terça-feira, 31 de agosto de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
XX


-Devemos ter presente que muito simplesmente acontece que a ciência ou a atitude científica, se quisermos, e a atitude religiosa são paralelas, são, digamos assim, duas fontes de conhecimento do mundo. Temos que uma trata de uma coisa, isto é, uma debruça-se sobre uma das vertentes da realidade e a outra trata de outra coisa. É tão simplesmente isso que se passa. A ciência explica ou pretende explicar o Universo e tudo aquilo que está no seu interior, incluindo a vida e, em esta, naturalmente, a própria humanidade. Por sua vez, a religião trata da Fé, dessa busca de Deus, daquilo que poderemos designar pela procura desse Caminho, trata dessa escolha de procurarmos entender como poderemos alcançar a Eternidade. Assim sendo, é fácil de ver que uma não exclui a outra e em função daquilo que disse, a verdade é que poderemos verificar que nem mesmo se complementam entre si, ainda que tenhamos que admitir que conhecimentos produzidos em algum desses lados possam eventualmente serem aplicados e até, em alguns casos, explicados no outro. Mas isto não invalida aquilo que afirmei e, tal como disse, a verdade é que elas não se misturam, elas simplesmente coexistem lado a lado como duas dimensões distintas das capacidades desta nossa espécie tão curiosa, a humanidade. Essa ideia que Deus nos dá, Deus nos protege, é preciso entender muito bem o que poderemos querer dizer com isso, pois se a levarmos à letra estamos sempre no tal conceito primitivo de Deus, se não compreendesse os contextos históricos do entendimento que Dele vamos fazendo, diria até essa ideia utilitária de Deus a quem se pedincha isto e aquilo e que me faz lembrar aquela frase de uma peça da Luísa Costa Gomes, “um Renault cinco para cada português”. Dá a ideia que Deus poderia fazer uma coisa dessas. Ora Deus somos nós que O temos que procurar, somos nós que temos que O encontrar e muito simplesmente o fazemos ou não. E também tenho que dizer que não há mal nenhum se o não fizermos. Nós não poderemos em circunstância alguma e sob que pretexto for impor a Fé a quem quer que seja. Isso iria de todo contra a própria ideia de Fé. Isto é assim com a vertente religiosa. Pois bem, do outro lado, a ciência usamo-la para tentarmos compreender as leis da matéria, os fenómenos do Universo nos quais, manifestamente, Ele se abstém de influir.
-Continuo abismada contigo. Estou a ouvir-te falar e chega até a parecer que nunca antes te houvera visto. Acredita que é essa a sensação. Mas apesar disso e também de até achar que argumentas muito bem e colocas as ideias de um modo bastante claro, há uma dúvida que me assalta naquilo que acabaste de dizer a respeito do facto de a ciência e a religião ou, se quisermos será melhor assim, as explicações científicas e as explicações religiosas se não excluírem entre si. É que estou a lembrar-me se afinal o criacionismo e a evolução não se excluem mutuamente. Estarei a ver mal?
-Estás, é claro que estás. É uma vez mais o tal primitivismo da concepção de Deus.
-Como assim?


-Como assim? É que o criacionismo é uma falácia, nada mais que isso. É evidente que a evolução tem as suas próprias leis e com os conhecimentos que temos hoje em dia, é, por de mais, uma evidência científica. É claro que actualmente ninguém pode pretender que Deus tenha moldado Adão a partir do barro e naturalmente também não retirou Eva de uma das suas costelas. Isso é mais que evidente e só por caturrice, para não dizer pior, poderá alguém pretender o contrário. Acontece que esses são, digamos assim e peço desculpa aqui à minha amiga se vou utilizar uma linguagem que possa parecer um tanto ou quanto, nem sei como dizer, com a frieza da terminologia científica. Mas o que eu ia a dizer é que esses são os mitos do Génesis que a tradição fixou como textos sagrados mas que, como é de todo natural, se fixaram no contexto de um quadro mental e sobretudo de conhecimentos muitíssimo diferentes daquele que hoje possuímos e podemos construir. Eu vejo a coisa desta maneira: tendo reconhecido a Sua existência, tendo reconhecido a Sua revelação, essa terá sido uma forma como os homens de então conseguiram registar a ideia de começo de tudo e isto na medida em que, tendo-O reconhecido enquanto Criador, então, seria a dedução mais lógica e até óbvia seria a de que, exactamente por isso, teria que ter havido um começo e naturalmente um começo que tivesse a ver com Ele, um começo de que Ele tivesse sido o responsável. Ora foi nesse contexto que tais textos adquiriram a sacralidade que os fez ser reunidos na Tora e os cristãos também os reconhecem no que apelidam de Velho Testamento e é nessa conformidade que esses textos são considerados sagrados na tradição judaico-cristã. Mas não é por isso, quer dizer, por um lado não por esses textos fazerem a narrativa que fazem do começo da nossa espécie, da mesma maneira que não é por serem considerados sagrados que deixa de ser cientificamente evidente que o Homem evoluiu, está aí toda uma paleo-antropologia para o mostrar e hoje em dia já conseguimos fazer uma ideia muito aproximada de como isso se possa ter passado. Portanto, nem é o caso de criacionismo e evolução terem que se excluir mutuamente. A coisa não chega aí. O que se passa é que o criacionismo não tem a menor razão de ser. Mesmo nessas versões light que andam por aí e que se servem, eu diria que paradoxalmente se servem de aparato e aparências científicas para darem mais cor aos seus argumentos, como é o caso, por vezes, das rebuscadas fórmulas matemáticas que usam e os pretensos números mágicos, como aquela história do fi e que em síntese pretendem a existência de uma perfeição tal na Natureza que só poderia ser explicada por causas extra-matéria indiciadoras de um mistério divino, mesmo nessas novas roupas mais ou menos sofisticadas, o criacionismo não tem qualquer razão de ser. Todos os dados que temos à disposição apontam para que a Humanidade actual, tal como as espécies que a antecederam, tenham sido resultado de uma evolução no sentido em que Darwin a compreendeu e as ciências biológicas, a partir daí, têm desenvolvido e, em conjunto com os mais recentes avanços da genética, têm vindo a comprovar desde então para cá. Caramba, há provas físicas disso. Estão aí os fósseis, os restos de esqueletos. E nós já sabemos como medir a idade dos materiais e dos tecidos. Podem ter havido erros de datação mais ou menos grandes e podem haver falhas e correcções nas classificações que sejam mais ou menos significativas. E também sabemos que até já aconteceram fraudes, grandes fraudes em torno do estudo da hominização. Aquele episódio do homem de Piltdown é um bom exemplo disso…
-O que é que foi isso?


(continua)

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

Posso afirmar, depois de ler o teu texto (corrige-me se estiver errado), que o teu protagonista é de opinião que os conhecimentos adquiridos pela Ciência e pela Religião se complementam. Num mundo perfeito seria o mais acertado. Mas...

Tenho de dizer que o teu protagonista é ingénuo: temos uma infinidade de registos históricos de casos de guerras abertas entre ciência e religião -E pur si muove-e muito poucos de colaboração...

É como a relação entre o texto e a música de Vanessa Benelli: é tão absorvente ouvir as notas do piano, que não dá para ler o texto ou vice-versa, ao contrário, como diria o outro...
:)
Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Não, não, não é e o que se dirá depois permitirá perceber isso. Coexistem, mas a coexistência não implica complementaridade; qualquer delas se remete para ordens de coisas que nada têm a ver entre si pelo que...

Mundos acertados... Seriam possíveis na Matemática, Terra onde se demonstra; fora dela estamos sempre onde o bicho humano mora, ou pode morar, ou simplesmente meter o nariz e aí...

Aí entramos no domínio da confusão que geralmente se faz entre o elemento e o conjunto não singular. É verdade que o pensamento que estilhaçou a ortodoxia teve, em inúmeras e indesejáveis situações, a carne assada na fogueira -ainda que seja curial ressalvar que deste modo estamos a ver a(s) religião(ões) como se o catolicismo fosse a única delas- mas também não deixa de ser verdade que ela continua e sempre continuará a mover-se o que, aqui, significa que apesar de tudo sempre os Bacons disseram, os Galilleus seguiram, os Diderots espalharam e uma miríade -não são mãos cheias- de outros que de tantos faria uma lista de endereços, acabaram por afirmar de tal modo o conhecimento científico que hoje até aqui vivemos num mundo de pensamento laico.
Para além disso, devemos ter presente que se aplicássemos o raciocínio pelo prisma da Madre Teresa de Calcutá e dos inúmeros mártires que literalmente deram a vida pelos outros... Provavelmente, um observador exterior -talvez um ET do Spilberg que brincava com as crianças- diria que somos -estou a referir a Humanidade- uma espécie de Santos e seguramente quereria perceber se tal se deveria a questões hereditárias ou culturais. Como ficariam os cabelos dele -aqui os de outros planetas têm cabelo- quando se confrontasse com a ingenuidade de Anne Frank. Enfim...

O remédio santo diz-nos que sempre é possível ler primeiro e escutar depois, ou escutar primeiro e ler depois, ou ler antes e escutar antecipadamente ou, como diria o amigo do outro, ler a seguir e escutar primeiro, ou será que era ao contrário?

Aquele abraço companheiro,

Luís