domingo, 22 de agosto de 2010

MANUEL ALEGRE, POETA DOS AÇORES

1.
Quem lê – lê-se – o slogan está mais que divulgado e aceite, mas é bom ter à mão uma máxima destas, aceitada sem sofismas e que norteie a viagem fagueira e caprichosa às ilhas das palavras.
A leitura desdenha sempre das datas, mas, à distância dos tempos, intenta a análise do seu tempo – e não há tempo imutável. E ainda bem.
Vivi, enquanto estudante, os anos sessenta. Chegava então dos Açores, de uma ilha insulada. A Faculdade de Letras de Coimbra prolongava o fechamento de um Portugal miudinho, numa atitude de sobranceria arteriosclerótica de velha caturra, atada às suas contas de certezas certas, desfiadas em rito bracarense, pré-conciliar. Discípulos contrariados mas sobrinhos complacentes, lá lhe íamos fazendo a vontade à tia caturra, lendo-lhe as sebentas e debitando fórmulas oratórias da sua ciência de catequista solteirona e, freudianamente, tia contrariada.
Fora das portas férreas, e enferrujadas, mercê de várias interpretações do mundo, de vivências multímodas e de saberes diversificados, Coimbra ganhava um espaço de assimilação e de transmissão da universalidade que a Universidade Instituída estrangulava. Era das amizades que se geravam, dos conflitos que se estabeleciam (alguns trespassados pela amargosa mesquinhez do animal absurdo), dos choques das ideias, dos gostos, das altercações violentas, da magnanimidade fraterna dos gestos simples – que nos íamos formando, a par de uma formatura que haveríamos de alcançar.
Na almedina secular, havia um arco aberto para o mundo de um saber mais remexido, mais inquieto, mais rebelde. Foi aí que aprendemos todos os ismos que nos maravilhavam, e que discutíamos, com paixão e sem tréguas, até que o sol vinha despertar os plátanos da Avenida Sá da Bandeira. Éramos filhos da madrugada em coro com o José Afonso e com a Joan Baez proclamávamos que we shall overcome someday; com os Beatles sussurrámos quanto era bom when I hold your hand e com Adriano içámos a capa negra, rosa negra, bandeira da Liberdade; sentámo-nos para uma bisca e acabámos por jogar Bergman no trunfo mágico das palavras. Festejámos a banalidade com carrascão e descobrimos a Revolução numa flor pacífica que nos engrinaldava os cabelos nos rumos californianos de San Francisco; a paz era assinalada nas paredes dos quartos num círculo com três rabiscos-em-pé-de-galinha e o nariz de Bertrand Russel; alguns foram Guevaras efémeros, de boina precária e pensamento à banda, outros não foram mais que Marcuses em part-time; alguns afirmavam a sua ideologia, então, ainda, sacrossanta; outros demoliam todas as ideologias com a impiedade dos iconoclastas.
De Argel, através da Rádio Portugal Livre, aguardávamos com impaciência a voz de Manuel Alegre em meio das inferências da agonia da ditadura, que estrebuchava.

Na minha bicicleta de recados
eu vou pelos caminhos.
Pedalo nas palavras atravesso as cidades
bato às portas das casas e vêm homens espantados
ouvir o meu recado/ouvir minha canção
(…)
Porque eu trago notícias de todos os filhos
eu trago a chuva e o sol e a promessa dos trigos
e um cesto carregado de vindima
Eu trago a vida
na minha bicicleta de recados
atravessando a madrugada dos poemas


Quem, nos Janeiros de 68, circulasse pela Faculdade de Medicina, encontraria, numa das mesas do átrio do 1º piso, um casal que sustinha nas mãos trementes um livro de capas pretas. O rapaz havia retirado, à cautela, a sobre-capa azul, a fim de que não fosse identificado O Canto e as Armas de Manuel Alegre. E os dois liam, num enleio de namoro, as palavras animosas da luta que urgia. Eram poemas de empenhamento, cantos de compromisso, armas nas mãos entrelaçadas de um homem e de uma mulher por amor de uma pátria estropiada.

É difícil viver em poesia
que a poesia ausenta-se. Desaparece. Foge.
E quer ser ontem ou amanhã. Recusa-se a ser hoje
a poesia dia-a-dia.
É preciso deitar-lhe a mão
dizer-lhe que não fuja
e não seja evasão
(…)
Que venha mesmo assim: mesmo suada mesmo suja
mesmo dor de cabeça náusea transpiração.
E se não quer cantar que deixe de ser ave e ruja
cá dentro – no coração.
O que é preciso é que ela não se ausente.
Que seja dissonância ou melodia
mas que esteja presente
dia-a-dia.


2.
Já antes, porém, o rapaz havia descoberto as palavras necessárias ao momento que então se vivia, caldeando as cantigas incendiadas de rebeldia e de inquietação: Colette Magny e José Afonso, Bob Dylan e Adriano Correia de Oliveira, Ottis Redding e Brassens.
E repetia:

Cantando é como se dissesse: estou aqui
na multidão que está dentro de mim.
(…)
Lá onde um homem tiver sede
levarás teus cântaros
lá onde um homem tiver fome
levarás teu pão

Lá onde a liberdade foi assassinada
os teus cavalos livres levarás,
e a espada refulgente
levarás teu sol, canção
Folha a folha desfolhada,
folha a folha renascida,
assim tu és canção:
viagem do homem para o homem.


Em Praça da Canção, Manuel Alegre capta o estrangulamento do espaço em que nos movíamos, desbravando, com o poder das palavras, as verdades que o Poder ocultava. Assumia, assim, o papel de um aedo, enquanto revelador de notícias (eram as palavras escritas completando as palavras ditas na Voz da Liberdade – umas e outras chegadas do exílio) e também enquanto aglutinador de esperanças, condensando aspirações comuns.

Em cada sílaba um alqueire de esperança
Nesta Praça da Canção,
A Canção não fica no papel


- Não podia ficar no papel.

E este verso dá-me a oportunidade para ultrapassar o tempo da evocação, naturalmente pretérito, para impor o tempo da análise, necessariamente presente, até porque a poesia necessária é aquela que responde e corresponde ao tempo da leitura pancrónica. E o que é certo é que os poemas desta obra referenciam uma realidade que reconhecemos não só pelo que de imperecível aí é captado mas também pela apreensão de uma síntese periódica que remonta aos trovadores primitivos e que se estende aos modelos quinhentistas – e Camões é uma obsidiante presença no fundo mítico e forma versificatória.
Deste modo se impõe o compromisso do poeta com o povo:
Sou metade camponês e metade marinheiroe se repõe a noção da urgente libertação.
Povo de terra pequena e de mar vasto, vai-se o português fragmentando sem remissão. A mesquinhez dos tiranos, contudo, não tolhe a grandura da alma do povo. E há um poeta que ergue a voz para denunciar a iniquidade e a traição aos valores arquétipos, com palavras espantosas de verdades polícromas e sons variados de encanto remexido. Assim restitui a dignidade apetecida:

Eu nunca pude suportar a rejeição.

3.
O Canto e as Armas prolonga esse compromisso: a emigração, o exílio e a guerra colonial são os temas fulcrais, mas emerge, como postulado, a figura de Ulisses:

Eu que fundei Lisboa e ando a perdê-la em cada
viagem. (Pátria-Penélope bordando à espera).
Eu que já fui Ulisses. (Aí do Lusíada:
roubam-lhe Lisboa e a primavera).


Com efeito, este segundo livro de Manuel Alegre, absorvendo a distância e a errância, revoltamente consagra uma voz de aedo que canta o nostos, regresso confiante, e esclarece sobre o poder beligerante dos poemas e elucida sobre o exorcismo do medo:

Cantai esta canção que me ditou
a pena de Garrett e de Camões
que é preciso cantar, cantar, cantar.
E, de canções armados, desarmou
quem nunca teve espadas nem canções.


Por outro lado, os mitos sebásticos envolvem o purgatório e a desgraça.

Quantos desastres dentro dum desastre!
Alcácer Quibir foi sempre
o meu passado dentro do presente,
Ó meu país que nunca te encontraste.


Contra a assunção do fatalismo ergue-se um canto anunciando a liberdade como essência da portugalidade:

Não falo (com V grande) da Verdade
nem venho anunciar qualquer religião:
falo de liberdade
ao alcance da mão.


Mas Ulisses é a instância primordial na urdidura poética, que vai prolongar-se por esse extraordinário texto de lirismo e de funcionalidade teatral que é Um barco para Ítaca. Aqui, a tensão entre o poder e a opressão, o antagonismo entre o amor e o ódio, a oposição entre a inexorabilidade do trágico e a apropriação do risco por um destino próprio – condensam a postura de um poeta que, à semelhança dos pedagogos (no sentido etimológico do vocábulo) esclarece sobre as aspirações do povo:

Grande é a glória, ó meus amigos,
grande é a glória de quem ousa
as coisas nunca ousadas.
(…)
Grande é a glória de quem ousa
desobedecer.


Há que referir, ainda, que, na instituição dos símbolos, se intromete, insinuantemente, a profecia. De facto, a racionalidade, a urgência combativa, a utilização dos poemas como armas, não obsta a que, inextricáveis e embutidos, surjam prenúncios que hão-de confirmar-se como anúncios:

Já disse: planto espadas
e transformo destinos.
E para isso
basta-me tocar os sinos
que cada homem tem no coração.


Ao desenhar os contornos do País de Abril, ao proclamar a flor vermelha como emblema da libertação, ao determinar a madrugada como tempo da revolta, Manuel Alegre estabelece o conluio entre a materialidade do texto e a intuição poética, neste caso – profética:

País de Abril tem estranhas sentinelas.
Todavia seus ventos ensinam aos homens
que não se pode proibir os homens de viver


4.
Com a pátria restituída (ou restituído à Pátria) debate-se agora o Poeta com uma outra dimensão de finitude. Absorvendo a epidérmica rondura do planeta, descobre, portuguesmente, a impossibilidade de confinar-se aos limites de um rectângulo que empareda. Donde, a metade de marinheiro assoma e apropria-se do poder de, com novidade, dizer o deslumbramento do mundo. A Nova do Achamento é a recriação da carta de Pero Vaz de Caminha, mas é sobretudo o reencontro com os traços sinuosos de uma cartografia que é desenhada em quadras e sextilhas de fluência popular e em epopaicos decassílabos.
Esta orientação de navegante alastra por Atlântico, onde avulta a noção de um tempo português.
Na primeira parte desta obra define-se um tempo cronológico, preciosamente datado e localizado, por exemplo:

em Abril de setenta e um, oito da tarde,
no Hospital de Cochin.


Todavia, esta delimitação é apenas uma referência falaciosa, dado que há, outrossim, um tempo português, decimalizado, sim, mas em sílabas de verso. Com efeito, o tempo canónico é eclesial e cenobita.
Condensando o tempo, fundindo o Chronos numa dimensão de pancronia e de universalidade, reúnem-se Damião de Góis e Nuno de Bragança, o Infante D. Henrique e Carlos Paredes, Viriato e Miguel Torga, Fernão Mendes Pinto e um Tio-trisavô decapitado durante as lutas liberais, D. Pedro de Alfarrobeira e Oliveira Martins, Ulisses e D. Sebastião.
O Português, deste modo, é do mundo inteiro: peregrino contumaz, não pode, por conseguinte, caber na geografia da tristeza da Europa, toda ela solidão, grandes chuvas, grandes ventos, grandes putas.
Uma outra peregrinação, então, é narrada, com laivos de fatalidade, onde se pressente a acção de um Destino: a epopeia... e a tragédia do Português Errante, juntas em onze sonetos que intercalam os dez – camonianamente dez – cantos de Atlântico.
Por isso, num país de poetas de mar, no futuro (hipótese da certeza) o que haverá é mar.
E, em Aicha Conticha, eivado de referências sebásticas, o tempo privilegiado é o futuro – futuro de crença no mar.

Ainda há mar
Ainda há naus para a abstracção,
Matemática dos astros e dos ventos,
Navegação do mito e seu teorema.
Ainda há mar.
Ao menos no poema.


Porque no mar se espera o inesperado. Pelo menos, na geografia do poeta, porque o mar é consubstancial a um modo de entender, portuguesmente, o mundo onde as ilhas definem, como assinala Eduardo Lourenço, um território e realidade singular no espaço de raiz e invenção portuguesas, a que os séculos, a distância e os homens imprimiram uma realidade particular.

5.
Por isso, na nota de encerramento ao Livro dos Açores, Manuel Alegre esclarece:
Os poemas deste livro têm um denominador comum: Açores. E quem diz Açores diz mar. Tanto mar.Alguns poemas são repescados de um outro cujo título é Pico, celebrando a ilha da imponente montanha, se bem que o autor considere que, pela ordenação, se trate de um livro novo e inédito sob certos aspectos. Ora, como já referi, em Atlântico, a viagem ousada e aventureira consagra a lapidar enunciação de Vergílio Ferreira Da minha língua ouve-se o mar e recorro, de novo, a Eduardo Lourenço: a poesia de Alegre é uma longa viagem entre os recifes, as ilhas encantadas, os arquipélagos da fábula poética que nós chamamos Homero, Camões, Dante, Pessoa, Ezra Pound ou do mais familiar convívio da sua alma errante, Torga e Sophia.É, pois, no mar atlântico, bem no meio do oceano que liga o velho ao novo mundo, que emergem as ilhas de tanto mar, reformulando aquilo a que Raul Brandão, em traços impressionistas, chamou As Ilhas Desconhecidas, e onde Vitorino Nemésio empreendeu um corso literário. Ora, é a síntese de todos os legados – mitos, fábulas, sentimentos, sonhos, imagens – que Manuel Alegre capta com um apurado labor oficinal e com um sentido rítmico que aproxima estes poemas da primeva musicalidade lírica.
Começa o Livro dos Açores por uma incursão histórica, traçada ab initio, com Gonçalo Velho Cabral, o mais fácil e suposto descobridor das ilhas, a que se seguem Quatro Sonetos de Miguel Corte-Real, o imaginado descobridor do continente americano - nem um nem outro certificados pela História. Contudo, a fábula é mais capciosa do que a realidade e Alegre prefere essa realidade poética mais aliciante do que as provas da verdade-verdadinha:
…eu que sou Gonçalo Velho
Vivendo a glória extrema de chegar
Às tuas ilhas que direi de amores.

Propositivamente, eu vou, já-já, chegar a elas, como se fora um enamoramento por uma mulher – a mulher (ilha) que não há começa em ti.
E Miguel Corte-Real trata a ilha (ainda desconhecida) tal como o trovador Macias, O namorado, ainda como uma amada inatingível:
(…)
Eu não sabia o que era o mar.
Sei agora este amor: teu corpo azul
Sobre o lençol dos dias. Partirei
Para o teu continente ó minha Atlântida.
(…)
Sei agora este amor de novo mundo.

Prossegue com o mito do Cavaleiro do Corvo - certificado por Damião de Góis, que, apesar de esclarecido humanista, mantinha a sua faceta de poeta - aquele que tinha um dedo apontando à descoberta da terras novas:
Só um dedo que já era antes de o ser
Só um dedo apontando a ocidente.
O poema seguinte considero o texto charneira de toda esta elaboração poética. Vale pela simplicidade e contenção, mas a sua leitura é poliédrica e cativante. Poderia, com vantagem, substituir a arrevesada letra do Hino dos Açores, porque resume e sintetiza o deslumbramento do caos que gera a beleza. Sem mais comentários:

Atlântico até onde chega o olhar.
E o resto é lava
E flores.

Não há palavra com tanto mar
Como a palavra
Açores.


A II parte do Livro dos Açores é dedicada ao Pico, a ilha mágica. Percorre as nervuras do texto a compleição xamânica, profética, druídica do Poeta. Assinale-se a presença del duende de Lorca: para buscar el duende não há mapa nem exercício, a fim de que se seja consumado o cativante entendimento do público com os versos recitados pelo povo. É, assim, que surgem a linguagem do peixe, o recado do golfinho, a fala da baleia, o grito da gaivota, o ritmo inicial e iniciático do poema, a batida do mar, o basalto, a música da lava, o vulcão, o incenso, a criptoméria, a batida do vento, a batida da terra, a exclamação, o cântico, o vento, a espuma, a cagarra, um deus desconhecido, o dragoeiro, o cedro, a azálea, o fogo subterrâneo, a teoria das brumas, o teorema da ilha por achar, sinais, mistérios, rumores, ritmos, ritos, o triângulo mágico,… e as sílabas.. e uma palavra sem fim, e as metáforas, e a magia, e o dizer e o não dizer, e o escrito e não escrito, e um não sei quê e o verso por escrever

Sílaba a sílaba até ao poema que está escrito
Lá em cima no Pico sobre a ilha.
(…)
E
(…) um verso a pulsar que de repente
Se descobre no Pico e é o deus da ilha.
(…)
E uma ilha a nascer dentro de mim,
(Porque)
(…)Haverá sempre um mais além
Mas hoje é aqui.


Por isso, e em consequência do formulado, Manuel Alegre pode contradizer Raul Brandão, que decantou As Ilhas Desconhecidas, escrevendo o Primeiro Poema de São Caetano:
(…)
O melhor de uma ilha
É a ilha ausente
Aquela que talvez
Sequer exista.
E é a que vês


Este é o Primeiro Poema de São Caetano, povoação virada a Sul da ilha do Pico. E, no Segundo Poema de São Caetano, clarifica:
Este é o sítio onde se pode ler
O livro inicial para sempre perdido.
Em São Caetano o mar é o próprio ser
E seu mistério o único sentido.

Na última parte do Livro dos Açores, Manuel Alegre reconhece que é o
Atlântico minha pátria
E que Antero de Quental é o motivo, a causa, o efeito, a razão, a consequência do homem das ilhas, ou melhor, dos homens que intentam conhecer as ilhas, ou melhor, dos homens que, sendo ilhas, tentam achar respostas – para um tudo – na Poesia:

Como dizer agora de outro modo
O que desde o princípio já foi dito?
O finito o infinito a parte o todo
Amor eternidade morte. E o grito

De quem pela primeira vez olhou
Dentro de si o abismo do universo
E aos quatro ventos repetiu: Quem sou?
Sem nunca achar resposta em nenhum verso.


Manuel Alegre é – afirmo-o categoricamente – um poeta dos Açores, um açoriano que não cabe na geografia da tristeza e que escreveu no mar estes poemas por onde perpassa uma aura de magia que capta o maravilhoso do achamento do coração latejante das ilhas atlânticas.

Coimbra, Fevereiro/Março de 2010
Vasco Pereira da Costa

Nota do editor: Este texto foi proferido no 13º Colóquio da Lusofonia em Abril/2010, Santa Catarina, Brasil.

Sem comentários: