terça-feira, 31 de agosto de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
XX


-Devemos ter presente que muito simplesmente acontece que a ciência ou a atitude científica, se quisermos, e a atitude religiosa são paralelas, são, digamos assim, duas fontes de conhecimento do mundo. Temos que uma trata de uma coisa, isto é, uma debruça-se sobre uma das vertentes da realidade e a outra trata de outra coisa. É tão simplesmente isso que se passa. A ciência explica ou pretende explicar o Universo e tudo aquilo que está no seu interior, incluindo a vida e, em esta, naturalmente, a própria humanidade. Por sua vez, a religião trata da Fé, dessa busca de Deus, daquilo que poderemos designar pela procura desse Caminho, trata dessa escolha de procurarmos entender como poderemos alcançar a Eternidade. Assim sendo, é fácil de ver que uma não exclui a outra e em função daquilo que disse, a verdade é que poderemos verificar que nem mesmo se complementam entre si, ainda que tenhamos que admitir que conhecimentos produzidos em algum desses lados possam eventualmente serem aplicados e até, em alguns casos, explicados no outro. Mas isto não invalida aquilo que afirmei e, tal como disse, a verdade é que elas não se misturam, elas simplesmente coexistem lado a lado como duas dimensões distintas das capacidades desta nossa espécie tão curiosa, a humanidade. Essa ideia que Deus nos dá, Deus nos protege, é preciso entender muito bem o que poderemos querer dizer com isso, pois se a levarmos à letra estamos sempre no tal conceito primitivo de Deus, se não compreendesse os contextos históricos do entendimento que Dele vamos fazendo, diria até essa ideia utilitária de Deus a quem se pedincha isto e aquilo e que me faz lembrar aquela frase de uma peça da Luísa Costa Gomes, “um Renault cinco para cada português”. Dá a ideia que Deus poderia fazer uma coisa dessas. Ora Deus somos nós que O temos que procurar, somos nós que temos que O encontrar e muito simplesmente o fazemos ou não. E também tenho que dizer que não há mal nenhum se o não fizermos. Nós não poderemos em circunstância alguma e sob que pretexto for impor a Fé a quem quer que seja. Isso iria de todo contra a própria ideia de Fé. Isto é assim com a vertente religiosa. Pois bem, do outro lado, a ciência usamo-la para tentarmos compreender as leis da matéria, os fenómenos do Universo nos quais, manifestamente, Ele se abstém de influir.
-Continuo abismada contigo. Estou a ouvir-te falar e chega até a parecer que nunca antes te houvera visto. Acredita que é essa a sensação. Mas apesar disso e também de até achar que argumentas muito bem e colocas as ideias de um modo bastante claro, há uma dúvida que me assalta naquilo que acabaste de dizer a respeito do facto de a ciência e a religião ou, se quisermos será melhor assim, as explicações científicas e as explicações religiosas se não excluírem entre si. É que estou a lembrar-me se afinal o criacionismo e a evolução não se excluem mutuamente. Estarei a ver mal?
-Estás, é claro que estás. É uma vez mais o tal primitivismo da concepção de Deus.
-Como assim?


-Como assim? É que o criacionismo é uma falácia, nada mais que isso. É evidente que a evolução tem as suas próprias leis e com os conhecimentos que temos hoje em dia, é, por de mais, uma evidência científica. É claro que actualmente ninguém pode pretender que Deus tenha moldado Adão a partir do barro e naturalmente também não retirou Eva de uma das suas costelas. Isso é mais que evidente e só por caturrice, para não dizer pior, poderá alguém pretender o contrário. Acontece que esses são, digamos assim e peço desculpa aqui à minha amiga se vou utilizar uma linguagem que possa parecer um tanto ou quanto, nem sei como dizer, com a frieza da terminologia científica. Mas o que eu ia a dizer é que esses são os mitos do Génesis que a tradição fixou como textos sagrados mas que, como é de todo natural, se fixaram no contexto de um quadro mental e sobretudo de conhecimentos muitíssimo diferentes daquele que hoje possuímos e podemos construir. Eu vejo a coisa desta maneira: tendo reconhecido a Sua existência, tendo reconhecido a Sua revelação, essa terá sido uma forma como os homens de então conseguiram registar a ideia de começo de tudo e isto na medida em que, tendo-O reconhecido enquanto Criador, então, seria a dedução mais lógica e até óbvia seria a de que, exactamente por isso, teria que ter havido um começo e naturalmente um começo que tivesse a ver com Ele, um começo de que Ele tivesse sido o responsável. Ora foi nesse contexto que tais textos adquiriram a sacralidade que os fez ser reunidos na Tora e os cristãos também os reconhecem no que apelidam de Velho Testamento e é nessa conformidade que esses textos são considerados sagrados na tradição judaico-cristã. Mas não é por isso, quer dizer, por um lado não por esses textos fazerem a narrativa que fazem do começo da nossa espécie, da mesma maneira que não é por serem considerados sagrados que deixa de ser cientificamente evidente que o Homem evoluiu, está aí toda uma paleo-antropologia para o mostrar e hoje em dia já conseguimos fazer uma ideia muito aproximada de como isso se possa ter passado. Portanto, nem é o caso de criacionismo e evolução terem que se excluir mutuamente. A coisa não chega aí. O que se passa é que o criacionismo não tem a menor razão de ser. Mesmo nessas versões light que andam por aí e que se servem, eu diria que paradoxalmente se servem de aparato e aparências científicas para darem mais cor aos seus argumentos, como é o caso, por vezes, das rebuscadas fórmulas matemáticas que usam e os pretensos números mágicos, como aquela história do fi e que em síntese pretendem a existência de uma perfeição tal na Natureza que só poderia ser explicada por causas extra-matéria indiciadoras de um mistério divino, mesmo nessas novas roupas mais ou menos sofisticadas, o criacionismo não tem qualquer razão de ser. Todos os dados que temos à disposição apontam para que a Humanidade actual, tal como as espécies que a antecederam, tenham sido resultado de uma evolução no sentido em que Darwin a compreendeu e as ciências biológicas, a partir daí, têm desenvolvido e, em conjunto com os mais recentes avanços da genética, têm vindo a comprovar desde então para cá. Caramba, há provas físicas disso. Estão aí os fósseis, os restos de esqueletos. E nós já sabemos como medir a idade dos materiais e dos tecidos. Podem ter havido erros de datação mais ou menos grandes e podem haver falhas e correcções nas classificações que sejam mais ou menos significativas. E também sabemos que até já aconteceram fraudes, grandes fraudes em torno do estudo da hominização. Aquele episódio do homem de Piltdown é um bom exemplo disso…
-O que é que foi isso?


(continua)

domingo, 29 de agosto de 2010

Luz ao fundo do túnel

Lucas Rosa



Juventude Violenta


imagem de arquivo


um ponto de vista,
por
Maria Eduarda Fagundes



Os noticiários não nos deixam enganar, a violência entre as crianças e adolescentes está aumentando. Sinal que algo de muito errado está acontecendo no contexto social do país.

No Brasil, algumas semanas atrás, o assassinato e esquartejamento de uma jovem mulher, mãe de uma criança de colo, filho de um astro de futebol, teve como testemunha e co-participação um adolescente de 17 anos, sobrinho do jogador suspeito do crime. Nos Estados Unidos da América, um menino de 12 anos matou a madrasta e foi para a escola como se nada tivesse acontecido. O grande número de casos de bulling mostram o lado perverso e malévolo da face infantil. Assaltos, roubos, até mortes entre menores de 18 anos são vistos pela justiça brasileira como atos infracionais e não como crimes. Depois de serem submetidos a exames psicológicos, os delinqüentes são encaminhados a Instituições para Menores Infratores que mais estragam que educam. No caso de crianças com menos de 12 anos, são levadas para casa dos responsáveis com aconselhamentos e orientação psicológica nem sempre cumprida. Mas o que não dá para entender é que o jovem de 16 anos não pode responder legalmente pelos seus atos, mas pode escolher, através do voto, os gestores do destino do país!

Recentemente o atual presidente assinou um projeto de lei, que irá passar pelo Congresso, em que é vedado aos pais aplicar qualquer tipo de castigo físico aos filhos( não fala do psicológico), mesmo que seja uma palmadinha corretiva. A nova lei levanta polêmica porque, além de já existir uma anterior que protege as crianças e adolescentes da violência, de abusos e agressões físicas, não diz claramente como fará o controle e as ações punitivas. E ainda levanta a possibilidade esdrúxula de tornar os pais e responsáveis reféns das ameaças, verdadeiras ou falsas, dos filhos ou desafetos para conseguirem seus objetivos.

Baseada em estudos, a maioria dos psicólogos tolera a palmadinha corretiva, em certas situações e fases da evolução infantil, como uma forma de aprendizado.

É sabido que até os 5 anos a criança não tem plena capacidade de raciocínio para saber o que é certo ou errado, o que é inoculo ou perigoso. Porém percebe a linguagem corporal, o olhar, subentendendo o bom e o mau, o sim e o não. Essa é uma fase de conhecimentos, de percepções, de desafios, quando a criança faz testes e experimentos, quando ignora o não como alternativa. Nessa ocasião, na teimosia, na insistência de um ato arriscado, a palmada, na hora certa, dá-lhe o ensinamento que a dor é a resposta à experiência. De outra maneira, teremos que sempre afastá-la das situações e objetos perigosos até que ela tenha idade e entendimento, o que leva tempo, observação e vigilância constantes.

Geralmente após os 7 anos a criança já compreende e raciocina, embora ainda não tenha maturidade para responder pelas suas ações. Difícil é diagnosticar os transtornos de conduta passageiros, normais nessa época, como atos de afirmação, controláveis pela paciência e educação, dos transtornos de conduta permanentes, maldosos e delinqüentes, sintomas de uma personalidade psicopatológica genética, que ela carregará a vida inteira.

Brigas violentas com coleguinhas, emprego freqüente de mentiras para benefício próprio, insensibilidade ao sofrimento alheio, destruição sistemática de brinquedos, seus e dos outros, maltratar os animais com requintes de crueldade, desentendimentos permanentes com pais e professores, são sinais que devem ser observados com cuidado.

Já as causas sociais da violência da juventude são muitas e bem conhecidas:

-Falta de estrutura familiar, de escola motivadora, interessante e interessada, de programas governamentais eficientes e permanentes para assistência à juventude carente, de futuro com perspectiva de vida digna, a ausência de valores espirituais que a fé supre e a religião ensina, a ignorância, a desistência escolar, a baixo-estima, o tédio, a dependência, as drogas, as frustrações, o analfabetismo, o abandono, os conflitos, a exclusão social, a busca ilusória da felicidade, a banalização da vida e das responsabilidades, mostrada na TV, nos filmes, na internet. Enfim, a necessidade de ser visível, amado, respeitado, mesmo que para isso seja necessário usar da violência.

Os antigos gregos, que tanto influíram na elaboração das normas da educação do mundo ocidental, em especial os espartanos, preconizavam além do domínio do conhecimento pela mente, a fortaleza do corpo e espírito pelo sofrimento físico, hoje coisa só vista nas academias de fisiculturismo...

Educar é uma arte que exige amor, sabedoria, conhecimento e paciência. Saber direcionar a personalidade, a sensibilidade, e a curiosidade da criança para seu crescimento humano e intelectual é um dom, é qualidade do bom educador. Se for através da imitação, da emoção, da experiência, na repetição e ritualização de palavras e atitudes que a criança aprende, é de primordial importância o exemplo de pais e professores. Num lar amoroso e respeitoso, a criança conhece a sua importância, se sente segura, aprende a lidar com os diferentes, a dar e receber, a ser cortês e participativo. As pequenas dificuldades e incidentes diários são preparação para a vida. Super proteger a criança é tirar-lhe a oportunidade de amadurecimento.

Ainda segundo os psicólogos, é na infância que as primeiras impressões e experiências marcam o subconsciente da pessoa, aquele sentido que lhe dará a visão própria do mundo que a cerca, o fundamento intuitivo da sua percepção no futuro. A educação vem para enriquecê-la, para moldá-la, para ampliá-la, nunca para substancialmente modificá-la. Daí a importância dos primeiros anos na vida de uma criança.

Quando chega a adolescência, a juventude com as insatisfações e buscas pela felicidade quimérica, aprende que tudo que era lindo de se ver torna-se doloroso no ato de ser. Percebe que para conquistar o mundo tem de estar preparada, ter na bagagem instrumentos adquiridos no passado infanto-juvenil. Quando isso não ocorre, contrariada a todo o momento pelas exigências da sociedade, se vê frustrada, procura preenche o vácuo da existência com o ter. Pobre de valores humanos, morais e espirituais, o jovem acha que para ser feliz precisa de consumir, de ter carro de ultimo tipo, de estar na moda, de ser visível. Revoltado, quer ser respeitado no ambiente em que vive a qualquer preço. Como não tem cabedal pessoal para conseguir o que deseja, muitas vezes busca através da violência o reconhecimento de que precisa para se sentir vivo.

Não basta o país se espelhar nos avanços tecnológicos e economicos dos países evoluidos para alcançar a qualidade de vida que a população almeja, é necessário investir na educação das crianças e dos jovens, daqueles que gerenciarão o futuro.

Maria Eduarda Fagundes
Uberaba, 26/08/2010
in, dialogos_lusofonos@yahoogrupos.com.br

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

o homem da mota

correr, correr, correr contra a parede
na parede do país pela queda lúcida
os anjos sem voz, a música do ar
quando na estrada agarrei-me à vida
tanta árvore, tanta vida quando a
luz acontece o silêncio dói no suplício
um saleiro transparente, salsa, coentros
um dia feliz é o tempo das vacas
a ilusão de que não somos animais
a minha vida nasceu para plantar
árvores e cuidar dos grandes cavalos
da terra e das conversas saímos
do céu alados – uma estrada grande
entre os cheiros da cozinha, nasci
no fojo sei, junto ao mar ás ondas
os peixes cegos na pontualidade
da série ilimitada eu sou a casa
grande a pele de cor violeta verão

vou a pé ao longo das palavras
chego à fábrica das sardinhas e sigo
até à praia com o homem da moto

José Gil
http://joseamilcarcapinhagil.blogspot.com

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Aventuras de Luís Guerreiro e Tina no Brasil-Parte 5-Expo Brasília


OBJETIVO BRASÍLIA!

DESDE O ANO 2000 QUE FAÇO EXPOSIÇÕES EM BRASÍLIA

A PRIMEIRA FOI NO FOYER DO TEATRO NACIONAL

EM 2006 NO MAB-MUSEU DE ARTE DE BRASÍLIA ONDE APRESENTEI OS PAINÉIS DAS AVENTURAS DE JERÍLIO

AGORA EM 2010
NO ESPAÇO CULTURAL DA 508 SUL, APRESENTO O PAINEL "IMPÉRIO ZRAKIANO"
O PRELÚDIO DO 2º EPISÓDIO DA SAGA!

O LANÇAMENTO MUNDIAL DA REVISTA DE HQ EM AZULEJOS DE FIÇÃO CIENTÍFICA DAS AVENTURAS DE JERÍLIO FOI FEITO NA NOITE DE 6 DE AGOSTO DE 2010.

Luís Cruz Guerreiro

Museu da Língua Portuguesa abre expo sobre Fernando Pessoa

O Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, abriu ontem (24) ao público a primeira exposição que tem como tema um autor português. Depois de homenagear grandes nomes da literatura nacional, como Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Machado de Assis, Fernando Pessoa, Plural como o Universo mostra diversas facetas daquele que foi um maiores poetas do século 20.

“Nosso propósito básico é levar Fernando Pessoa à vida do cidadão que não o conhece, e que portanto encontrará um linguagem acessível. E também àqueles que já estão familiarizados com seus versos, que terão a chance de descobrir aspectos e conceitos novos”, diz um dos curadores, Carlos Felipe Moisés.

Além dos conhecidos heterônimos de Fernando Pessoa: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, estão expostos poemas de outros menos conhecidos, como o Barão de Teive, o prosador suicida. Na exposição estão também algumas raridades, como a primeira edição do livro Mensagem, único publicado pelo poeta em vida, e os dois números da revista Orpheu, marco inicial do modernismo em Portugal.

O mar está presente em todas as salas da mostra – diferentes tons de azul da água e do céu remetem o visitante à época das grandes navegações e dos descobrimentos. Figuras que representam o casario de Lisboa também estão espalhadas pelas salas da exposição. “A ideia é sugerir viagens mentais e espirituais, em torno das ruas de Lisboa, das aventuras dos heterônimos e de Pessoa”, ressalta o cenógrafo Hélio Eichbauer.

No primeiro dia aberto ao público, os estudantes foram os principais visitantes da mostra. Felipe Guimarães, que está no ensino fundamental, ficou entusiasmado com os recursos tecnológicos utilizados na exposição. “Gostei de ver as poesias sendo escritas em cima da praia”, diz, se referindo a projeção dos versos de Fernando Pessoa sobre um cenário que imita a areia.

A exposição vai até o dia 30 de janeiro. O museu, que fica na Praça da Luz, no centro da capital, funciona de terça a domingo das 10h às 18h. Informações podem ser obtidas pelo telefone (11) 3326 0775.

Fonte: Agência Brasil - Bruno Bocchini
http://www.revistamuseu.com.br/noticias/not.asp?id=25352&MES=/8/2010&max_por=10&max_ing=5#not

in, dialogos_lusofonos@yahoogrupos.com.br
25/8/2010

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Súplicas de Uma Alma

Sabe qual é o meu desejo hoje?
É que você me leve embora daqui, me socorra.
Quero um dia para não pensar em nada, absolutamente nada.
Pois pensar é um trabalho muito cansativo.
Quero ver o verde passear pelos meus olhos, o céu ser azul, pois, por vezes, não percebo a beleza das cores.
Me resgate deste umbral.
Me limpa, alimenta-me e me ajude a curar minhas feridas.
Inspire-me com o seu sorriso a esperança e o ato da fé.
Deixe-me ser somente uma menina.

Fernanda Leite Bião

terça-feira, 24 de agosto de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
XIX


-Bem, eu devo confessar que o seu pensamento é algo sofisticado para aquilo que tenho estado habituado a ouvir a respeito do que o meu amigo está a falar. Essa relação que estabelece entre a liberdade, a possibilidade de errarmos e a nossa filiação divina, se assim posso falar, essa relação não é vulgar no discurso comum com que as pessoas estão acostumadas a abordar estes temas. Pessoalmente vejo-me forçado a confessar que nunca antes tinha ouvido falar disso e a mim, como é fácil de ver, nunca me tinha ocorrido tal coisa.
-Mas o senhor repare. Façamos a pergunta que me parece ser crucial: o que é que pode ter levado um homem como o Simon Wisenthal a afirmar que a liberdade não é uma dádiva divina? Eu tenho para mim que esta pergunta é fundamental. É que afinal ele era judeu e como tal foi educado no contexto dessa cultura e muito naturalmente de acordo com os princípios religiosos do judaísmo. Tenha presente que a ideia da responsabilidade individual perante Deus é um ângulo central dessa cultura religiosa. Ora isso não é nada mais nada menos que a admissão dessa mesma natureza de se nascer livre, livre de escolher o caminho de Deus, entende? Fundamentalmente é isso que é essa liberdade que podemos dizer que constitui uma dádiva divina e foi pois neste caldo cultural que Simon Wisenthal foi educado, digamos assim. Ele era judeu, naturalmente por nascimento, uma vez que era filho de judeus, de mulher judia, não é? Mas, como agora por vezes se diz, ele era também judeu de cultura. É pois um judeu de cultura que afirma peremptoriamente que a liberdade não é uma dádiva divina. Ora quanto a mim ele só disse isso porque, tal como muitos outros judeus, perante o indizível que foi a Shoa, vacilou dentro da concepção antiga que pretendia que Deus interfere nos assuntos dos homens e nessa condição, muitos foram aqueles que se perguntaram onde estava Ele naqueles momentos inenarráveis em que pessoas como você e eu derramaram o Zyklon B para dentro das câmaras da morte. Sejamos justos para aceitarmos a naturalidade de uma tal reacção. Mas sejamos justos também para verificarmos que, exactamente como disse, todo esse crime hediondo que para mim pôs à prova a própria natureza da humanidade, todo esse crime hediondo foi concebido e perpetrado por homens comuns, tal como qualquer um de nós.
-Bem, já não lhe vou perguntar porque é que Deus não interveio para colocar um ponto final a um tão grande e insuportável sofrimento, porque o meu caro amigo já explicou que entende que Ele não tem qualquer interferência, para usas as suas palavras, nos assuntos dos homens. Mas a sua amiga deixou escapar uma pequena nota a seu respeito que me deixa um tanto ou quanto intrigado. Digamos que agora sou eu que fiquei intrigado.
-Ao que se refere?
-Ao facto de a sua amiga ter dito que você é um homem de ciência, coisa que, ouvindo-o falar, muito me admira.
-E porquê, pode saber-se?
-Se me permite, faço-lhe uma pergunta.
-Venha ela.
-Eu pergunto, não estou a afirmar, até porque, como disse, não tenho experiência de pensar a este respeito.
-Mas qual é a pergunta?
-Então a visão do mundo que a ciência constrói não é incompatível com uma visão religiosa do mundo? Se quer que lhe diga, parece-me até que este reparo está implícito na observação que a sua amiga expressou. Não será assim?
-Sim, devo concordar que de certa maneira me admira como é que uma pessoa de ciência conjuga as suas ideias com uma visão religiosa do mundo, muito embora saiba que existem muitos cientistas cristãos e que vivem de acordo com isso, por exemplo.
-E seguramente de outras religiões também, não é?


-O quê?
-Cientistas cristão e de outras religiões…
-Ah sim, certamente que sim, embora eu fale mais do cristianismo porque é a única religião que conheço. Mas digo-o com toda a sinceridade, no teu caso e já nos conhecemos há um bom número de anos, no teu caso espanta-me o facto de nunca te ter ouvido falar Dele. Não te imaginaria uma pessoa religiosa. Aliás, em termos de visão do mundo, se assim podemos falar, sempre pensei que tu até tivesses apenas uma visão materialista, científica, digamos assim. Nunca te imaginei capaz de reflectir nos ternos em que estás agora aqui a fazer.
-Mas é o que te disse. Eu devo ser uma verdadeira caixinha de surpresas. Mas a verdade é que tenho para mim e tu também já o devias ter percebido, desculpa-me o reparo, mas tenho para mim que não existe qualquer incompatibilidade entre essas duas vertentes do conhecimento e, portanto, também não vejo qualquer contradição em que uma pessoa de ciência, como dizes, seja, ao mesmo tempo, não só uma pessoa religiosa como ainda viva de acordo com os princípios da sua religião. Não há qualquer incompatibilidade entre esses dois universos, salvo seja aqui a expressão.
-Eu também não acho que haja, se bem que, na qualidade de leiga em termos científicos, tenha alguma dificuldade em entender essa realidade e, obviamente, ainda mais em explicá-la, coisa que, devo dizer, jamais tentei ou tentarei.
-Sem querer estar aqui a fazer o papel do advogado do diabo, pergunto-lhe se, de facto, não haverá. Apesar de já ter falado a esse respeito, continuo com a dúvida a respeito se a ciência, por exemplo, não nos faz a prova de que Deus, esse Deus no sentido em que ambos estão a falar, pergunto-me se a ciência não prova que esse Deus pura e simplesmente não existe.
-Não, de todo. A ciência não faz qualquer prova disso. Na minha opinião, nem tem que o fazer. A ciência trata da matéria, das leis da matéria. Trata-se de compreender como é, como funciona o universo físico em que vivemos e já sabemos que Deus não tem que se manifestar no mesmo; logo, a ciência não tem fazer ou deixar de fazer prova da existência de Deus, essa, e isto ressalvando se é de prova que podemos estar a falar, essa resulta da imanência da Fé. Portanto não podemos colocar o problema dessa maneira em que o meu caro amigo o coloca. Mas digo-lhe mais. Pessoalmente acho que essa ideia que o senhor apresenta deriva especialmente do positivismo do século dezanove que basicamente pretendia que a ciência, se então ainda não o fazia, poderia um dia vir a explicar tudo. Os positivistas estavam convictos de tudo poderia um dia vir a ser entendido e explicado pelo desenvolvimento científico e como as ciências físicas, por exemplo, iam paulatinamente fazendo recuar o papel e a importância de Deus no decorrer dos fenómenos do Universo que, manifestamente, cada vez mais se mostrava ser regulado pelas suas próprias leis da matéria, então foi ganhando forma e força a ideia de que Deus pura e simplesmente não está em lado algum e daí a concluir que O mesmo não existe, foi um passo mais ou menos lógico e quase que imediato. Foi precisamente daí que derivou a ideia da morte de Deus que trouxe a orfandade do Homem de que falou Nietzsche e que este resolveu justamente com a sua teoria do super-homem.
-E seja como for, desculpa interromper-te, mas tal como tu disseste ainda há pouco, a ciência também não tem como provar que Deus não existe. E apesar de ser uma leiga no assunto, até me parece que o explicaste muito bem.
-Mas é mais que isso, repara… A ciência não tem que se imiscuir nessa matéria; a ciência não se aplica ao estudo da Fé e a prova de Deus, volto a ressalvar se assim se pode falar, a prova de Deus resulta da Fé. Ora como é que poderemos aplicar os métodos científicos ao estudo da Fé? Não podemos. Não podemos fazer experiências, não podemos fazer a corroboração empírica dos dados, não podemos fazer previsões… Enfim, nem a ciência se tem que aplicar à procura da prova de Deus porque essa resulta de um fenómeno que a mesma não pode abordar e não o pode fazer porque as suas metodologias para tanto não são, nem têm que ser adequadas. Mas até me parece que nem é preciso chegar a tanto, se quiserem, dito de outra forma, podemos muito bem, compreender a coisa de outra maneira, por uma outra via.
-Como, então?

(continua)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Aventuras de Luís Guerreiro e Tina no Brasil - Parte 4


O ADEUS AO RIO E UM ATÉ BREVE AO ZÉ JOSÉ.
A LAPA "BY NIGHT"
BYE BYE RIO!
BREVE PASSAGEM PELO PARAÍSO TERREAL-PARATY
A SENSACIONAL VIAGEM DE BARCO, QUE NOS FEZ CONHECER 4 ILHAS E 3 PRAIAS DE ENCANTOS MIL
NADAMOS ENTRE PEIXINHOS NAS ÁGUAS TÉPIDAS E TRANSPARENTES DE PARATY QUE DISTA CERCA DE 300 KM DO RIO.

Atenção, a inveja mata!

A página: www.azulejariaguerreiro.com também foi atualizada.

domingo, 22 de agosto de 2010

MANUEL ALEGRE, POETA DOS AÇORES

1.
Quem lê – lê-se – o slogan está mais que divulgado e aceite, mas é bom ter à mão uma máxima destas, aceitada sem sofismas e que norteie a viagem fagueira e caprichosa às ilhas das palavras.
A leitura desdenha sempre das datas, mas, à distância dos tempos, intenta a análise do seu tempo – e não há tempo imutável. E ainda bem.
Vivi, enquanto estudante, os anos sessenta. Chegava então dos Açores, de uma ilha insulada. A Faculdade de Letras de Coimbra prolongava o fechamento de um Portugal miudinho, numa atitude de sobranceria arteriosclerótica de velha caturra, atada às suas contas de certezas certas, desfiadas em rito bracarense, pré-conciliar. Discípulos contrariados mas sobrinhos complacentes, lá lhe íamos fazendo a vontade à tia caturra, lendo-lhe as sebentas e debitando fórmulas oratórias da sua ciência de catequista solteirona e, freudianamente, tia contrariada.
Fora das portas férreas, e enferrujadas, mercê de várias interpretações do mundo, de vivências multímodas e de saberes diversificados, Coimbra ganhava um espaço de assimilação e de transmissão da universalidade que a Universidade Instituída estrangulava. Era das amizades que se geravam, dos conflitos que se estabeleciam (alguns trespassados pela amargosa mesquinhez do animal absurdo), dos choques das ideias, dos gostos, das altercações violentas, da magnanimidade fraterna dos gestos simples – que nos íamos formando, a par de uma formatura que haveríamos de alcançar.
Na almedina secular, havia um arco aberto para o mundo de um saber mais remexido, mais inquieto, mais rebelde. Foi aí que aprendemos todos os ismos que nos maravilhavam, e que discutíamos, com paixão e sem tréguas, até que o sol vinha despertar os plátanos da Avenida Sá da Bandeira. Éramos filhos da madrugada em coro com o José Afonso e com a Joan Baez proclamávamos que we shall overcome someday; com os Beatles sussurrámos quanto era bom when I hold your hand e com Adriano içámos a capa negra, rosa negra, bandeira da Liberdade; sentámo-nos para uma bisca e acabámos por jogar Bergman no trunfo mágico das palavras. Festejámos a banalidade com carrascão e descobrimos a Revolução numa flor pacífica que nos engrinaldava os cabelos nos rumos californianos de San Francisco; a paz era assinalada nas paredes dos quartos num círculo com três rabiscos-em-pé-de-galinha e o nariz de Bertrand Russel; alguns foram Guevaras efémeros, de boina precária e pensamento à banda, outros não foram mais que Marcuses em part-time; alguns afirmavam a sua ideologia, então, ainda, sacrossanta; outros demoliam todas as ideologias com a impiedade dos iconoclastas.
De Argel, através da Rádio Portugal Livre, aguardávamos com impaciência a voz de Manuel Alegre em meio das inferências da agonia da ditadura, que estrebuchava.

Na minha bicicleta de recados
eu vou pelos caminhos.
Pedalo nas palavras atravesso as cidades
bato às portas das casas e vêm homens espantados
ouvir o meu recado/ouvir minha canção
(…)
Porque eu trago notícias de todos os filhos
eu trago a chuva e o sol e a promessa dos trigos
e um cesto carregado de vindima
Eu trago a vida
na minha bicicleta de recados
atravessando a madrugada dos poemas


Quem, nos Janeiros de 68, circulasse pela Faculdade de Medicina, encontraria, numa das mesas do átrio do 1º piso, um casal que sustinha nas mãos trementes um livro de capas pretas. O rapaz havia retirado, à cautela, a sobre-capa azul, a fim de que não fosse identificado O Canto e as Armas de Manuel Alegre. E os dois liam, num enleio de namoro, as palavras animosas da luta que urgia. Eram poemas de empenhamento, cantos de compromisso, armas nas mãos entrelaçadas de um homem e de uma mulher por amor de uma pátria estropiada.

É difícil viver em poesia
que a poesia ausenta-se. Desaparece. Foge.
E quer ser ontem ou amanhã. Recusa-se a ser hoje
a poesia dia-a-dia.
É preciso deitar-lhe a mão
dizer-lhe que não fuja
e não seja evasão
(…)
Que venha mesmo assim: mesmo suada mesmo suja
mesmo dor de cabeça náusea transpiração.
E se não quer cantar que deixe de ser ave e ruja
cá dentro – no coração.
O que é preciso é que ela não se ausente.
Que seja dissonância ou melodia
mas que esteja presente
dia-a-dia.


2.
Já antes, porém, o rapaz havia descoberto as palavras necessárias ao momento que então se vivia, caldeando as cantigas incendiadas de rebeldia e de inquietação: Colette Magny e José Afonso, Bob Dylan e Adriano Correia de Oliveira, Ottis Redding e Brassens.
E repetia:

Cantando é como se dissesse: estou aqui
na multidão que está dentro de mim.
(…)
Lá onde um homem tiver sede
levarás teus cântaros
lá onde um homem tiver fome
levarás teu pão

Lá onde a liberdade foi assassinada
os teus cavalos livres levarás,
e a espada refulgente
levarás teu sol, canção
Folha a folha desfolhada,
folha a folha renascida,
assim tu és canção:
viagem do homem para o homem.


Em Praça da Canção, Manuel Alegre capta o estrangulamento do espaço em que nos movíamos, desbravando, com o poder das palavras, as verdades que o Poder ocultava. Assumia, assim, o papel de um aedo, enquanto revelador de notícias (eram as palavras escritas completando as palavras ditas na Voz da Liberdade – umas e outras chegadas do exílio) e também enquanto aglutinador de esperanças, condensando aspirações comuns.

Em cada sílaba um alqueire de esperança
Nesta Praça da Canção,
A Canção não fica no papel


- Não podia ficar no papel.

E este verso dá-me a oportunidade para ultrapassar o tempo da evocação, naturalmente pretérito, para impor o tempo da análise, necessariamente presente, até porque a poesia necessária é aquela que responde e corresponde ao tempo da leitura pancrónica. E o que é certo é que os poemas desta obra referenciam uma realidade que reconhecemos não só pelo que de imperecível aí é captado mas também pela apreensão de uma síntese periódica que remonta aos trovadores primitivos e que se estende aos modelos quinhentistas – e Camões é uma obsidiante presença no fundo mítico e forma versificatória.
Deste modo se impõe o compromisso do poeta com o povo:
Sou metade camponês e metade marinheiroe se repõe a noção da urgente libertação.
Povo de terra pequena e de mar vasto, vai-se o português fragmentando sem remissão. A mesquinhez dos tiranos, contudo, não tolhe a grandura da alma do povo. E há um poeta que ergue a voz para denunciar a iniquidade e a traição aos valores arquétipos, com palavras espantosas de verdades polícromas e sons variados de encanto remexido. Assim restitui a dignidade apetecida:

Eu nunca pude suportar a rejeição.

3.
O Canto e as Armas prolonga esse compromisso: a emigração, o exílio e a guerra colonial são os temas fulcrais, mas emerge, como postulado, a figura de Ulisses:

Eu que fundei Lisboa e ando a perdê-la em cada
viagem. (Pátria-Penélope bordando à espera).
Eu que já fui Ulisses. (Aí do Lusíada:
roubam-lhe Lisboa e a primavera).


Com efeito, este segundo livro de Manuel Alegre, absorvendo a distância e a errância, revoltamente consagra uma voz de aedo que canta o nostos, regresso confiante, e esclarece sobre o poder beligerante dos poemas e elucida sobre o exorcismo do medo:

Cantai esta canção que me ditou
a pena de Garrett e de Camões
que é preciso cantar, cantar, cantar.
E, de canções armados, desarmou
quem nunca teve espadas nem canções.


Por outro lado, os mitos sebásticos envolvem o purgatório e a desgraça.

Quantos desastres dentro dum desastre!
Alcácer Quibir foi sempre
o meu passado dentro do presente,
Ó meu país que nunca te encontraste.


Contra a assunção do fatalismo ergue-se um canto anunciando a liberdade como essência da portugalidade:

Não falo (com V grande) da Verdade
nem venho anunciar qualquer religião:
falo de liberdade
ao alcance da mão.


Mas Ulisses é a instância primordial na urdidura poética, que vai prolongar-se por esse extraordinário texto de lirismo e de funcionalidade teatral que é Um barco para Ítaca. Aqui, a tensão entre o poder e a opressão, o antagonismo entre o amor e o ódio, a oposição entre a inexorabilidade do trágico e a apropriação do risco por um destino próprio – condensam a postura de um poeta que, à semelhança dos pedagogos (no sentido etimológico do vocábulo) esclarece sobre as aspirações do povo:

Grande é a glória, ó meus amigos,
grande é a glória de quem ousa
as coisas nunca ousadas.
(…)
Grande é a glória de quem ousa
desobedecer.


Há que referir, ainda, que, na instituição dos símbolos, se intromete, insinuantemente, a profecia. De facto, a racionalidade, a urgência combativa, a utilização dos poemas como armas, não obsta a que, inextricáveis e embutidos, surjam prenúncios que hão-de confirmar-se como anúncios:

Já disse: planto espadas
e transformo destinos.
E para isso
basta-me tocar os sinos
que cada homem tem no coração.


Ao desenhar os contornos do País de Abril, ao proclamar a flor vermelha como emblema da libertação, ao determinar a madrugada como tempo da revolta, Manuel Alegre estabelece o conluio entre a materialidade do texto e a intuição poética, neste caso – profética:

País de Abril tem estranhas sentinelas.
Todavia seus ventos ensinam aos homens
que não se pode proibir os homens de viver


4.
Com a pátria restituída (ou restituído à Pátria) debate-se agora o Poeta com uma outra dimensão de finitude. Absorvendo a epidérmica rondura do planeta, descobre, portuguesmente, a impossibilidade de confinar-se aos limites de um rectângulo que empareda. Donde, a metade de marinheiro assoma e apropria-se do poder de, com novidade, dizer o deslumbramento do mundo. A Nova do Achamento é a recriação da carta de Pero Vaz de Caminha, mas é sobretudo o reencontro com os traços sinuosos de uma cartografia que é desenhada em quadras e sextilhas de fluência popular e em epopaicos decassílabos.
Esta orientação de navegante alastra por Atlântico, onde avulta a noção de um tempo português.
Na primeira parte desta obra define-se um tempo cronológico, preciosamente datado e localizado, por exemplo:

em Abril de setenta e um, oito da tarde,
no Hospital de Cochin.


Todavia, esta delimitação é apenas uma referência falaciosa, dado que há, outrossim, um tempo português, decimalizado, sim, mas em sílabas de verso. Com efeito, o tempo canónico é eclesial e cenobita.
Condensando o tempo, fundindo o Chronos numa dimensão de pancronia e de universalidade, reúnem-se Damião de Góis e Nuno de Bragança, o Infante D. Henrique e Carlos Paredes, Viriato e Miguel Torga, Fernão Mendes Pinto e um Tio-trisavô decapitado durante as lutas liberais, D. Pedro de Alfarrobeira e Oliveira Martins, Ulisses e D. Sebastião.
O Português, deste modo, é do mundo inteiro: peregrino contumaz, não pode, por conseguinte, caber na geografia da tristeza da Europa, toda ela solidão, grandes chuvas, grandes ventos, grandes putas.
Uma outra peregrinação, então, é narrada, com laivos de fatalidade, onde se pressente a acção de um Destino: a epopeia... e a tragédia do Português Errante, juntas em onze sonetos que intercalam os dez – camonianamente dez – cantos de Atlântico.
Por isso, num país de poetas de mar, no futuro (hipótese da certeza) o que haverá é mar.
E, em Aicha Conticha, eivado de referências sebásticas, o tempo privilegiado é o futuro – futuro de crença no mar.

Ainda há mar
Ainda há naus para a abstracção,
Matemática dos astros e dos ventos,
Navegação do mito e seu teorema.
Ainda há mar.
Ao menos no poema.


Porque no mar se espera o inesperado. Pelo menos, na geografia do poeta, porque o mar é consubstancial a um modo de entender, portuguesmente, o mundo onde as ilhas definem, como assinala Eduardo Lourenço, um território e realidade singular no espaço de raiz e invenção portuguesas, a que os séculos, a distância e os homens imprimiram uma realidade particular.

5.
Por isso, na nota de encerramento ao Livro dos Açores, Manuel Alegre esclarece:
Os poemas deste livro têm um denominador comum: Açores. E quem diz Açores diz mar. Tanto mar.Alguns poemas são repescados de um outro cujo título é Pico, celebrando a ilha da imponente montanha, se bem que o autor considere que, pela ordenação, se trate de um livro novo e inédito sob certos aspectos. Ora, como já referi, em Atlântico, a viagem ousada e aventureira consagra a lapidar enunciação de Vergílio Ferreira Da minha língua ouve-se o mar e recorro, de novo, a Eduardo Lourenço: a poesia de Alegre é uma longa viagem entre os recifes, as ilhas encantadas, os arquipélagos da fábula poética que nós chamamos Homero, Camões, Dante, Pessoa, Ezra Pound ou do mais familiar convívio da sua alma errante, Torga e Sophia.É, pois, no mar atlântico, bem no meio do oceano que liga o velho ao novo mundo, que emergem as ilhas de tanto mar, reformulando aquilo a que Raul Brandão, em traços impressionistas, chamou As Ilhas Desconhecidas, e onde Vitorino Nemésio empreendeu um corso literário. Ora, é a síntese de todos os legados – mitos, fábulas, sentimentos, sonhos, imagens – que Manuel Alegre capta com um apurado labor oficinal e com um sentido rítmico que aproxima estes poemas da primeva musicalidade lírica.
Começa o Livro dos Açores por uma incursão histórica, traçada ab initio, com Gonçalo Velho Cabral, o mais fácil e suposto descobridor das ilhas, a que se seguem Quatro Sonetos de Miguel Corte-Real, o imaginado descobridor do continente americano - nem um nem outro certificados pela História. Contudo, a fábula é mais capciosa do que a realidade e Alegre prefere essa realidade poética mais aliciante do que as provas da verdade-verdadinha:
…eu que sou Gonçalo Velho
Vivendo a glória extrema de chegar
Às tuas ilhas que direi de amores.

Propositivamente, eu vou, já-já, chegar a elas, como se fora um enamoramento por uma mulher – a mulher (ilha) que não há começa em ti.
E Miguel Corte-Real trata a ilha (ainda desconhecida) tal como o trovador Macias, O namorado, ainda como uma amada inatingível:
(…)
Eu não sabia o que era o mar.
Sei agora este amor: teu corpo azul
Sobre o lençol dos dias. Partirei
Para o teu continente ó minha Atlântida.
(…)
Sei agora este amor de novo mundo.

Prossegue com o mito do Cavaleiro do Corvo - certificado por Damião de Góis, que, apesar de esclarecido humanista, mantinha a sua faceta de poeta - aquele que tinha um dedo apontando à descoberta da terras novas:
Só um dedo que já era antes de o ser
Só um dedo apontando a ocidente.
O poema seguinte considero o texto charneira de toda esta elaboração poética. Vale pela simplicidade e contenção, mas a sua leitura é poliédrica e cativante. Poderia, com vantagem, substituir a arrevesada letra do Hino dos Açores, porque resume e sintetiza o deslumbramento do caos que gera a beleza. Sem mais comentários:

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
E flores.

Não há palavra com tanto mar
Como a palavra
Açores.


A II parte do Livro dos Açores é dedicada ao Pico, a ilha mágica. Percorre as nervuras do texto a compleição xamânica, profética, druídica do Poeta. Assinale-se a presença del duende de Lorca: para buscar el duende não há mapa nem exercício, a fim de que se seja consumado o cativante entendimento do público com os versos recitados pelo povo. É, assim, que surgem a linguagem do peixe, o recado do golfinho, a fala da baleia, o grito da gaivota, o ritmo inicial e iniciático do poema, a batida do mar, o basalto, a música da lava, o vulcão, o incenso, a criptoméria, a batida do vento, a batida da terra, a exclamação, o cântico, o vento, a espuma, a cagarra, um deus desconhecido, o dragoeiro, o cedro, a azálea, o fogo subterrâneo, a teoria das brumas, o teorema da ilha por achar, sinais, mistérios, rumores, ritmos, ritos, o triângulo mágico,… e as sílabas.. e uma palavra sem fim, e as metáforas, e a magia, e o dizer e o não dizer, e o escrito e não escrito, e um não sei quê e o verso por escrever

Sílaba a sílaba até ao poema que está escrito
Lá em cima no Pico sobre a ilha.
(…)
E
(…) um verso a pulsar que de repente
Se descobre no Pico e é o deus da ilha.
(…)
E uma ilha a nascer dentro de mim,
(Porque)
(…)Haverá sempre um mais além
Mas hoje é aqui.


Por isso, e em consequência do formulado, Manuel Alegre pode contradizer Raul Brandão, que decantou As Ilhas Desconhecidas, escrevendo o Primeiro Poema de São Caetano:
(…)
O melhor de uma ilha
É a ilha ausente
Aquela que talvez
Sequer exista.
E é a que vês


Este é o Primeiro Poema de São Caetano, povoação virada a Sul da ilha do Pico. E, no Segundo Poema de São Caetano, clarifica:
Este é o sítio onde se pode ler
O livro inicial para sempre perdido.
Em São Caetano o mar é o próprio ser
E seu mistério o único sentido.

Na última parte do Livro dos Açores, Manuel Alegre reconhece que é o
Atlântico minha pátria
E que Antero de Quental é o motivo, a causa, o efeito, a razão, a consequência do homem das ilhas, ou melhor, dos homens que intentam conhecer as ilhas, ou melhor, dos homens que, sendo ilhas, tentam achar respostas – para um tudo – na Poesia:

Como dizer agora de outro modo
O que desde o princípio já foi dito?
O finito o infinito a parte o todo
Amor eternidade morte. E o grito

De quem pela primeira vez olhou
Dentro de si o abismo do universo
E aos quatro ventos repetiu: Quem sou?
Sem nunca achar resposta em nenhum verso.


Manuel Alegre é – afirmo-o categoricamente – um poeta dos Açores, um açoriano que não cabe na geografia da tristeza e que escreveu no mar estes poemas por onde perpassa uma aura de magia que capta o maravilhoso do achamento do coração latejante das ilhas atlânticas.

Coimbra, Fevereiro/Março de 2010
Vasco Pereira da Costa

Nota do editor: Este texto foi proferido no 13º Colóquio da Lusofonia em Abril/2010, Santa Catarina, Brasil.

sábado, 21 de agosto de 2010

Exposição de HQ em Azulejos e Lançamento da Revista-"Aventuras de Jerílio no séc.25-Tudo Começou em Máfio"-Ribeirão Preto-Brasil

EXPOSIÇÃO DE HQ EM AZULEJOS DE LUÍS CRUZ GUERREIRO
Cervejarium Colorado, Av.: Independencia, 3242 - Alto da Boa Vista, Ribeirão Preto - SP de 23 de Agosto segunda feira a 31 de Agosto, terça feira. Fone: 3911 4949

LANÇAMENTO DA REVISTA HQ "AVENTURAS DE JERÍLIO NO SÉCULO 25", DIA DE AGOSTO ÀS 20H, SESSÃO DE AUTÓGRAFOS COM O AUTOR SEGUIDO DE VERNISSAGE.
DURANTE TODO O TEMPO DA EXPOSIÇÃO AS REVISTAS ESTARÃO À VENDA NO CERVEJARIUM COLORADO.


Luis Cruz Guerreiro
Artista Português, vive e trabalha em Alhos Vedros - Portugal

Mantém há mais de 20 anos a atividade de pintura de painéis em azulejos, na técnica de vidrado sobre azulejos.

O artista desenvolve basicamente duas vertentes de trabalho: uma de temas característicos da azulejaria portuguesa e outra chamada linha livre com experimentações técnicas e tématicas, como, por exemplo, a obra a ser apresentada nesta próxima exposição, resultado de mais de dez anos de trabalho. Trata-se de uma engenhosa criação de uma história em quadrinhos de ficção científica no século XXV, na técnica portuguesa tradicional, característica dos séculos XVII e XVIII.

Tudo começou em Máfio é a mostra deste produto em questão, onde será lançada também a revista AVENTURAS DE JERÍLIO NO SÉCULO 25 formato de HQ em papel.

Para melhor visualização da obra de Luis Guerreiro acessar:
www.azulejariaguerreiro.com
Contatos com o artista pelo fone: (16)8829 7386 (Ribeirão Preto Brasil)

Saudações Cordiais,

--
Luís Cruz Guerreiro

Sérgio Guerra - Exposição de fotografia sobre os Hereros em Lisboa e Luanda

Mulheres Muhimbas da aldeia do senhor Tchimbari Kezumo Bingue, Biquifemo, Namibe, em Angola.
Imagem: Sérgio Guerra


Duas exposições do fotógrafo brasileiro Sérgio Guerra, em Luanda e em Lisboa, vão permitir redescobrir os Hereros, povo Banto que vive no sul de Angola e que atravessou décadas de conflito mantendo os seus traços culturais.
As duas exposições resultam das mais de 10 mil imagens e mais de uma centena de depoimentos que Sérgio Guerra, 50 anos, registou em Julho e Agosto de 2009 quando viveu com os Hereros. “Pouquíssima gente em Angola os conhece de perto, os conseguiria identificar ou simplesmente nomear os subgrupos que formam os Hereros”, diz Guerra.

Actualmente os Hereros totalizam 240 mil pessoas, parte vivendo também nos países vizinhos Namíbia, Zimbábue e Botswana. Os traços principais da cultura desse povo remontam a 3 mil anos e seus ancestrais teriam chegado a Angola há pelo menos três séculos – lá se instalaram nas províncias do Cunene, Namibe e Huíla. Com histórico caracterizado pela resistência (e sangue, consequentemente), opuseram-se à escravidão e outras formas de dominação. Num dos capítulos mais tristes dessa história, em 1904, 80% dos Hereros foram mortos durante um confronto com tropas alemãs na Namíbia.

Em Angola, eles também se negaram a baixar a cabeça perante o colonizador português. Porém, é errado dizer que chegaram ao século XXI absolutamente à parte das populações urbanas que se desenvolveram no país africano a partir da instalação dos europeus. Ou seja, os Hereros de hoje fazem comércio, frequentam escolas, consomem bebidas alcoólicas e alguns trocam os seus bois por carros. No entanto, é inegável que, mesmo não tão isolados do que se habituou a chamar de “civilização”, preservam parte significativa de sua cultura.

O gado é fundamental para entender boa parte do modo de vida dos Hereros. “O boi é tudo para eles, é a sobrevivência. Do boi, tiram tudo. Tutano, leite, o óleo com o qual se banham, o excremento que usam para construir as casas onde moram. É o banco deles. E é muito interessante como descentralizam o património. Têm uma dimensão muito precisa do que necessitam para sobreviver e de como devem ser estruturadas as coisas”, explica Sérgio Guerra. O primeiro contacto dele com os Hereros foi em 1999, durante a realização de um programa para a televisão pública de Angola.

Um dos aspectos mais reveladores é, sem dúvida, a poligamia da mulher e numa sociedade patriarcal. Enquanto os maridos viajam, transportando gado, elas podem ter relações sexuais fora do casamento. E, caso engravidem, é comum que os maridos assumam os filhos.

As exposições decorrerão, em Luanda, entre o dia 27 de Julho e 26 de Agosto, no Museu de História Natural e, em Lisboa, de 19 de Agosto a 18 de Setembro, na Galeria Perve.

http://fotosdistodaquilo.blogspot.com/2010/07/sergio-guerra-exposicao-sobre-os.html

in, dialogos_lusofonos@yahoogrupos.com.br

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

DOIS HOMENS DE TRÁS-OS-MONTES

por,
Cristóvão de Aguiar


Aqui, na cidade de Bragança, coração de Trás-os-Montes, grave delito seria não recordar dois grandes vultos da cultura portuguesa do século XX, Paulo Quintela e Miguel Torga. Outros haveria que realçar como o Abade de Baçal, historiador, etnógrafo, arqueólogo, autor das Memórias Arqueológico Históricas do Distrito de Bragança, cujo V volume é o célebre livro, Os Judeus no Distrito de Bragança… E João Araújo Correia, médico João Semana, no genuíno sentido da expressão, na cidade da Régua, e um dos grandes Mestres da Língua Portuguesa, que mereceu de Aquilino, outro seu ilustre cultor, estas expressivas e legítimas palavras: “Mestre de nós todos há cinquenta anos a lavrar nesta terra ingrata e ímproba seara branca do papel almaço, e somos velhos, gloriosos ou ingloriosos, pouco importa; mestre dos que vieram no intermezzo da arte literária com três dimensões para a arte literária sem gramática, sem sintaxe, sem bom senso, sem pés nem cabeça; e mestre para aqueles que terão de libertar-se da acrobacia insustentável e queiram construir obra séria e duradoura”.
João de Araújo Correia, duriense de raiz enxerida no coração, escreveu estas sábias palavras acerca do povo de que fazia parte: “O Holandês subtraiu ao mar a terra que o sustenta; o duriense arrancou-a palmo a palmo a uma natureza tão brava como o mar.” Assim o fez também o escritor de Folhas de Xisto, que sobre o próprio livro escreveu: “Parece-me que foi sobre folhas de xisto, lâminas de alvenaria da minha região, que escrevi estes contos.”
Isto só para mencionar os que já se foram, porque outros há ainda, vivos, e com obra de vulto ainda construção, que mereciam alguma justiça que a macrocefalia lisboeta lhes nega, sempre negou a todos quantos estão longe do seu bafo literário quantas vezes podrido…

Sem desprimor para estes dois vultos transmontanos e que de per si mereciam uma conferência inteira ou mais, só irei debruçar-me, e espero não me despenhar da altura a que ambos se guindaram, sobre a obra e personalidade de outras duas individualidades graníticas, mais chegadas à minha afeição, com quem durante anos convivi em Coimbra e de quem recebi grandes lições de vida, cultura, humanidade e humanidades: Paulo Quintela, filho desta cidade, onde nasceu em 1905, e Miguel Torga, natural de São Martinho de Anta, o seu lugar de onde e o seu centro do mundo, como tantas vezes escreveu nos seus livros…

Paulo Quintela foi um germanista de renome internacional e um dos melhores tradutores das línguas germânicas para a Língua Portuguesa. Dir-se-ia, sem pingo de exagero, que nacionalizou esses poetas e escritores estrangeiros, principalmente alemães, para a Literatura Portuguesa, dela ficando a fazer parte: Rilke, Hölderlin, Goethe, Nietzche, Hauptmann, Nelly Sachs, Georg Trakl, Nietzche, incluindo alguns poemas ingleses de Fernando Pessoa, a pedido de Georg Rudolf Lindt, crítico alemão, lusitanista, estudioso e tradutor de Pessoa. E foram esses poetas maiores da Literatura Universal, sobretudo Rilke, que influenciaram alguns poetas portugueses, dos quais destaco Eugénio de Andrade e o próprio Miguel Torga. Como se isto não bastasse, Paulo Quintela, um apaixonado pelo teatro e por Gil Vicente, havia de ressuscitar a sua obra dramatúrgica para as tábuas do palco, até então sepultada na poeira dos compêndios. Exceptuavam-se algumas tímidas, fugazes e nem sempre logradas tentativas do Teatro Nacional Dona Maria, que, nos meados dos anos trinta do século XX, o pôs em cena. E terá sido um espectáculo, com excertos da obra de Mestre Gil, uma silva vicentina, representado por essa companhia, em uma noite de Verão, no Pátio da Universidade de Coimbra, que o catapultou para pôr de imediato a obra vicentina em cima do palco. Escreveu ensaios sobre a obra do maior homem de teatro português, e deu a conhecer aos leitores portugueses as Líricas Castelhanas, de Gil Vicente, publicadas em livro, em meados dos anos sessenta, no Cancioneiro Vértice. Porém, Quintela não se quedou por Gil Vicente: encenou outros grandes dramaturgos; os trágicos gregos: a Medeia, de Eurípedes; a Antígona, de Sófocles; o Prometeu Agrilhoado, de Ésquilo; O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de La Barca; Retablillo de don Cristóbal e A Sapateira Prodigiosa, de Frederico García Lorca. Nesta última peça, foi o próprio Quintela quem representou o papel de sapateiro, o principal, porque o actor que o devia interpretar ter comunicado, na véspera da estreia, que não podia comparecer – valia Quintela saber de cor todos os papéis das peças que encenava; O Tartufo, de Molière, além de alguns portugueses contemporâneos, como Miguel Torga; José Régio e Raul Brandão… Graças ao TEUC (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra), fundado em 1938, e que se estreou com a Farsa de Inês Pereira, foi possível a Paulo Quintela, seu director artístico durante mais de trinta anos, dar a conhecer não só Gil Vicente como todos os dramaturgos atrás referidos, fazendo do TEUC uma verdadeira escola de teatro por onde passaram gerações e gerações de estudantes, que, após a formatura, continuaram a lição do Mestre, organizando grupos de teatro nas locais onde foram exercer a sua profissão.

Como dizia, foi nesta cidade de Bragança que nasceu, em Dezembro de 1905, Paulo Manuel Pires, mais tarde Quintela, oitavo rebento de uma prole de dez, descendente de um pedreiro e de uma padeira. Aqui se criou, iniciou e concluiu os estudos elementares e liceais, que o haviam de guindar à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, na qual se matriculou no ano lectivo de 1922 /1923, ainda com a idade de dezasseis anos. Aluno brilhante, concluiu o curso de Filologia Germânica com distinção, e foi bolseiro da Fundação Humboldt, o que lhe proporcionou viver, estudar e ensinar, em Berlim, durante seis anos. Com a subida de Hitler ao poder, regressou a Coimbra e à sua Faculdade, passando a exercer, durante mais de quarenta anos, o magistério nas Literaturas e Culturas Germânicas. Aqui jaz, no cemitério do “Alto do Sapato”, desde o dia 10 de Março de 1987.

Delito grave seria também deixar em silêncio o nome de Miguel Torga, um dos mais grados escritores de sempre da Literatura Portuguesa e, durante grande parte do percurso da existência, íntimo amigo de Paulo Quintela e seu companheiro de lides e aventuras literárias. Procurarei, nesta minha despretensiosa comunicação, deslindar o que os uniu e depois o que os separou para sempre, tentando o milagre, sempre possível, de um reatamento de relações post mortem…

Entre ambos existia uma amizade enraizada num acerado amor que consagravam a Trás-os-Montes, o “Reino Maravilhoso”, de onde ambos eram oriundos. “Que belo é ter um amigo! Ontem eram ideias contra ideias. Hoje é este fraterno abraço a afirmar que acima das ideias estão os homens. Um sol tépido a iluminar a paisagem de paz onde esse abraço se deu, forte e repousado. Que belo e natural é ter um amigo!” ─ escreveu Torga, no dia 4 de Fevereiro de 1935, no primeiro volume do Diário, referindo-se a Quintela, que conhecera um ano antes na cama de um hospital em Coimbra.

No Segundo Congresso Transmontano, realizado nas Pedras Salgadas, em Setembro de 1941, ambos participaram com duas conferências. A de Miguel Torga intitulava-se “Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes) ”; a de Paulo Quintela, “Um Poeta de Trás-os-Montes”, Miguel Torga. E era o Poeta: “Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desembainhada: ‘─ Para cá do Marão, mandam o que cá estão!’ Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós? Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena: ─ Entre! ─ A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.”

Por seu turno, Paulo Quintela: “Mas não se nasce impunemente em Trás-os-Montes, no Alentejo ou à beira-mar. Quer dizer que a paisagem, se não é o único factor determinante, é contudo primordial elemento de formação e informação. Se a poesia é no fundo expressão ─ expressão mágica ─ das coisas e dos seres, da Vida, é evi¬ente que essa expressão há-de ser em certa medida condicionada pela maneira como esses seres e coisas se nos revelam e nos solicitam, pela luz que os banha, pelo horizonte em que estão implantados, pelo ângulo por que se contemplam. O homem da planície terá uma vivência das coisas e dos homens muito diversa da do montanhês. Horizontes vastos e planos, monótonos, em que as figuras se perdem ou ficam reduzidas a contornos imprecisos, convidam a erguer os olhos e a contemplar o céu. Daqui ─ falo, evidentemente, em termos amplos que admitem toda a sorte de excepção que não abalará aliás a firmeza do princípio ─ (o próprio poeta de que me ocupo poderá por vezes parecer excepção...) ─ daqui, digo, a propensão contemplativa e a necessidade de fuga e libertação mística do homem nado e criado em ambiente destes. Daqui o carácter místico da grande literatura da estepe russa, por exemplo. Mas subamos agora uma montanha. As coisas na encosta que vamos escalando são-nos mais chegadas, mais íntimas, mais nossas, pelo esforço que pusemos em alcançá-las; a luz quebra e reflecte de outra maneira nas lombas que nos rodeiam e nos limitam o horizonte; a subida é árdua, mas gostosa; o arcaboiço arfa, bate o coração encostado à fraga ou à árvore, e o arquejar do peito e a pancada do coração do homem da montanha faz-se hálito e pulsar da própria terramãe. Chega-se ao cimo. Mas não foi para contemplar o céu que nos aproximámos dele. Sobe-se a um monte para olhar cá para baixo, para dominar a terra que se alarga, se nos revela e nos convida. Foi no alto dum monte que o diabo patenteou a Cristo a sua maior tentação: ‘De novo o subiu o diabo a um monte muito alto: e lhe mostrou todos os Reinos do Mundo, e a glória deles, e lhe disse: Tudo isto te darei, se prostrado me adorares...’ Deus em Cristo resistiu à tentação. Os homens sucumbem à veemência do desejo de posse do Mundo e da sua Beleza. Miguel Torga é, dos poetas portugueses modernos, o que está mais intimamente ligado à sua paisagem, que é a paisagem de Trás-os-Montes.”

Convoco agora o Poeta Manuel Alegre para, com a sua palavra poética, vir em meu auxílio. Na III Parte do seu livro, Coimbra Nunca Vista, intitulada “Abecedário de Coimbra”, o poeta de Abril, grande amigo e admirador de ambos, empreende uma apolínea peregrinação afectiva através de individualidades que, em dado momento histórico-cultural, cunharam o carácter da cidade mítica. Nesse “Abecedário”, figuram, entre outros, dois poemas dedicados às duas fragas graníticas transmontanas, um com o título de “Miguel Torga No Largo da Portagem”; o outro intitulado “Paulo Quintela”. O dedicado ao autor de A Criação do Mundo reza assim:

Todos os dias o poeta vem ao centro / sobe ao seu consultório e embarca para / dentro. / Diante da folha branca vai de viagem / navega sobre o tempo e nunca pára. / Há nele o canto de raiz e o verso vagabundo / da sua janela chega à outra margem / e dá a volta ao mundo / no Largo da Portagem.

Sobre Quintela escreve:

Nada sabíamos da língua portuguesa / e então sílaba a sílaba ele ensinou-nos / a música secreta das vogais / a cor das consoantes a ondulação o ritmo / o marulhar das frases e o seu / sabor a sal. / E também como pisar um palco / como falar como calar e sobretudo/ como sair de cena e entrar / no grande teatro deste / mundo. / Porque tudo era proibido e ele nos disse / que tudo pode ser ousado / desde que se aprenda a entrar a tempo / a colocar a voz e a não perder / a alma.

Nestas prodigiosas sínteses poéticas, de uma tão luminosa fundura a que só os príncipes da poesia têm o condão de descer ou de subir, encontra-se delineado um verdadeiro, muito completo e complexo programa de vida estética, intelectual e cívica, que tanto Paulo Quintela como Miguel Torga foram cumprindo enquanto por cá andaram. Nas facetas que no poema se realçam, tornou-se Quintela grande mestre e a sua obra de intelectual e o seu exemplo de cidadão empenhado deram disso testemunho. A poesia e a prosa de autores de “franças e araganças”, que, através de traduções exemplares e recriadoras, naturalizou sem qualquer sotaque para português e que ficaram desde logo pertença da Literatura Portuguesa; se tivessem os seus autores cá nascido, seria decerto como ele as traduziu que escreveriam na nossa língua; o teatro vicentino que estudou e amou como ninguém desde os bancos do Liceu de Bragança, difundiu e o elevou, depois, para o seu sítio condigno e certo: as tábuas do palco; o cidadão livre que sempre ousou ser, numa pátria contaminada por grandes medos miudinhos por tantas outras toxinas que lhe conspurcaram a atmosfera, não raro tornando-se, armada ou armadilhada de um pesadume propenso e propício a que certas criaturas se bandeassem, fraquejassem e se perdessem, alma incluída, no céu da sua conversão…

No poema sobre Torga, Manuel Alegre, em palavras sucintas e certeiras, como é timbre dos grandes Poetas, delineia e recria, minuciosamente, o quotidiano do Poeta de Orfeu Rebelde. Era do seu consultório, no Largo da Portagem, que o Poeta, depois de regressar da noite, quase sempre insone, de macerado trabalho poético, em sua casa, zarpava todos os dias para viagens que só ele sabia deslindar. Transcrevo o poema de abertura do 1.º Diário, de 3 de Janeiro de 1932, (Torga iniciava e rematava sempre os seus Diários com um poema), que reflecte esse trabalho nocturno, noctívago, a que se entregava com a devoção de um crente da poesia que nunca deixou de ser:

Deixem passar quem vai na sua estrada. /Deixem passar / Quem vai cheio de luar. /Deixem passar e não lhe digam nada. // Deixem, que vai apenas / Beber água do Sonho a qualquer fonte; / Ou colher açucenas // A um jardim ali defronte. // Vem da terra de todos onde mora / E onde volta depois de amanhecer. / Deixem-no pois passar, agora // Que vai cheio de noite e solidão. / Que vai ser / Uma estrela no chão.

Vale também a pena transcrever um texto do Diário XII, de Fevereiro de 1977, em que o autor de Orfeu Rebelde revela, genialmente, a maneira como nasce um poema:

Foi durante a noite que escrevi o poema. Acordei inquieto, estremunhado, fiquei numa sonolência lúcida e, aos borbotões, os versos, na imprevisibilidade do minério arrancado às trevas da mina, começaram a surgir à tona do silêncio, alguns já estremados, puros, outros ainda agarrados ao cascalho. Depois, a razão clarificadora acudiu à inspiração tumultuosa, britou, peneirou, lavou, ordenou, e as pepitas ficaram articuladas de tal maneira que acabaram por formar um todo coeso, harmonioso e autónomo. Um texto na sua plenitude existencial, inexpugnável como um dia de sol. Excitado pela evidência do milagre, que eu próprio mal podia compreender, não consegui mais pegar no sono. Pusme a recitar cada estrofe, primeiro numa espécie de terror sagrado, a experimentar a segurança do ritmo, a verificar a verdade das rimas, a avaliar a flagrância das imagens. Por fim, confiado, a abaná-las rijamente, e a concluir, desvanecido, que tinha as raízes seguras. E assim tenho passado o dia com elas no ouvido, numa exaltação secreta, estranhamente optimista, menos vulnerável aos empurrões da multidão, feliz sem o dar a entender. É um regozijo íntimo, fundo, como se me encontrasse bafejado por uma graça que não tivesse merecido, nem pedido, nem recebido de ninguém. (8/2/1977, Diário XII)

Paulo Quintela foi o primeiro homem de teatro português que pôs em cena Miguel Torga. Em 1947, o TEUC representava Terra Firme no velho Teatro Avenida, e doze anos mais tarde, no mesmo local, o CITAC, que convidou expressamente Quintela para encenar uma peça de Miguel Torga, representava o poema dramático O Mar, integrado no seu I Ciclo de Teatro. A partir daí os destinos destes dois homens altivos, como duas vertentes de um Marão de carne e osso, separam-se para o resto da vida. E foi pena. Nunca soube deslindar as razões por que se deu tal ruptura, nem talvez as houvesse bem defini¬das. Seriam fortes razões do coração, atrevo-me até a dizer de um grande amor ferido. No fundo, admiravam-se mutuamente, e outra coisa não seria de esperar de homens de tamanha envergadura. Eu próprio posso disso dar testemunho. Paulo Quintela continua no seu labor de traduzir autores alemães, ingleses e franceses como Brecht, Nelly Sachs, Hauptmann, Nietzsche, Goethe, Kant, Ben Johnson, Molière e prossegue no TEUC durante cerca de mais dez anos, encenando Gil Vicente, Molière, autores gregos, como Eurípedes e Sófocles, e modernos como Garcia Lorca e José Régio. Miguel Torga havia ainda de publicar dois livros de poesia, Câmara Ardente e Poemas Ibéricos, três de prosa, o quinto e o sexto dias da Criação do Mundo e nove volumes do Diário.

Paulo Quintela é o primeiro a sair de cena. No dia 9 de Março de 1987. Na véspera, domingo à noite, estivera a ver um programa televisivo intitulado Eu, Miguel Torga, documentário sobre o autor da Criação do Mundo. Acabado o programa, foi-se deitar e não mais acordou. Premonitório, não acham? Eu tinha estado com ele na sexta-feira anterior, e havia prometido levar-lhe na sexta seguinte o Diário XIV, acabado de sair e do qual lhe falara com entusiasmo durante a nossa última conversa de sexta-feira, 6 de Março. À despedida, no alto da escada, ainda me recomendou: “Não te esqueças de me trazer o diário do Torga...”
Miguel Torga viria a morrer cerca de oito anos mais tarde, em 17 de Janeiro de 1995, e sepultado no dia seguinte, em capa rasa, na sua aldeia natal, já transmudada em lugar para onde! No ano seguinte, o Negrilho, árvore centenária que dominava o Largo do Eirô, a quem Torga, num poema de 1954, dizia: Na terra onde nasci há um só poeta. / Os meus versos são folhas dos seus ramos. […], deu em esmorecer e expirou semanas mais tarde. Talvez de desgosto, talvez de saudade do companheiro que: Quando chego conversamos, /E é ele que me revela o mundo visitado [...]. Agora, no Largo do Eirô, transformou-se o mestre da inquietação serena num fantasma enlaçado de hera…
No seu penúltimo diário, o XV, pode ler-se, na entrada com data de 9 de Março de 1987, dia da morte de Paulo Quintela: “A morte é uma grande reconciliadora. Não há desavença que lhe resista. O seu grande manto de equanimidade cobre todas as paixões da mesma vanidade. Só é pena que, depois dela, tudo seja irremediável.” (No dia de sua morte foi enviada uma coroa de flores provinda da casa de Miguel Torga, a dois passos da de Quintela).

Depois de tudo quanto aqui ficou lavrado, fico com a sensação de vazio absoluto, de que tudo ou quase tudo ficou por dizer. Paulo Quintela e Miguel Torga são grandes de mais para se acolherem nas páginas de um qualquer escrito, e eu demasiado pequeno para os fazer caber numa simples e despretensiosa comunicação como esta com que vos tenho vindo a martelar o bicho do ouvido e da paciência. Repare-se, porém, no milagre da poesia, capaz de sínteses fulgurantes: ambos ficaram retratados, em corpo e alma inteiros, nos dois poemas de Manuel Alegre. São assim os Poetas, os grandes Vates da Humanidade.

Cristóvão de Aguiar

Bragança, 1 de Outubro de 2009

Nota: Texto proferido no 12º Colóquios da Lusofonia em Outubro 2009, Bragança.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Tocar a quietude - retiro de meditação

Vivemos tempos incertos e a insegurança que normalmente já sentimos é agravada pelas condições exteriores.

Porventura já compreendemos que as condições exteriores não podem dar-nos a segurança que procuramos. Nada nem ninguém é terra firme se a serenidade e a certeza não vierem de dentro, de um local de imobilidade e silêncio bem no centro da nossa experiência cognitiva.

Claro que, dada a nossa incessante actividade mental, essa quietude não é fácil de atingir. Por isso, e ainda que seja possível aceder a ela em qualquer lugar e a qualquer momento, de início precisamos de algumas condições para mergulharmos em águas mais profundas do que aquelas em que habitualmente navegamos.

Este retiro é o pretexto e a ocasião de o fazermos. Com tempos de meditação, yoga e ensinamentos práticos sobre a maneira budista de ver a vida, será um fim-de-semana para tocarmos o ponto de quietude e nele repousarmos das inúteis fadigas e tensões do dia-a-dia.

Data: de Sexta dia 27 de Agosto às 19h até Domingo dia 29 às 17h.

Local: Quinta das Águias, Rubiães, Paredes de Coura (ver website)

Inscrições e informações: tm: 910779337 / 961407751

Nota: O retiro está aberto a qualquer pessoa, quer seja ou não budista, quer tenha experiência em meditação ou seja principiante.

Carbar e Maio Coopé - Artes Visuais da Guiné-Bissau em Lisboa

Nota: Pode ampliar a imagem clicando em cima.
Mais informações em www.interculturacidade.wordpress.com

terça-feira, 17 de agosto de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
XVIII

Conversas de pássaros em passeio, aqui e ali descansando no parapeito superior ou na agitação dos deltas de verde que, do chão, partem em busca daquele.

-Mas se queres que te diga, honestamente não seria capaz de te imaginar tão versado nestas matérias. Acredita que fico espantada contigo. Afinal tu és um homem de ciência, não é assim? Não errarei se disser que é isso que te caracteriza, pois não.
-Num certo sentido não, sobretudo se nos atermos àquilo que eu faço, não, não estarás a cometer nenhum erro.
-Pois, é esse o teu trabalho, não é? E a tua formação também é essa, aliás como até nem poderia deixar de ser. Pois bem, é por isso que eu nunca imaginaria que serias capaz de reflectir a este nível e, como é mais que evidente, muito menos da maneira como o estás a fazer e com o conhecimento que mostras possuir. Volto a dizer, honestamente, acho isso incrível e é isso que me impressiona. E mesmo sem conhecer o Peter Singer que referes e sem estar a esmiuçar aquilo que disseste quanto à crítica que ele fez, apesar disso tudo, tenho para mim que isso que dizes da Sua infinita justiça e bondade faz todo o sentido.
-Mas olha que ele complica o problema e tem uma tese muito perturbante que eventualmente pode colocar em causa essa verificação, chamemos-lhe assim.
-Que diz ele?
-Defende a tese que a vida humana não tem toda o mesmo valor. Fazemo-nos humanos pela consciência e o exercício da mesma. A vida sem consciência não tem valor algum.
-Pois, isso dessacraliza a vida.
-Tal e qual e é por isso que é perturbante. Como é, então a vida não é sagrada?
-Sim, para vocês que se disseram pessoas de Fé da maneira como o afirmaram e explicaram, isso deve ser, no mínimo, estranho, não é?
-A verdade é que devo admitir que os argumentos que ele apresenta são consistentes. É claro que eu ainda não reflecti aprofundadamente sobre os mesmos. Mas digamos que à primeira vista consigo encontrar um corpo de pensamento sólido que coloca o primado da vida num outro patamar mas igualmente satisfatório no que diz respeito a resultados positivos para a Humanidade. À partida pode parecer que essa dessacralização da vida humana abre ou pode abrir as portas a toda uma série de abusos; o indizível já aconteceu, não? Pois bem, pode suscitar que assim é, mas ele apresenta o complemento de uma ética que justamente coloca o primado na vida consciente e ainda acaba por lhe atribuir a condição de inalienável que afinal atribuímos a toda a vida humana pelo princípio da santidade da vida. Ele sustenta que há características universais eticamente relevantes a começar justamente pela consciência, mas também a capacidade de inter-agir com os outros e a preferência por uma vida agradável. Quer dizer que não podemos, segundo o seu ponto de vista, equiparar a vida de um ser humano na plenitude da sua consciência com um paciente em estado vegetativo, por exemplo.
-Isso é bastante delicado.
-Pois é e se de facto partimos do princípio que a vida é sagrada, ambas têm o mesmo valor, quer dizer, o ser em estado vegetativo continua a ser humano.
-Pois é aí que começam as minhas dúvidas, como deves calcular. E o problema é que fico perplexo com alguns desenvolvimentos da ideia.
-Como assim?
-Fico, por exemplo, a pensar se a não sacralização da vida não acabará por estar mais de acordo com a observação de que Deus não interfere na vida humana. Mas como seria então? Ora é aqui que não sou capaz de avançar, pelo menos por enquanto e por isso ainda permaneço na ideia da aceitação da sacralização da vida. Mas tenho que confessar que o Peter Singer dá muitíssimo que pensar a este nível. E sinceramente não estou a ver como possa resolver os problemas que ele coloca, pelo menos a pensar sozinho.
-Sim, são questões perturbantes. Mas não podemos fugir a elas se se nos colocam, temos que as enfrentar. Não há alternativa. De qualquer forma mantenho aquilo que disse sobre fazer todo o sentido o que falaste sobre a Sua infinita justiça e bondade.


-É precisamente aí que eu tive que ponderar a tal frase do Simon Wisenthal que tanto me deu que pensar, devo dizer. É que em termos sociais ele tem toda a razão, não há como negá-lo. A liberdade não é uma dádiva divina, antes se trata de uma conquista dos homens. A esse nível nem sei mesmo se se poderá sustentar que os homens não nascem livres. Afinal, aquilo que se verifica é que eles são ou não capazes de se fazerem homens livres e de se manterem ou não nessa condição. Aliás, pela nossa própria natureza biológica, nós até nascemos obrigatoriamente dependentes de terceiros, quer para a nossa própria sobrevivência, quer e sobretudo aqui para o que nos interessa, em termos de aprendermos aquilo que é necessário para essa mesma sobrevivência e nesse sentido não sei se de facto poderemos argumentar que os seres humanos nascem livres, o que seria o suficiente para podermos dizer que, em termos sociais, a liberdade não é uma dádiva divina. Mas em termos pessoais e é aí que se pode verificar a materialização ou não da liberdade e só em termos pessoais, eu continuaria a dizer que a liberdade é esse dom que Deus nos deu e que à partida, isto é, à nascença, está presente em todos os seres humanos. Ora e é precisamente daí, dessa ideia da Sua infinita justiça e bondade que poderemos fazer decorrer a liberdade, por outras palavras, é daí que deriva a liberdade, a nossa liberdade individual, não a liberdade social.
-Explique lá essa diferença que estabelece entre uma e a outra.
-Eu estabeleço essa diferença, para usar as suas palavras, mas serve em termos de comunicação para nos entendermos, eu estabeleço essa diferença na medida em que até um escravo, no seu íntimo, poderia permanecer um homem livre. É afinal a melhor lição que poderemos reter do Primo Lévi, no “Se Isto É Um Homem”. Até mesmo no contexto do indizível, um homem poderia permanecer espiritualmente livre e íntegro. É certo que o escravo estaria completamente impedido de tomar decisões quanto ao que, por exemplo, poderia querer fazer no dia seguinte. Mas é verdade que ele poderia sempre escolher um determinado ideal e, pelo menos no domínio dos sonhos, viver em função disso.
-A liberdade de sonhar, isso é um tanto ou quanto dejá vu, não?
-Se o senhor quiser ver a coisa sob esse prisma. Mas a verdade é que pelo menos espiritualmente sempre permaneceremos livres de escolher as ideias que mais nos agradem.
-Sim, concordo com isso.
-Pois é por isso que poderemos então dizer que ao nível do indivíduo, se bem que possa não o ser em termos sociais, a liberdade é uma dádiva divina, decorre da infinita justiça e da infinita bondade de Deus que, por o ser, nos deixou com essa simples propriedade que decorre da nossa natureza que é a liberdade de errarmos. É a angústia de que falou Kirkegaard. Aquilo que ele diz que é a possibilidade sempre presente de podermos optar pelo caminho do bem ou pelo caminho do mal. Deus não interfere nos assuntos dos homens para que sejam estes a usufruírem da liberdade de O encontrarem ou não.
-E olha que há aí uma coisa engraçada.
-O quê?
-É que dessa mesma maneira resolves a afirmação do senhor Wisenthal.
-Como?
-É que precisamente pelo facto de Deus não interferir nos assuntos dos homens é que a liberdade, como tu dizes, em termos sociais, não se trata de uma dádiva divina, não se poderia tratar disso, pois dessa forma Deus estaria a interferir nos assuntos humanos. É por isso que a esse nível a liberdade não é uma dádiva divina e tem que ser, forçosamente, uma conquista dos homens.
-Bem observado, sem dúvida.

(continua)

"Welcome to the machine (Reaching the totally useless knowledge)"



Foto de Raul Costa (aliusvetus) www.pbase.com/aliusvetus

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Petição

Caros Amigos,

Acabei de ler e assinar a petição online: «Pela abolição das touradas e de todos os espectáculos com touros»

http://www.peticaopublica.com/?pi=010BASTA (Ver Aqui)

Eu pessoalmente concordo com esta petição e acho que também podes concordar.

Subscreve a petição e divulga-a pelos teus contactos.

Obrigado,
Paulo Alexandre Esteves Borges

domingo, 15 de agosto de 2010

Aventuras de Luís Guerreiro no Brasil-Parte 3



Depois da tempestade a bonança!
O Rio de Janeiro foi atacado por uma frente fria que baixou a temperatura para 6º e Copacabana virou o habitat perfeito para pinguins.
No dia seguinte tudo voltou à normalidade e subimos no bondinho ao morro da Urca e depois ao Pão de Açucar.
A paisagem da baía da Guanabara é maravilhosa.

Luís Cruz Guerreiro

Nota: Na data que aparece no início do vídeo, onde se lê Agosto, deve ler-se Julho.

sábado, 14 de agosto de 2010

O Largo da Graça

Segundo a "Chronica del Rei D. Joam I de boa memória. Terceira parte em que se contam a Tomada de Ceuta" (Lisboa, 1644), escrita por Gomes Eanes de Zurara em 1450, a autorização do rei para a conquista de Ceuta, primeiríssima etapa da expansão ultramarina portuguesa, foi dada aqui em Alhos Vedros, no Palácio da Graça(?), onde D. João I se refugiou durante o período de nojo pelo falecimento de sua mulher, a rainha D. Filipa de Lencastre, que sucumbira perante a terrível peste que terá assolado o país e dizimado uma parte muito significativa da população.

Aqui vieram os príncipes irmãos, Duarte, Pedro, Henrique, João e Fernando, e talvez também a princesa Isabel, a ínclita geração, conversar com Senhor, seu pai, sobre os planos para a tomada de Ceuta. Como é sabido, o infante D. Henrique foi o principal impulsionador dos descobrimentos portugueses.

Tudo terá decorrido, então, ali entre o Largo da Graça e a Quinta da Graça, a meio caminho quando se vai para a Quinta do Império (não confundir com Quinto Império), dizíamos, Largo da Graça onde, eventualmente, terá nascido ainda um nosso respeitado conterrâneo e contemporâneo, o Sr. Mário da Graça, e terá vivido o avô de um nosso companheiro de “Estudo Geral”, extraordinário escritor e pessoa de admirável cultura. Foi ali também que em criança, depois de atravessado o dito Largo de mão dada com a avó Aura, comprávamos o leite extraído directamente da teta da vaca, não sem que a Dona Albertina, a fazendeira, nos oferecesse um copinho do precioso(?) líquido ainda quentinho.

Naturalmente que tudo isto não tem mais que um significado simbólico para o nosso “Estudo”. Foi aqui como podia ser noutro lugar qualquer... Mas não foi. E a verdade é que, à sombra disso o Largo da Graça fez, e continua a fazer, história. Ainda hoje quando pensamos na força que a Língua Portuguesa granjeou nestes últimos séculos e naquilo que ela vai fazendo, esperemos, pelo bem dos mundos, não podemos deixar de achar Graça ao facto da sua expansão ter passado por aqui, lugar onde os nossos avós viveram.

E quando dizemos os nossos avós estamos, evidentemente, a generalizar.

Luís Santos

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Lusofonia em construção

Muitas das tribos célticas passaram e ficaram no que hoje é Portugal. Os portugueses e os brasileiros têm certamente,em parte, origem céltica. Será?

Os Celtas foram um grupo de povos e nações da Europa na Antiguidade. As tribos célticas ocuparam a maior parte do continente europeu, desde a Península Ibérica até a Anatólia. A maior parte dos celtas foi conquistada e subjugada pelos Romanos.

Havia vários grupos e tribos celtas, entre eles os Bretões, os Gauleses, os Iberos, os Lusitanos, os Eburões, os Batavos, os Belgas, os Gálatas, os Trinovantes e muitos outros. A maioria dessas tribos deu origem aos nomes das províncias romanas na Europa que mais tarde batizaram os estados/nações modernos.


Distribuição diacrônica dos povos celtas::

██ núcleo do território Hallstatt, por volta do século 6 a.C.

██ expansão máxima dos celtas, por volta do século 3 a.C.

██ área lusitana da península ibérica onde a presença dos celtas é incerta

██ as "seis nações célticas" que mantiveram um número significativo de falantes celtas na Idade Moderna

██ áreas onde as línguas celtas continuam a ser faladas hoje

O único estado/nação independente de origem céltica atualmente é a República da Irlanda. O País de Gales também se identifica com a cultura e a etnia célticas, mas é uma entidade subnacional do Reino Unido. A Cornualha (Reino Unido), a Bretanha (França) e a Galiza (Espanha) também são regiões onde línguas e costumes celtas predominam até hoje, ainda que na Galiza a língua Galega não é de origem celta.

Os celtas eram de etnia similar à dos povos Germânicos: altos, com muitos pêlos e de olhos e cabelos claros (ainda que, entre os celtas, os pêlos ruivos e alaranjados fossem mais comuns). São, no entanto, ramos étnicos e culturais distintos tanto geograficamente quanto historicamente. Note-se, porém, que os atuais irlandeses, tradicionalmente relacionados com os antigos celtas, predominam muito os cabelos escuros e menor estatura que os germânicos.

Margarida Castro

Fontes consultadas:
http://celtas-brasil.vilabol.uol.com.br/cidades.htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Celtas

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

CARTA ABERTA PARA TI QUE ME LÊS

Sabes, há muito que estava para te escrever, para falar contigo, pois sinto que te devo uma explicação. Terás dito, ou sentido, que te abandonei, agora que tanto precisavas de mim.
Também eu sinto a tua falta, de te ver, de te ouvir. Já nos conhecemos há mais de 25 anos. No princípio comunicávamos de uma maneira mais salutar, acreditavas mais em mim. Depois, pouco a pouco, senti que íamos esfreando a nossa relação. Sentia a tua angústia, a tua ansiedade por eu não poder resolver os teus problemas , que se manifestavam, a maior parte deles como sintomas clínicos.
Fazia o que sabia e podia, receitas, análises, exames auxiliares de diagnóstico, mas muitas vezes lá aparecias novamente queixando-te , agora de outra coisa. E eu, perguntando a mim mesmo o que é que estava errado, se tu , eu, ou ambos.
Pela manhã, após o periodo de consultas, a funcionária trazia-me os pedidos, que como os teus me levavam algum tempo a passar. Alguns pedidos de outras especialidades, outros de alguém, que tu já descrente em mim resolveste ir consultar. Muitas vezes tentei aflorar contigo, se os teus sintomas físicos não seriam resultantes de algo que se passava na tua vida e que não tinham nada a ver com a medicina. Nem sempre reagias bem a estes meus questionamentos.
Os anos foram-se passando e tambem eu comecei a ficar angustiado, ansioso, às vezes depressivo, pois não via, a maior parte das vezes a luz ao fundo do túnel, para solução da maior parte do que consideravas os teus problemas. O relacionamento entre nós foi-se esfriando e às vezes tornava-se difícil, pois a confiança não era muita.
Então resolvi aposentar-me, libertar-me, e pensei ,libertar-te tambem a ti, dando-te uma oportunidade para procurares outra via.
Soube, depois, que disseste que te tinha abandonado, mas não é verdade. Agora estou mais livre, como um pássaro que se liberta da sua gaiola, mas que continua na periferia, pronto a continuar a ouvir-te já não naquela sala, mas pode ser num banco de jardim, na rua, onde tu quiseres. Tenho todo o tempo para te escutar e se necessário, sugerir-te uma receita ou outra porta que se possa abrir para que te possas ajudar a ti próprio.

antonio alfacinha
medico de familia aposentado de Alhos Vedros
alfa2749@yahoo.com.br

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Crónicas em Vídeo das Aventuras de Luís Guerreiro e Tina na "Terra Brasilis" - Parte 2


A viagem de 12 horas de Ribeirão Preto ao Rio de Janeiro, a chegada e estadia na casa do Zé José, a busca da revista, "Aventuras de Jerílio no séc.25-1ºepisódio-Tudo Começou em Máfio", 200 exemplares em offset, coisa difícil de alguma editora publicar devido à baixa tiragem, mas a Arquímedes Edições fez, saíram caras, mas para quê ficar com um stock de revistas entulhando...

Esta edição é de autor e todos os exemplares são numerados e contêm o sensacional poster: "Cidades Flutuantes"!

Luís Cruz Guerreiro
www.azulejariaguerreiro.com

terça-feira, 10 de agosto de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
XVII

-Olha e se queres que te diga, mais uma vez eu fico espantada contigo.
-Mas seja, eu compreendo que estas ideias lhe possam parecer um tanto ou quanto confusas, mas podemos sempre fazer um esforço. Ora nós podemos dizer, se quiser, podemos aceitar que Ele continua a causa prima, digamos assim, o princípio de tudo. Como é evidente, não será isso que aqui está em causa. Mas aquilo que nós podemos observar é que uma vez espoletada a Criação, isto é, uma vez posto em marcha, salvo seja a expressão, o Universo, uma vez criado o Universo Ele permanece de fora, não direi ausente, mas de fora, sem ter que interferir no resultado dessa Sua criação. Quer dizer que a partir daí, o Universo se regula pelas suas próprias leis, sem que Ele tenha que ter aí o mais pequeno papel. Ora no que a nós diz respeito e nas devidas proporções, é claro, também aí se trata exactamente da mesma coisa. Mais uma vez se verifica que Ele não tem que interferir nos assuntos dos Homens. Aliás, até me parece que será melhor dizer que Ele não interfere nos assuntos dos homens. Isso é connosco e é para isso que precisamente temos o dom do livre arbítrio, não será assim? De outra maneira não teríamos como explicar a Shoa, permaneceríamos eternamente naquela dúvida dolorosa, onde estava ele nesse momento? A mesma dúvida que seguramente levou Simon Wisenthal e aqui, quanto a mim, justamente pelo que disse, com razão, a dizer que a liberdade não é uma dádiva divina. Isto é um desvio, mas pessoalmente, depois de ter lido essa frase, em termos sociais, é claro, até deixei de dizer que a liberdade é uma dádiva divina, pois ela é, com efeito, uma conquista dos seres humanos e bem dolorosa, deve dizer-se. Mas se admitíssemos que Ele interfere nos assuntos dos homens, então como justificar a Shoa? Por aquele velho ditado do Deus escreve direito por linhas tortas? Convenhamos que isso não tem qualquer cabimento. Deus é infinitamente justo e também digo que é infinitamente bom, mesmo tendo em conta a objecção que um Peter Singer, por exemplo, coloca a esta última ideia.
-Quem é esse que eu não conheço?
-Minha cara amiga, não podemos pretender querer conhecer tudo, não é verdade?
-Sim, mas não sei de que reserva é que ele está a falar, pois não conheço esse tal de Peter Singer.



-O Peter Singer é um filósofo que trabalha nos Estados Unidos. Tem desenvolvido um importante trabalho em torno da ética da vida. Vale a pena ler, acreditem. É muito claro e tem ideias muito pouco habituais mas que nos forçam a reflectirmos em torno do mais profundo da humanidade. Contudo não é por isso que aqui o referi e tão só por uma objecção que ele coloca à ideia da bondade infinita de Deus, em torno da qual chama a atenção para aquilo que ele chama de uma armadilha em que caiem aqueles que a sustentam e, obviamente, entre os quais me incluo. Mas para aquilo que no caso aqui nos interessa, o problema está nessa armadilha que ele destaca e que, para ser sincero, ainda não sei como resolver, para falar com toda a franqueza, nem sei mesmo se a poderei alguma vez resolver. Apesar disso e até lá continuo a considerar essa ideia e por isso aqui a tomei para aquilo que pretendia dizer.
Mas seja como for, nessa dimensão de que falei, da infinita justiça e bondade de Deus, ficaria então sempre em aberto a pergunta de como poderia então Ele ter, eu não digo possibilitado, mas antes permitido a Catástrofe?
-Mas não disse qual era a objecção que o filósofo que referiu colocou a essa ideia da bondade de Deus.
-É um reparo muitíssimo simples que eu de facto ainda não vi como o possa resolver. Por acaso até tenho a coisa mais ou menos clara na memória, pois acabei de ler um dos livros dele, precisamente aquele em que chama a atenção para esse pormenor. A coisa é mais ou menos assim: pergunta o que se poderá querer dizer com a ideia de que Deus é infinitamente bom. E contra-argumenta com uma outra pergunta, se queremos então dizer que Deus é aprovado por Deus?
-É uma observação pertinente, não tenhamos qualquer dúvida sobre isso.
-Sim, é uma observação bastante pertinente. Mas para ser sincero não sei se não envolverá um qualquer truque intelectual.
-Truque intelectual?
-Não me estou a exprimir bem. Quero dizer se essa observação não passa de um simples… Nem sei que palavra usar. Truísmo?
(…)
-Mas a verdade é que não sei como resolver o problema, se bem que me deixe a sensação de truque, está a entender?
-Sim, parece-me que entendo onde quer chegar.
-Um sofisma, parece-me a palavra indicada. Pergunto-me se essa observação não envolverá um qualquer sofisma, mas, como disse, não sei responder, sinceramente não sei responder.
-Eu estava ouvir-te falar e fico siderada, fico com os queixos no peito, acredita. Tenho que confessar que fico verdadeiramente espantada contigo. Eu acho que jamais me iria passar pela cabeça que tu fosses uma pessoa religiosa. Creio que posso aplicar aqui este termo ou será exagerado dizer isso?
-Não, não é exagero dizeres isso.

(continua)