terça-feira, 10 de agosto de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
XVII

-Olha e se queres que te diga, mais uma vez eu fico espantada contigo.
-Mas seja, eu compreendo que estas ideias lhe possam parecer um tanto ou quanto confusas, mas podemos sempre fazer um esforço. Ora nós podemos dizer, se quiser, podemos aceitar que Ele continua a causa prima, digamos assim, o princípio de tudo. Como é evidente, não será isso que aqui está em causa. Mas aquilo que nós podemos observar é que uma vez espoletada a Criação, isto é, uma vez posto em marcha, salvo seja a expressão, o Universo, uma vez criado o Universo Ele permanece de fora, não direi ausente, mas de fora, sem ter que interferir no resultado dessa Sua criação. Quer dizer que a partir daí, o Universo se regula pelas suas próprias leis, sem que Ele tenha que ter aí o mais pequeno papel. Ora no que a nós diz respeito e nas devidas proporções, é claro, também aí se trata exactamente da mesma coisa. Mais uma vez se verifica que Ele não tem que interferir nos assuntos dos Homens. Aliás, até me parece que será melhor dizer que Ele não interfere nos assuntos dos homens. Isso é connosco e é para isso que precisamente temos o dom do livre arbítrio, não será assim? De outra maneira não teríamos como explicar a Shoa, permaneceríamos eternamente naquela dúvida dolorosa, onde estava ele nesse momento? A mesma dúvida que seguramente levou Simon Wisenthal e aqui, quanto a mim, justamente pelo que disse, com razão, a dizer que a liberdade não é uma dádiva divina. Isto é um desvio, mas pessoalmente, depois de ter lido essa frase, em termos sociais, é claro, até deixei de dizer que a liberdade é uma dádiva divina, pois ela é, com efeito, uma conquista dos seres humanos e bem dolorosa, deve dizer-se. Mas se admitíssemos que Ele interfere nos assuntos dos homens, então como justificar a Shoa? Por aquele velho ditado do Deus escreve direito por linhas tortas? Convenhamos que isso não tem qualquer cabimento. Deus é infinitamente justo e também digo que é infinitamente bom, mesmo tendo em conta a objecção que um Peter Singer, por exemplo, coloca a esta última ideia.
-Quem é esse que eu não conheço?
-Minha cara amiga, não podemos pretender querer conhecer tudo, não é verdade?
-Sim, mas não sei de que reserva é que ele está a falar, pois não conheço esse tal de Peter Singer.



-O Peter Singer é um filósofo que trabalha nos Estados Unidos. Tem desenvolvido um importante trabalho em torno da ética da vida. Vale a pena ler, acreditem. É muito claro e tem ideias muito pouco habituais mas que nos forçam a reflectirmos em torno do mais profundo da humanidade. Contudo não é por isso que aqui o referi e tão só por uma objecção que ele coloca à ideia da bondade infinita de Deus, em torno da qual chama a atenção para aquilo que ele chama de uma armadilha em que caiem aqueles que a sustentam e, obviamente, entre os quais me incluo. Mas para aquilo que no caso aqui nos interessa, o problema está nessa armadilha que ele destaca e que, para ser sincero, ainda não sei como resolver, para falar com toda a franqueza, nem sei mesmo se a poderei alguma vez resolver. Apesar disso e até lá continuo a considerar essa ideia e por isso aqui a tomei para aquilo que pretendia dizer.
Mas seja como for, nessa dimensão de que falei, da infinita justiça e bondade de Deus, ficaria então sempre em aberto a pergunta de como poderia então Ele ter, eu não digo possibilitado, mas antes permitido a Catástrofe?
-Mas não disse qual era a objecção que o filósofo que referiu colocou a essa ideia da bondade de Deus.
-É um reparo muitíssimo simples que eu de facto ainda não vi como o possa resolver. Por acaso até tenho a coisa mais ou menos clara na memória, pois acabei de ler um dos livros dele, precisamente aquele em que chama a atenção para esse pormenor. A coisa é mais ou menos assim: pergunta o que se poderá querer dizer com a ideia de que Deus é infinitamente bom. E contra-argumenta com uma outra pergunta, se queremos então dizer que Deus é aprovado por Deus?
-É uma observação pertinente, não tenhamos qualquer dúvida sobre isso.
-Sim, é uma observação bastante pertinente. Mas para ser sincero não sei se não envolverá um qualquer truque intelectual.
-Truque intelectual?
-Não me estou a exprimir bem. Quero dizer se essa observação não passa de um simples… Nem sei que palavra usar. Truísmo?
(…)
-Mas a verdade é que não sei como resolver o problema, se bem que me deixe a sensação de truque, está a entender?
-Sim, parece-me que entendo onde quer chegar.
-Um sofisma, parece-me a palavra indicada. Pergunto-me se essa observação não envolverá um qualquer sofisma, mas, como disse, não sei responder, sinceramente não sei responder.
-Eu estava ouvir-te falar e fico siderada, fico com os queixos no peito, acredita. Tenho que confessar que fico verdadeiramente espantada contigo. Eu acho que jamais me iria passar pela cabeça que tu fosses uma pessoa religiosa. Creio que posso aplicar aqui este termo ou será exagerado dizer isso?
-Não, não é exagero dizeres isso.

(continua)

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

No início parecia que se estava a falar do Presidente da República, ou mesmo do Procurador - Rainha de Inglaterra, ao dizer, que se regula pelas suas próprias leis, sem que ele tenha que ter aí o mais pequeno papel.
:)
Ele (com E maiúsculo), agora, nunca interfere nos assuntos dos homens, mas há dois milénios atrás, a acreditar no que lemos, interferia dia sim dia não, e nem sempre pelos melhores motivos...
:(
A Shoa seria uma boa razão para Ele se mostrar, mas...

...um pai, que vê o seu filho morrer com um tiro ou pelo efeito colateral de uma bomba, tem todo o direito de exigir uma intervenção, pois, se para Ele são todos iguais, para o pai o seu filho é mais igual que os outros...

E, agora, a grande questão: Todos estamos ligados pelos mais diversos laços. Cada um de nós é capaz de encontrar uma boa razão para intervir, num dado momento, num dado contexto. Todos a cumprirem a lei do olho por olho, não ficaríamos todos cegos?

Aquele abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Viva, Tó

Mais uma vez deixarei que sejam as personagens a dizerem o que têm para dizer a respeito da primeira parte do teu comentário. Continuo convicto que terão palavras mais sábias que as minhas e, em todo o caso, a óptica será sempre a deles que pode ou não, em algum(ns) (do(s)) caso(s), coincidir com a minha, mas essa, para aqui, pouco importa.

Quanto ao resto e sintetizo-o no "(...) Todos a cumprirem a lei do olho por olho, não ficaríamos todos cegos?", a minha resposta é afirmativa.
É justamente para isso que temos o livre arbítrio que nos permite escolher, para mim, justamente os valores que nos façam interiorizar o princípio de procurarmos viver sem fazer mal a ninguém, ainda que a realidade seja mais complexa que uma linearidade dessas aparentemente pode comportar. São esses os limites da civilização que temos por boa, a nossa consciência, aquela perante a qual sempre responderemos, a única em que se pode alicerçar um mundo em que se procure evitar a maldade -muito complexa esta ideia e requerente de ampla e detalhada discussão- e, bem vistas as coisas, aquela em que poderemos compreender, antes de tudo sentir e então depois compreender que, afinal, é em nós que Ele vive e se manifesta e por isso somos nós que O poderemos reconhecer e escolher, sendo nós que sendo Ele em cada um, deveremos agir na procura da elevação ao Seu nível, com isso reconhecendo no outro um irmão e vivendo com ele na convicção de não o querer ofender, seja de que maneira for. A maldade é eminentemente humana e é uma opção inteiramente humana evitá-la ou, se quisermos, evitar de a ela recorrer.

Observações certeiras, as que tu fazes, mesmo aquelas que eu deixo para os dialogantes do conto a resposta. Há horas de conversa para fazer a respeito das mesmas, provavelmente noutra oportunidade.

Aquele abraço,

Luís