-Bem, eu devo confessar que o seu pensamento é algo sofisticado para aquilo que tenho estado habituado a ouvir a respeito do que o meu amigo está a falar. Essa relação que estabelece entre a liberdade, a possibilidade de errarmos e a nossa filiação divina, se assim posso falar, essa relação não é vulgar no discurso comum com que as pessoas estão acostumadas a abordar estes temas. Pessoalmente vejo-me forçado a confessar que nunca antes tinha ouvido falar disso e a mim, como é fácil de ver, nunca me tinha ocorrido tal coisa.
-Mas o senhor repare. Façamos a pergunta que me parece ser crucial: o que é que pode ter levado um homem como o Simon Wisenthal a afirmar que a liberdade não é uma dádiva divina? Eu tenho para mim que esta pergunta é fundamental. É que afinal ele era judeu e como tal foi educado no contexto dessa cultura e muito naturalmente de acordo com os princípios religiosos do judaísmo. Tenha presente que a ideia da responsabilidade individual perante Deus é um ângulo central dessa cultura religiosa. Ora isso não é nada mais nada menos que a admissão dessa mesma natureza de se nascer livre, livre de escolher o caminho de Deus, entende? Fundamentalmente é isso que é essa liberdade que podemos dizer que constitui uma dádiva divina e foi pois neste caldo cultural que Simon Wisenthal foi educado, digamos assim. Ele era judeu, naturalmente por nascimento, uma vez que era filho de judeus, de mulher judia, não é? Mas, como agora por vezes se diz, ele era também judeu de cultura. É pois um judeu de cultura que afirma peremptoriamente que a liberdade não é uma dádiva divina. Ora quanto a mim ele só disse isso porque, tal como muitos outros judeus, perante o indizível que foi a Shoa, vacilou dentro da concepção antiga que pretendia que Deus interfere nos assuntos dos homens e nessa condição, muitos foram aqueles que se perguntaram onde estava Ele naqueles momentos inenarráveis em que pessoas como você e eu derramaram o Zyklon B para dentro das câmaras da morte. Sejamos justos para aceitarmos a naturalidade de uma tal reacção. Mas sejamos justos também para verificarmos que, exactamente como disse, todo esse crime hediondo que para mim pôs à prova a própria natureza da humanidade, todo esse crime hediondo foi concebido e perpetrado por homens comuns, tal como qualquer um de nós.
-Bem, já não lhe vou perguntar porque é que Deus não interveio para colocar um ponto final a um tão grande e insuportável sofrimento, porque o meu caro amigo já explicou que entende que Ele não tem qualquer interferência, para usas as suas palavras, nos assuntos dos homens. Mas a sua amiga deixou escapar uma pequena nota a seu respeito que me deixa um tanto ou quanto intrigado. Digamos que agora sou eu que fiquei intrigado.
-Ao que se refere?
-Ao facto de a sua amiga ter dito que você é um homem de ciência, coisa que, ouvindo-o falar, muito me admira.
-E porquê, pode saber-se?
-Se me permite, faço-lhe uma pergunta.
-Venha ela.
-Eu pergunto, não estou a afirmar, até porque, como disse, não tenho experiência de pensar a este respeito.
-Mas qual é a pergunta?
-Então a visão do mundo que a ciência constrói não é incompatível com uma visão religiosa do mundo? Se quer que lhe diga, parece-me até que este reparo está implícito na observação que a sua amiga expressou. Não será assim?
-Sim, devo concordar que de certa maneira me admira como é que uma pessoa de ciência conjuga as suas ideias com uma visão religiosa do mundo, muito embora saiba que existem muitos cientistas cristãos e que vivem de acordo com isso, por exemplo.
-E seguramente de outras religiões também, não é?
-O quê?
-Cientistas cristão e de outras religiões…
-Ah sim, certamente que sim, embora eu fale mais do cristianismo porque é a única religião que conheço. Mas digo-o com toda a sinceridade, no teu caso e já nos conhecemos há um bom número de anos, no teu caso espanta-me o facto de nunca te ter ouvido falar Dele. Não te imaginaria uma pessoa religiosa. Aliás, em termos de visão do mundo, se assim podemos falar, sempre pensei que tu até tivesses apenas uma visão materialista, científica, digamos assim. Nunca te imaginei capaz de reflectir nos ternos em que estás agora aqui a fazer.
-Mas é o que te disse. Eu devo ser uma verdadeira caixinha de surpresas. Mas a verdade é que tenho para mim e tu também já o devias ter percebido, desculpa-me o reparo, mas tenho para mim que não existe qualquer incompatibilidade entre essas duas vertentes do conhecimento e, portanto, também não vejo qualquer contradição em que uma pessoa de ciência, como dizes, seja, ao mesmo tempo, não só uma pessoa religiosa como ainda viva de acordo com os princípios da sua religião. Não há qualquer incompatibilidade entre esses dois universos, salvo seja aqui a expressão.
-Eu também não acho que haja, se bem que, na qualidade de leiga em termos científicos, tenha alguma dificuldade em entender essa realidade e, obviamente, ainda mais em explicá-la, coisa que, devo dizer, jamais tentei ou tentarei.
-Sem querer estar aqui a fazer o papel do advogado do diabo, pergunto-lhe se, de facto, não haverá. Apesar de já ter falado a esse respeito, continuo com a dúvida a respeito se a ciência, por exemplo, não nos faz a prova de que Deus, esse Deus no sentido em que ambos estão a falar, pergunto-me se a ciência não prova que esse Deus pura e simplesmente não existe.
-Não, de todo. A ciência não faz qualquer prova disso. Na minha opinião, nem tem que o fazer. A ciência trata da matéria, das leis da matéria. Trata-se de compreender como é, como funciona o universo físico em que vivemos e já sabemos que Deus não tem que se manifestar no mesmo; logo, a ciência não tem fazer ou deixar de fazer prova da existência de Deus, essa, e isto ressalvando se é de prova que podemos estar a falar, essa resulta da imanência da Fé. Portanto não podemos colocar o problema dessa maneira em que o meu caro amigo o coloca. Mas digo-lhe mais. Pessoalmente acho que essa ideia que o senhor apresenta deriva especialmente do positivismo do século dezanove que basicamente pretendia que a ciência, se então ainda não o fazia, poderia um dia vir a explicar tudo. Os positivistas estavam convictos de tudo poderia um dia vir a ser entendido e explicado pelo desenvolvimento científico e como as ciências físicas, por exemplo, iam paulatinamente fazendo recuar o papel e a importância de Deus no decorrer dos fenómenos do Universo que, manifestamente, cada vez mais se mostrava ser regulado pelas suas próprias leis da matéria, então foi ganhando forma e força a ideia de que Deus pura e simplesmente não está em lado algum e daí a concluir que O mesmo não existe, foi um passo mais ou menos lógico e quase que imediato. Foi precisamente daí que derivou a ideia da morte de Deus que trouxe a orfandade do Homem de que falou Nietzsche e que este resolveu justamente com a sua teoria do super-homem.
-E seja como for, desculpa interromper-te, mas tal como tu disseste ainda há pouco, a ciência também não tem como provar que Deus não existe. E apesar de ser uma leiga no assunto, até me parece que o explicaste muito bem.
-Mas é mais que isso, repara… A ciência não tem que se imiscuir nessa matéria; a ciência não se aplica ao estudo da Fé e a prova de Deus, volto a ressalvar se assim se pode falar, a prova de Deus resulta da Fé. Ora como é que poderemos aplicar os métodos científicos ao estudo da Fé? Não podemos. Não podemos fazer experiências, não podemos fazer a corroboração empírica dos dados, não podemos fazer previsões… Enfim, nem a ciência se tem que aplicar à procura da prova de Deus porque essa resulta de um fenómeno que a mesma não pode abordar e não o pode fazer porque as suas metodologias para tanto não são, nem têm que ser adequadas. Mas até me parece que nem é preciso chegar a tanto, se quiserem, dito de outra forma, podemos muito bem, compreender a coisa de outra maneira, por uma outra via.
-Como, então?
(continua)
Sem comentários:
Enviar um comentário