terça-feira, 19 de novembro de 2019

O DIÁRIO DA MATILDE - O MEU PRIMEIRO ANO DE ESCOLA

A cidade é monumental.


Aqui o Sol aparece e desaparece por detrás dos montes e no meio ficam as corcundas e os chapéus de bico que fazem com que a terra se faça a miúde, com vertentes quase a pique e que a mão do homem encheu de casinhas e casarões coloridos a ladearem ruas pavimentadas com pedras negras salientes e multiformes.


Haculumy é o ponto mais alto, acima dos mil e setecentos metros; as vistas são impressionantes.



A disposição do casario reflecte os contornos das colinas e montes e vemo-nos forçados a subir e a descer as vertentes, fugindo, dentro do possível, às mais íngremes e fazendo escalas em pontos de interesse ou em lojas de artesanato que se espalham, aqui e ali, por algumas das ruas secundárias que da praça principal descem em direcção ao rio.


Ouro Preto é uma cidade histórica da rota do início da exploração mineira que de imediato se seguiu à fixação demográfica que os bandeirantes possibilitaram, com as suas expedições, logo no início do século dezassete.
Ainda hoje em dia há laboração em torno do minério e na vizinhança até é possível visitar uma mina de ouro que cessou a actividade há pouco mais de dez anos. À entrada da urbe, do lado de quem vem de Ouro Branco, há mesmo uma grande unidade industrial para aqueles fins. Mas a actualidade do burgo centra-se mais na universidade e em todo o movimento que se gera em seu redor; estamos naquilo que podemos chamar uma cidade universitária o que é bem visível nas muitas repúblicas de estudantes, cujas tabuletas também muito contribuem para o pitoresco e a singularidade do lugar.

E neste fim-de-semana que trás o fim das férias de Julho, nota-se os magotes da estudantada estridente e gargalhante, contente pelo regresso ou o ingresso que, como em todos os sítios assim, são os caloiros quem mais se diverte com os ares dos primeiros dias e nem mesmo a geada da madrugada impede que a boémia dure até aos primeiros cantares dos galos.


Diz-se que Ouro Preto é a cidade das igrejas e na verdade pululam às mãos cheias, com os seus campanários altaneiros e destaque acima dos telhados ou dos balandraus da vegetação e é difícil olharmos a paisagem sem que em ângulo algum deixemos de avistar pelo menos uma. E também é um facto a imponência de algumas delas, tanto quanto à dimensão diz respeito como à riqueza dos ornamentos barrocos dos traçados.
Mas não é menos verdade que aquelas são afinal a imagem comum que tanto os pequenos povoados como as urbes maiores ostentam por estas bandas. Tenho para mim que esse é o principal legado português para este futuro que é o presente que vivemos.


Justamente foram elas um dos nossos objectivos do dia e se bem que não tão ricas quanto seria de esperar – ainda hoje recordo uma custódia do meu tamanho que vi em Parati – mas não duvidando que as peças mais valiosas e impressionantes estejam guardadas, são, contudo, em todos os exemplares em que entrámos, obras de arte dignas de serem apreciadas e gozadas, onde até nos sabe bem empregar um bom lapso de tempo para que meditemos nos mistérios dos primórdios de um local como este.


E lá estão as técnicas de pintura de tectos que nos cria a ilusão de movimento em certas figuras ou nos olhos com que os santos continuam a fixar os nossos quando rodamos para a posição contrária em que nos encontrávamos em relação a eles.

A Igreja de São Francisco de Assis, a obra prima do Aleijadinho, foi a que mais encantos despertou entre a família que anda em viagem.


No entanto há mais para ver, a começar pelas pinturas naifs dos vendedores de rua ou em lojinhas de artesanato, como também edifícios de interesse, como a Casa do Conto, onde para além do mobiliário e documentos de variados géneros de séculos idos, demos de caras com uma exposição de moedas que, desde o início da colonização portuguesa, por ali circularam.



O cansaço que sentimos é bem compensado por aquilo que vimos.



Criamos espaços de repouso, ao fim da tarde, com a recolha aos quartos para que os miúdos brinquem e os pais possam, no nosso caso, ler ou dormitar.

“-Ficas aqui junto dos avós que a mãe vai ver o tio Daniel.” –Disse a Matilde ao pousar um dos seus bonecos aos pés da cama em que me estendi para ler.



Thomas Mann na maturidade, com uma história que parece ter sido escolhida a propósito para ler neste cenário, a busca de identidade de um escritor alemão do norte no fim do século dezanove, (1) justamente a época desta arquitectura civil do lugar e desta pousada também.



Guardámos os carros na garagem; estamos no domínio dos caminhantes.


 Ouro Preto



NOTA 

(1) Mann, Thomas, TÖNIO KRÜGER 


CITAÇÃO BIBLIOGRÁFICA 

Mann, Thomas, TÖNIO KRÜGER, Tradução de Cláudia Gonçalves, Dom Quixote (2ª. Edição), Lisboa, 2003

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