quinta-feira, 5 de agosto de 2010

A Anunciação


Uma noite, das poucas em que consigo dormir, tive um sonho arrebatador. Mas, ao contrário da maior parte dos sonhos em que as imagens, situações e episódios entre pessoas que nunca se conheceram entre si, embora conhecidas do sonhador, passam pela nossa mente em catadupas, livres da filtragem e da crítica exercidas pela nossa consciência, como peças de teatro ou de cinema que tenham lugar em simultâneo no mesmo palco ou estúdio em que o protagonista é sempre a pessoa que sonha, cujos desfechos são não poucas vezes, senão totalmente impossíveis, pelo menos fortemente improváveis, essa capacidade de arrebatamento deve-se ao facto de numa espécie de “Anunciação” por uma entidade que não consegui identificar se mortal ou não, se homem ou mulher, mas que, por analogia com os mais conhecidos episódios bíblicos, poderei chamar de anjo ou anja, pois não vislumbrei as suas partes pudibundas e mesmo que as conseguisse vislumbrar, confesso que não teria certezas, pois características de ambos os sexos lhe reconheci, entidade essa que me revelou o Grande Segredo encerrado em mim, que andei tantos anos a tentar descobrir, em vão, pois o dito estava num lugar demasiado profundo. Foi a primeira vez em que, ao acordar do sonho, não disse para mim mesmo “mas que sonho mais disparatado!” Pelo contrário, não acordei sobressaltado nem transpirado, mas com a tranquilidade e a luz pura e cristalina de um lago nos Picos da Europa.
“Chegou a altura de saberes”, disse-me o anjo (ou a anja, nunca o saberei…) “que foste escolhido pelo Criador como ferramenta que Ele usará na transformação do comportamento da raça humana. Transportas uma nova versão para teste, do síndroma do Rei Midas – aqueles em quem tocares, não se transformarão em ouro, mas as expectativas que criares aos outros acerca do teu carácter e capacidade de amá-los, depressa se tornarão para eles em grandes desilusões que lhes trarão sofrimento e os farão odiar-te. Tudo o que fizeres para os tentar convencer de que, contrariamente ao que possam eles pensar, continuas a amá-los e tudo farás para o seu bem, será interpretado como uma obsessão constante e repetitiva de lhes causares cada vez mais sofrimento. É o teu Destino e não poderás nunca fugir-lhe por muito que tentes, pois o Omnipotente e Omnipresente assim o determinou, sendo a Sua vontade soberana e irrevogável! No entanto, não viverás assim “ad aeternum”. A Humanidade anda confusa e perdida, de costas voltadas para si própria, o que tira o sono ao Criador, que de há muito tomou consciência da imperfeição da Sua obra ((e vou confidenciar-te uma coisa, oxalá não me arrependa, mas parece-me que o mereces; no entanto, se um dia Ele me perguntar se te o disse, jurarei a pés juntos que é mentira, não te esqueças! É que Ele andou a ler uns textos desse tal que tanto aprecias, Saramago. E, na minha opinião, embora Ele o não admita (e ai de mim se Ele sabe o que te estou a dizer agora), nunca mais foi o mesmo desde esse dia – a recuperação da Humanidade tornou-se uma obsessão para Ele, se o termo “Obsessão” se poderá aplicar ao Criador e espero não estar a dizer uma heresia)). No entanto, o dia chegará em que os que te rodeiam compreenderão o mal que fizeram, a ti e, inerentemente a si próprios e os teus dias de Paz chegarão. Tu simplesmente irás acelerar esse processo.”
“Mas porquê eu?”, perguntei.
“Chamaste a atenção d’Ele, quando vestiste a pele do Diabo, mostraste a todos despudoradamente os teus defeitos, os teus erros, as tuas falhas de carácter, as más acções, assumindo-as sem vergonha e com algum ar de desafio. Pintaste-te de Diabo mau (salvo o pleonasmo, pois todos sabemos que os diabos são maus) para protegeres o que há de bom em ti e enganaste toda a gente, menos, claro o Criador. Pior, chamaste a sua atenção, o que o levou a escolher-te, pois Ele, melhor que ninguém, sabe que o Diabo não é tão mau como o pintam. E, quando o pintam assim, querem esconder alguma coisa. Querendo camuflar-te, tornaste-te exactamente o alvo mais fácil.”

Finalmente, fez-se Luz…

Raul Costa
Alhos Vedros, 5 de Agosto de 2010

2 comentários:

luis santos disse...

Parabéns. Este texto, na minha modesta opinião, podia exactamente ter sido escrito pelo José Saramago, o português prémio Nobel da Literatura.

A responsabilidade é grande, meu caro.

Grande Abraço Grande.

António Dinis Lopes disse...

Ora, conhecendo eu o personagem, parece-me que de diabo pouco tem. Diabo, a havê-lo, julga-se sem defeitos, maior adorador do Criador, senhor da interpretação Bíblica, e constrói igrejas e faz procissões, e recebe dinheiro por gastar o latim em casadorias, bauptismos, e enterramentos. É que, salvo melhor opinião e jurisdemência, Diabo que se crê diabo é Santo. Diabo que se crê santo é demoníaco.