Alcochete, os dois principais centros territoriais do tempo.

Como diz José Manuel Vargas, "Em meados do séc. XIV, Alhos Vedros caminhava no sentido da sua autonomia municipal, separando-se do concelho do Ribatejo, do qual era, junto com Sabonha, uma das suas sedes concelhias. Desde 1384, pelo menos, que se conhecem referências a um paço do concelho em Alhos Vedros e a diversos ofícios da administração municipal (...).

Importante também será dizer que os direitos senhoriais de Alhos Vedros, desde finais do século XIII, eram em larga medida pertença da Ordem de Santiago. Mas, continuando a seguir Vargas, "Por uma carta régia, datada de 1395 (28 de Agosto), sabemos agora que todos os direitos, rendas e senhorios de Alhos Vedros e do seu termo foram comprados por Gonçalo Lourenço de Gomide, escrivão da puridade de D. João I".

Anote-se que:
i) "escrivão da puridade" era um cargo à época de altíssima importância na hierarquia da administração régia, um "quase" primeiro-ministro dos tempos atuais;
ii) Gonçalo Lourenço de Gomide é avô de Afonso de Albuquerque, governador e vice-rei da Índia.

A IGREJA MATRIZ E DOM DINIS

Embora não se conheça a data certa da sua edificação, pensa-se que a Igreja Matriz de Alhos Vedros tenha sido construída no século XIII, contando, por isso, perto de 800 anos!

Houve quem tivesse referido que a construção do seu núcleo inicial tenha acontecido em meados do século XII (1146), e que foi construída em cima de uma mesquita árabe que já existiria na freguesia, então ocupada pelos mouros, mas a verdade é que não se pode afirmar com rigor que quer a Igreja, quer o lugar de Alhos Vedros, pelo menos com este nome, tivessem origem antes da reconquista cristã, pois que, como se tem dito, o documento escrito mais antigo que refere a existência da Igreja Matriz é de 1298…

O ano de 1298 leva-nos até D. Dinis, nascido em 1261, depois coroado Rei de Portugal no ano de 1279 e até 1325. Diga-se, antes de mais, que falar de D. Dinis é uma forma simbólica de referir toda uma nação, todo um povo. Há referências no seu reinado à existência de um estaleiro de construção naval na área do antigo concelho de Alhos Vedros, denominado de Ribeira das Naus do Coina, no lugar da Telha Velha, hoje concelho do Barreiro, que trabalharia em complementaridade com a Ribeira das Naus de Lisboa, o grande estaleiro do império oceânico, messiânico, português. Como é sabido, foi D. Dinis, que fundou a Marinha Portuguesa. Fernando Pessoa, no seu livro “Mensagem”, designou-o como “o plantador das naus a haver”.

Ficou mais vulgarmente conhecido pelo Rei Lavrador, poderoso que foi o seu jeito reformista na política agrícola do país, jeito reformador que também teve na educação e, vai daí, funda o “Estudo Geral”, em Lisboa, a primeira Universidade Portuguesa que muito ajudou a dar “novos mundos ao mundo”, como diria Luís de Camões, já que vamos com poetas.

Foi ainda D. Dinis, rei e poeta, que protegeu os famosos Templários, ao arrepio do Papa e da poderosa corte francesa, que juntos deram a terrível ordem do seu aniquilamento. O nosso Rei não só os protegeu como lhes manteve os privilégios, tendo em Portugal a Ordem do Templo passado a Ordem de Cristo, a tal que teve um papel determinante na expansão ultramarina.

Não poderíamos acabar esta alusão a D. Dinis sem falar na sua Santa companheira, a Rainha Isabel de Aragão, ao que parece mulher muito piedosa, amiga dos pobres, espírito pacifista e, dizem, milagreira. Foi ela que introduziu em Portugal a famosa festa do culto popular do Espírito Santo que cultuava a partilha de bens pelos mais pobres, ocupava-se com a libertação social dos desavindos e, ponto alto da festa, sempre se coroava simbolicamente uma criança como imperador do Reino. Ora, como nós sabemos, e insistindo com Fernando Pessoa, “o melhor do mundo são (mesmo) as crianças”.

SÃO NUNO DE SANTA MARIA POR AQUI?

D. Afonso IV, filho de Dom Dinis e seu sucessor, rei de Portugal entre 1325 e 1357, na esteira das políticas do pai, desenvolveu muito a Marinha Portuguesa, nomeadamente a Marinha Mercante. É ainda durante o seu reinado que se fazem as primeiras explorações atlânticas e se descobrem as Ilhas Canárias. A existência de um estaleiro de construção naval, neste período, no concelho de Alhos Vedros, estaleiro complementar ao da Ribeira das Naus, como já se disse, faz com que a sua história se relacione de perto com o incremento desta política nacional virada para o mar.

D. Afonso IV, infelizmente, acabaria também por ficar na história pelas piores razões, ter mandado matar Inês de Castro...

Como a sucessão monárquica do poder se faz preferencialmente por legítimo filho primogénito, quando D. Pedro, filho de Afonso IV, ascendeu a rei, perdido de amores por Inês, não teve tempo nem vontade de fazer um com a rainha, acabou por ter que ascender na liderança do reino um D. Fernando ilegítimo que, por sua vez, morreu cedo e, continuando na mesma senda, só deixou filha única que haveria de fazer casamento em Castela, acontecimento que, por pouco, não levou o país consigo.

Como é sabido, Portugal salvou-se de Castela na Batalha de Aljubarrota, ali para os lados de Alcobaça, com o Condestável Nuno Álvares Pereira no comando de um pequeno exército que, por astúcia de tática militar, infligiu pesada derrota aos castelhanos. Como é sabido, Nuno Álvares Pereira, pessoa de grande vocação espiritual e religiosa, foi beatificado em 1918 e canonizado em 2009 com o nome de São Nuno de Santa Maria.

Mas, ao que vem a nossa terra para aqui chamada?

Sabemos que D. João I está ligado à história da região. Por aqui se terá refugiado em luto quando da morte da Rainha Filipa de Lencastre, na companhia do seu filho bastardo, D. Afonso, em palácio que se julga ter sido pertença deste. Este seu filho ilegítimo, por sua vez, era casado com D. Beatriz Pereira de Alvim, filha única de Nuno Álvares Pereira. Ora, embora não conheçamos documentos que o atestem, é muito provável que também Nuno Álvares tenha andado por aqui com D. João I, seu rei e compadre, cumprindo luto e arquitetando a partida para a conquista de Ceuta.

terça-feira, 19 de novembro de 2019

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

A cidade é monumental.


Aqui o Sol aparece e desaparece por detrás dos montes e no meio ficam as corcundas e os chapéus de bico que fazem com que a terra se faça a miúde, com vertentes quase a pique e que a mão do homem encheu de casinhas e casarões coloridos a ladearem ruas pavimentadas com pedras negras salientes e multiformes.


Haculumy é o ponto mais alto, acima dos mil e setecentos metros; as vistas são impressionantes.



A disposição do casario reflecte os contornos das colinas e montes e vemo-nos forçados a subir e a descer as vertentes, fugindo, dentro do possível, às mais íngremes e fazendo escalas em pontos de interesse ou em lojas de artesanato que se espalham, aqui e ali, por algumas das ruas secundárias que da praça principal descem em direcção ao rio.


Ouro Preto é uma cidade histórica da rota do início da exploração mineira que de imediato se seguiu à fixação demográfica que os bandeirantes possibilitaram, com as suas expedições, logo no início do século dezassete.
Ainda hoje em dia há laboração em torno do minério e na vizinhança até é possível visitar uma mina de ouro que cessou a actividade há pouco mais de dez anos. À entrada da urbe, do lado de quem vem de Ouro Branco, há mesmo uma grande unidade industrial para aqueles fins. Mas a actualidade do burgo centra-se mais na universidade e em todo o movimento que se gera em seu redor; estamos naquilo que podemos chamar uma cidade universitária o que é bem visível nas muitas repúblicas de estudantes, cujas tabuletas também muito contribuem para o pitoresco e a singularidade do lugar.

E neste fim-de-semana que trás o fim das férias de Julho, nota-se os magotes da estudantada estridente e gargalhante, contente pelo regresso ou o ingresso que, como em todos os sítios assim, são os caloiros quem mais se diverte com os ares dos primeiros dias e nem mesmo a geada da madrugada impede que a boémia dure até aos primeiros cantares dos galos.


Diz-se que Ouro Preto é a cidade das igrejas e na verdade pululam às mãos cheias, com os seus campanários altaneiros e destaque acima dos telhados ou dos balandraus da vegetação e é difícil olharmos a paisagem sem que em ângulo algum deixemos de avistar pelo menos uma. E também é um facto a imponência de algumas delas, tanto quanto à dimensão diz respeito como à riqueza dos ornamentos barrocos dos traçados.
Mas não é menos verdade que aquelas são afinal a imagem comum que tanto os pequenos povoados como as urbes maiores ostentam por estas bandas. Tenho para mim que esse é o principal legado português para este futuro que é o presente que vivemos.


Justamente foram elas um dos nossos objectivos do dia e se bem que não tão ricas quanto seria de esperar – ainda hoje recordo uma custódia do meu tamanho que vi em Parati – mas não duvidando que as peças mais valiosas e impressionantes estejam guardadas, são, contudo, em todos os exemplares em que entrámos, obras de arte dignas de serem apreciadas e gozadas, onde até nos sabe bem empregar um bom lapso de tempo para que meditemos nos mistérios dos primórdios de um local como este.


E lá estão as técnicas de pintura de tectos que nos cria a ilusão de movimento em certas figuras ou nos olhos com que os santos continuam a fixar os nossos quando rodamos para a posição contrária em que nos encontrávamos em relação a eles.

A Igreja de São Francisco de Assis, a obra prima do Aleijadinho, foi a que mais encantos despertou entre a família que anda em viagem.


No entanto há mais para ver, a começar pelas pinturas naifs dos vendedores de rua ou em lojinhas de artesanato, como também edifícios de interesse, como a Casa do Conto, onde para além do mobiliário e documentos de variados géneros de séculos idos, demos de caras com uma exposição de moedas que, desde o início da colonização portuguesa, por ali circularam.



O cansaço que sentimos é bem compensado por aquilo que vimos.



Criamos espaços de repouso, ao fim da tarde, com a recolha aos quartos para que os miúdos brinquem e os pais possam, no nosso caso, ler ou dormitar.

“-Ficas aqui junto dos avós que a mãe vai ver o tio Daniel.” –Disse a Matilde ao pousar um dos seus bonecos aos pés da cama em que me estendi para ler.



Thomas Mann na maturidade, com uma história que parece ter sido escolhida a propósito para ler neste cenário, a busca de identidade de um escritor alemão do norte no fim do século dezanove, (1) justamente a época desta arquitectura civil do lugar e desta pousada também.



Guardámos os carros na garagem; estamos no domínio dos caminhantes.


 Ouro Preto



NOTA 

(1) Mann, Thomas, TÖNIO KRÜGER 


CITAÇÃO BIBLIOGRÁFICA 

Mann, Thomas, TÖNIO KRÜGER, Tradução de Cláudia Gonçalves, Dom Quixote (2ª. Edição), Lisboa, 2003

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

REAL... IRREAL... SURREAL... (372)


RIACHO, Autor Iberê Camargo, 1942 
óleo sobre tela, 30 x 40 cm

Iberê Camargo nasceu a 18 de Novembro de 1914, Restinga Seca, Rio Grande do Sul, Brasil e faleceu a 9 de Agosto de 1994, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil

Iniciou os seus estudos no Rio Grande do Sul, na Escola de Artes e Ofícios de Santa Maria, com Parlagreco e Frederico Lobe.

Entre 1936 e 1939 tirou o curso técnico de Arquitectura do Instituto de Belas Artes de Porto Alegre, com a orientação do professor Fahrion.

Em 1942, Iberê mudou-se para o Rio de Janeiro, onde frequentou a Escola Nacional de Belas Artes, com uma bolsa de estudos concedida pelo governo do Rio Grande do Sul.

Ao longo de sua vida, Iberê produziu mais de sete mil obras, entre pinturas, desenhos, gravuras e guaches, entre elas, “Dentro do Mato” (1942), “Auto Retrato” (1943), “Lapa” (1947), “Carretel Branco” (1967), “Ciclistas” (1989) e “A Idiota” (1991). Entre suas publicações estão: “Tratado Sobre Gravura em Metal” (1964), o livro técnico “A Gravura” (1992) e o livro de contos “No Andar do Tempo: 9 Contos e um Esboço Autobiográfico” (1988).

É em Porto Alegre, num prédio projectado pelo arquitecto português Álvaro Siza, que hoje funciona a Fundação Iberê Camargo, que reúne além de vasta produção artística, os diversos documentos que completam sua obra e registam sua trajectória, que o artista e sua esposa Maria Coussirat Camargo, tiveram o cuidado de preservar.

Selecção de António Tapadinhas

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

A Poesia de Manuel (D'Angola) de Sousa



“Aquém E Além De Mim Mesmo Já Não Há Volta A Dar Ao Destino”

Estou redondamente decepcionado
Nunca pensei encontrar tal vida
Supunha-a muito mais prática

Arrependi-me tão logo abri olhos
Chorei compulsivamente para voltar
Lamento não ter ficado agarrado à origem

Ninguém em absoluto me entende
Ando frustrado desde então
Desejo desviar o rumo

Apago do livro o passado
Não aceito ter vindo das cinzas
Nego ainda o pó que me acoberta

Sinto-me como uma errante alma penada
Nem vale a pena reclamar muito
Meu destino já está traçado

Grito a sós por socorro
Seguro-me bem à bóia salva-vidas
De nada me vale esconder-me atrás de mim mesmo

Jamais me será permitido voltar ao princípio de tudo
Queira eu ou não reiniciar noutra condição
O caminho leva-me sem apêlo…

Escuto além cancões de todos os tempos e existências a uma só voz… 

Escrito por Manuel (D’Angola) de Sousa, a 5 de Novembro de 2019, em Luanda, Angola, em Alusão a toda a Matéria que suporta o milagre da Vida Existencial e que, na forma de Astros vários e de uma infinita multidão de Galáxias, suporta a formatação presencial da Alma Cósmica em todos os recantos do maravilhoso e supra intrincado Universo…

“Viva a Suprema e Omnisciente Inteligência, que está em cada um e em todos nós, e ainda, em todos os recantos Cósmicos do Universo, sob as mais variadas e múltiplas formas de Vida e sob Sua Orientação, Plano e Comando…”

terça-feira, 12 de novembro de 2019

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

A geografia física encanta. 

Do alto dos promontórios o horizonte ondula-se em outros promontórios mais ou menos altos e o verde espalha-se-nos pelos olhos, em quantidades de infinito na forma de fazendas de gado que a legislação força a que se deixem mesclar pela mata atlântica densa mas de pequeno porte, em compactos de arvoredo nativo e arbustos, uma vez por outra salpicados pela importação de eucaliptos que as celuloses plantam para consumo próprio. 
Casas térreas dos que trabalham a terra polvilham as margens das propriedades que sempre apresentam grandes casarões quase na totalidade modernos. 
Circulando pelo topo ou nos vales mais alongados, o céu faz um enlace de oceano com as montanhas.



Chegámos a Ouro Preto de noite. 
Fomos recebidos pelo Alan, um jovem que o acaso colocou à entrada da cidade com o propósito de se oferecer para nos acompanhar na procura de uma pousada ou hotel para nos instalarmos. 


Alan é um dos muitos garotos e crescidos que informalmente procuram ganhar o sustento desempenhando o papel de guias turísticos. Diz que estuda turismo na universidade local mas não sei que credibilidade merece a indicação. Seja como for, sem aviso e nem sempre a propósito dispara dados sobre a história da cidade e os edifícios por que passamos. Nem é precisa a moeda do poema do Pessoa; ele abre a boca e solta a gravação de livre e espontânea vontade. Basta que estejamos calados. E repete a última frase de cada intervenção. 
No entanto foi eficaz no serviço e para o cansaço que trazíamos foi isso uma nota agradável. 



Os miúdos acabaram por sucumbir à cadência de uma estrada em que só a Lua cheia se deu ao trabalho de ocultar as estrelas. 


 Ouro Preto

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

REAL... IRREAL... SURREAL... (371)


O Castelo dos Papas, Avignon, 1900
Óleo sobre Tela

O pintor Francês Paulo Victor Jules mais conhecido por Paul Signac nasceu no dia onze do mês de Novembro do ano de 1863 em Paris e faleceu no dia quinze do mês de Agosto do ano de 1935 em Paris.
Signac foi juntamente com Georges Seurat, o criador do "pontilhismo" (1883-1884) que consistia na aplicação de cores puras em pequenas pinceladas.
Pintou sobretudo paisagens, principalmente de Saint-Tropez, naquela altura uma tranquila aldeia piscatória, onde comprou uma vivenda em 1893.
Reconhecidamente ganhou o respeito dos seus colegas pintores como se prova por ter permanecido como Presidente da Sociedade dos Independentes até à data da sua morte.

Selecção de António Tapadinhas

quarta-feira, 6 de novembro de 2019

O CÉU ESTÁ COBERTO DE TI PAI


José Gil


O CÉU ESTÁ COBERTO DE TI PAI

a Manuel Gusmão, poeta,

ativei o cavalo que galopas no digital da solidão
toca Eric Satie neste momento de humidade do céu
o céu está coberto de ti no cérebro sensível de todos
os atores jovens no palco
como em todas as pessoas nas arenas e plateias
os atores são uma tribo intranquila e resiliente
exigentes e capazes de ariscar
tens gavetinhas pai em todo o corpo como Dali no
interior escondido
no movimento mais lento do amor entre nós
toca a testa na mão clara dos cabelos curtos
da rotação do teu corpo amor
no meu no último dia
as minhas pernas saltam da cama de madrugada
guardo nestes poemas as rugas da face
escrevo como quem bebe limonada de resistência
a garganta dói e está rouca no verão em longos sorvos
assobiados de crueldade humana de evitar o fim da
pobreza da ignorância da iliteracia
o céu
és amor sem saberes
a minha gaforina desgrenhada
aqui vou deixar morrer o poema
o silêncio está a refluir
ontem a pé na estrada
só de madrugada no campo pequeno
um carro veio contra mim em marcha atrás
senti o corpo frio com o mármore
e depois travou perto de mim
parecia estar no palco
sobre um asfalto sintético negro
alguns móveis muitos livros
encarnações de mofo
até uma cheirava a bafio
os miolos cheios de larvas e enguias podres

há quanto tempo não vou ao cinema
conheço-te a tricotar todos os dias
uma malha de vida e sangue
o teu sentido oculto como Pessoa,
"e não teres sentido oculto nenhum" ator

Praias de Cascais,
20:39h
31-10-2019

José Gil,
Foto Catarina Gil

terça-feira, 5 de novembro de 2019

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

Viagem pelo sudeste de Minas Gerais; o nosso destino é Ouro Preto. 

O carro rola ao compasso de música para encher as paisagens que, mal se começa a subir em direcção a Petrópolis, deixa a planície com cumes ao fundo para se compor de maciços que por aqui e ali, abrindo grandes vales verdes de mata e decorados pelo castanho férreo da rocha crua dos enormes blocos de rocha que se deixam ver abruptos a dar corpo a cumes repentinamente muito elevados. 
Deep Purple in concert, há quantos anos não ouvia estes sons. 


Fico com a ideia que ao escalarmos as serras que fazem a fronteira entre os estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, estamos no planalto central brasileiro em que provavelmente assentará todo este território que me parece estar a muitas centenas de metros acima do nível médio das águas do mar. 
Pelo menos nesta região sudeste, Minas Gerais tem um aspecto montanhoso. O horizonte recorta-se de corcundas mais ou menos altas e imponentes que não se fizeram rogadas para formarem serranias também elas, ora aqui de pequeno, ora ali de grande porte. 


Como somos muitos, viajamos em carros separados. 
Sigo com o Luís no van que transporta as bagagens e os demais no automóvel que alugámos quando aqui chegámos. 

Segundo a mãe, as minhas filhas estiveram sossegadas e participaram nas conversas de circunstância.

Mas infelizmente o Quim não registou o trajecto com a sua câmara digital. 



Desvio para Tiradentes, uma surpresa deliciosa que justifica plenamente os mais de cem quilómetros que a tanto obriga. 

Uma pequena localidade cheia de interesse histórico na rota das cidades do ouro que inicialmente terminava em Parati. 

O núcleo urbano antigo faz-se de casas tradicionais bem preservadas nos seus aspectos e pinturas que dão colorido à praça e às ruas que daí partem até à igreja barroca que se ergue num dos limites do povoado; imaginamos os carros de bois com rodas de madeira sobre estes pavimentos de calhau grandes e arredondados, ou lajes calcárias multiformes e atapetadas em desalinho. 

À entrada, a placa toponímica tem o símbolo de uma estância termal. As pequenas carroças puxadas por potros que se alinham, à direita, na praça principal, oferecem uma visita pelos pontos de interesse e os pisos térreos abrem portas a restaurantes e bares e às muitas casinhas de venda do mais variado artesanato que vai das simples bugigangas ao mobiliário, passando pela pintura e as tapeçarias e demais artes têxteis. 

Na estação ferroviária, cruzámo-nos com um comboio a carvão que me pareceu servir para passeios turísticos. 


 Tiradentes

segunda-feira, 4 de novembro de 2019



Porto de Paranaguá, Autor, Alfredo Andersen 
Óleo sobre tela, 55 x 76 cm

Alfredo Andersen nasceu em Christianssand, Noruega, a 3 de Novembro de 1860 e faleceu em Curitiba, Brasil, a 9 de Agosto de 1935.

Foi um pintor, escultor, decorador e professor norueguês radicado no Brasil.

O artista é considerado o “Pai da Pintura Paranaense”.

Selecção de António Tapadinhas

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

EG #117


ESTUDO GERAL
out/nov     2019           Nº117


"O mundo é Deus sendo."


Sumário


2.              As Nossas Cores – António Tapadinhas
exposição de pintura

3.              Plena Gratitude – Luís Santos
largo da graça

4.              O Diário da Matilde – Luís F. de A. Gomes
diarística

5.              Um Poema – Manuel de Sousa
D’Angola

educassão é icenssial
 
livros que se recomendam



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