Nasci em Igarapava, uma cidade muito pequena na fronteira de São Paulo com o estado de Minas Gerais, pertinho de Uberaba. Muito de Igarapava me lembra Minas, e muito de Minas me lembra Igarapava, reminiscências fronteiriças inacabadas, eu creio, de um paulista que não sabe se / que é mineiro, ou de um mineiro que, por muito pouco, ficou sendo paulista “por enquanto”. Muitas vezes voltei para Igarapava, onde está a casa de meu avô, no sentido concreto e platônico do termo, o velho Nadinho Terra, ou Nardim Terra, com um sonoro –im no final que às vezes eu imito em tom alegre.
Em meus escritos aprendi a achar graça de quando a cidade aparece do nada e mevisita, me lembrando ser eu o eterno visitante dela. As pessoas de lá se cuidam e se conhecem desde tempos imemoriais e costumam perguntar a qual família pertencem nas ocasiões de primeiros encontros, atavismos não sei de onde... Há poucos dias, por razões de trabalho, me deparei com uma pessoa de Igarapava, nascida de Igarapava, que eu não conhecia, em um contexto inesperado, em uma localidade completamente outra: quando me dei conta, estava eu a lhe perguntar de que família era, como vovô até hoje faz por lá.
joão ricardo terra
poeta brasileiro
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Última Lição de Geometria
Dizem que fogo apaga fogo. Mas neste caso, entretanto, poderia haver visões paralelas, perpendiculares entre si, mesmo formando outros ângulos. Como também em relação ao jeito displicente de os carros pararem na rua, em relação ao rio partindo ao meio a cidade centenária, à xeretice infinita das pessoas daquele lugar. Um rumor qualquer, elas ficavam especulando, assuntando, enumerando acontecimentos.
Com a estação seca, a palha dos canaviais cuidadosamente deitados se alastrava. Os tratores se postavam desligados à mercê da plantação, circundando-a, e a cor da palha era quase a mesma que a do vestido dela. Pintada com as cores de que eu mais gostava? Decerto que sim, ela se gabava muito, apesar de, para os outros, aquelas serem apenas cores de uma escala cromática abandonada, fora de moda.
No começo ela dizia que o rio é que era o seu lugar preferido, com suas mãos entre as minhas. Que, em se queimando tudo, concentricamente, haveria um ponto nesse quase braço de mar onde o fogo podia crescer em roda, à vontade, para a comprovação daquilo em que todos nós confiávamos. Depois, misteriosamente, ela passou a dizer que gostava mais do canavial. Ficava horas me contando, me dizendo, me olhando. Seus olhos? Mágicos, sim. Já não havia mais nada que ela fizesse de dia com que eu não sonhasse à noite. Era apenas cana deitada em ângulo aguardando a ceifa, nada além para alimentar novas notícias, mas ela ficava tão bonita naquele vestido clarinho, rodeando a plantação, olhando tanto, que aos poucos os outros percebiam e começavam desconfiar das incoerências ocultas de cada um. Só para olhar a cana ela ia, costumando prometer que ainda entrava no rio, depois, para tirar a contraprova. Eu acreditava, apesar de lhe pedir que não, por favor. Ela respondia:
– Eu gosto tanto de você assim, preocupado.
O estranho é que nunca mais ninguém ficou sabendo a explicação correta dos fatos, talvez o rio fosse um desses mundos em que a lógica fica comprometida. Naqueles mesmos dias, eu a vi entrar na água, viva, e sair tão mudada, escandalizando-nos com sua peculiar naturalidade em convocar e destruir um mito. Se você passasse por aqui depois, iria encontrar uma cidade irritantemente a mesma, o miolo aquático dela, conturbado. Você veria as pessoas comentando: dizem que o escorpião alocado num círculo em chamas ferroa-se na cabeça, para morrer depressa. Dizem que dentro do arcoíris homem vira mulher, e vice-versa. Dizem que em dia de finados os mortos vêm procurar suas camas, em casa. Dizem que dois touros trançaram chifres na praça, certa vez, sem nunca ninguém ter descoberto de onde vieram, muito menos para onde foram. Dizem que o padre antigo andava armado. Dizem que fogo abafa fogo: em pouco tempo você aprenderia tudo.
Íamos à noite ver o rio, enquanto rindo ela me repetia essas histórias descomedidas. Até então, nunca ninguém havia invadido tão gravemente o território das águas. Houvesse o tempo da evitação, mas não. Ela dizia tanta coisa bonita antes, que eu costuma levar em conta. Por exemplo? Sobre o incontestável efeito que sua contraprova teria sobre os carros e cabeças abertos, defronte às casas, sem nada a dizer muito diferente de uma teoria equivocada. Ela dizia um dia ainda se deitar naquele leito d’água e comprovar o que pensava. E se nada acontecesse? Pensativa, quieta como as palhas que se avolumavam à espera de uma divina centelha, ela debochava:
– Eu gosto tanto de você assim, cético.
Antes ela sorria de vestido claro e cabelo preto contra o canavial fundo, dando aviso freqüente, sem ninguém capaz de a compreender, naqueles mesmos dias quentes em que qualquer um morria de vontade de atear fogo à palha, ver o fogo avançando, depois mergulhar depressa no legítimo alívio das águas. Houvesse mais um tempo mínimo, e eu sei que ela ainda estava por aqui.
Numa tarde, então, foi que ela saiu de casa sem dar explicação alguma. Os veículos trancavam-se em ângulo contra as calçadas, todos se entreolhando matematicamente, evitando entender. Houvesse mais tempo, interrompia-se uma dessas antigas histórias prestes a nascer. Dizem que ela caminhou, e andou, e andou por entre a cana, voltando-a à vertical. Dizem que ela ateou fogo ao canavial, religou os tratores e, na esperança de ver o fogo contra o fogo, na descabida esperança de um dia ver isso acontecer, ela veio me encontrar na beira do rio, onde eu já a esperava, como de costume, e me desesperava com a luz diferente de seus olhos e dos canaviais acesos.
Voltando: uma tarde ela se pintou toda e saiu de casa. Até então, nunca havia invadido tão gravemente o território das águas. Dizem que o escorpião alocado num círculo em chamas, em se queimando tudo, concentricamente... Uma vez ela me disse ter medo, mas eu nem acreditei. Por isso, talvez, àquela hora ela gritasse. E gritava, numa ação que se concluiu em quatro mãos separadas: as dela escapando às minhas. De todos os ângulos aparecia gente para ver. Não houve eu que a abafasse.
1 comentário:
Gostosa, esta sua prosa de pintar humanidades que traz à pena esses interiores de Minas onde os tempos se misturam e o calor dos corações continua contando as estórias em que seres vivos se confundem na comunham da Terra de que, afinal, todos são uma pequena parcela, nem por isso menos importante.
Palavras preciosas que à leitura dão gosto e encanto.
Vamos seguir as lições de geometria, com a atenção e os olhos de quem se deixa perder em paragens distantes.
Votos fraternais de paz e saúde
Luís Gomes
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