terça-feira, 17 de agosto de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
XVIII

Conversas de pássaros em passeio, aqui e ali descansando no parapeito superior ou na agitação dos deltas de verde que, do chão, partem em busca daquele.

-Mas se queres que te diga, honestamente não seria capaz de te imaginar tão versado nestas matérias. Acredita que fico espantada contigo. Afinal tu és um homem de ciência, não é assim? Não errarei se disser que é isso que te caracteriza, pois não.
-Num certo sentido não, sobretudo se nos atermos àquilo que eu faço, não, não estarás a cometer nenhum erro.
-Pois, é esse o teu trabalho, não é? E a tua formação também é essa, aliás como até nem poderia deixar de ser. Pois bem, é por isso que eu nunca imaginaria que serias capaz de reflectir a este nível e, como é mais que evidente, muito menos da maneira como o estás a fazer e com o conhecimento que mostras possuir. Volto a dizer, honestamente, acho isso incrível e é isso que me impressiona. E mesmo sem conhecer o Peter Singer que referes e sem estar a esmiuçar aquilo que disseste quanto à crítica que ele fez, apesar disso tudo, tenho para mim que isso que dizes da Sua infinita justiça e bondade faz todo o sentido.
-Mas olha que ele complica o problema e tem uma tese muito perturbante que eventualmente pode colocar em causa essa verificação, chamemos-lhe assim.
-Que diz ele?
-Defende a tese que a vida humana não tem toda o mesmo valor. Fazemo-nos humanos pela consciência e o exercício da mesma. A vida sem consciência não tem valor algum.
-Pois, isso dessacraliza a vida.
-Tal e qual e é por isso que é perturbante. Como é, então a vida não é sagrada?
-Sim, para vocês que se disseram pessoas de Fé da maneira como o afirmaram e explicaram, isso deve ser, no mínimo, estranho, não é?
-A verdade é que devo admitir que os argumentos que ele apresenta são consistentes. É claro que eu ainda não reflecti aprofundadamente sobre os mesmos. Mas digamos que à primeira vista consigo encontrar um corpo de pensamento sólido que coloca o primado da vida num outro patamar mas igualmente satisfatório no que diz respeito a resultados positivos para a Humanidade. À partida pode parecer que essa dessacralização da vida humana abre ou pode abrir as portas a toda uma série de abusos; o indizível já aconteceu, não? Pois bem, pode suscitar que assim é, mas ele apresenta o complemento de uma ética que justamente coloca o primado na vida consciente e ainda acaba por lhe atribuir a condição de inalienável que afinal atribuímos a toda a vida humana pelo princípio da santidade da vida. Ele sustenta que há características universais eticamente relevantes a começar justamente pela consciência, mas também a capacidade de inter-agir com os outros e a preferência por uma vida agradável. Quer dizer que não podemos, segundo o seu ponto de vista, equiparar a vida de um ser humano na plenitude da sua consciência com um paciente em estado vegetativo, por exemplo.
-Isso é bastante delicado.
-Pois é e se de facto partimos do princípio que a vida é sagrada, ambas têm o mesmo valor, quer dizer, o ser em estado vegetativo continua a ser humano.
-Pois é aí que começam as minhas dúvidas, como deves calcular. E o problema é que fico perplexo com alguns desenvolvimentos da ideia.
-Como assim?
-Fico, por exemplo, a pensar se a não sacralização da vida não acabará por estar mais de acordo com a observação de que Deus não interfere na vida humana. Mas como seria então? Ora é aqui que não sou capaz de avançar, pelo menos por enquanto e por isso ainda permaneço na ideia da aceitação da sacralização da vida. Mas tenho que confessar que o Peter Singer dá muitíssimo que pensar a este nível. E sinceramente não estou a ver como possa resolver os problemas que ele coloca, pelo menos a pensar sozinho.
-Sim, são questões perturbantes. Mas não podemos fugir a elas se se nos colocam, temos que as enfrentar. Não há alternativa. De qualquer forma mantenho aquilo que disse sobre fazer todo o sentido o que falaste sobre a Sua infinita justiça e bondade.


-É precisamente aí que eu tive que ponderar a tal frase do Simon Wisenthal que tanto me deu que pensar, devo dizer. É que em termos sociais ele tem toda a razão, não há como negá-lo. A liberdade não é uma dádiva divina, antes se trata de uma conquista dos homens. A esse nível nem sei mesmo se se poderá sustentar que os homens não nascem livres. Afinal, aquilo que se verifica é que eles são ou não capazes de se fazerem homens livres e de se manterem ou não nessa condição. Aliás, pela nossa própria natureza biológica, nós até nascemos obrigatoriamente dependentes de terceiros, quer para a nossa própria sobrevivência, quer e sobretudo aqui para o que nos interessa, em termos de aprendermos aquilo que é necessário para essa mesma sobrevivência e nesse sentido não sei se de facto poderemos argumentar que os seres humanos nascem livres, o que seria o suficiente para podermos dizer que, em termos sociais, a liberdade não é uma dádiva divina. Mas em termos pessoais e é aí que se pode verificar a materialização ou não da liberdade e só em termos pessoais, eu continuaria a dizer que a liberdade é esse dom que Deus nos deu e que à partida, isto é, à nascença, está presente em todos os seres humanos. Ora e é precisamente daí, dessa ideia da Sua infinita justiça e bondade que poderemos fazer decorrer a liberdade, por outras palavras, é daí que deriva a liberdade, a nossa liberdade individual, não a liberdade social.
-Explique lá essa diferença que estabelece entre uma e a outra.
-Eu estabeleço essa diferença, para usar as suas palavras, mas serve em termos de comunicação para nos entendermos, eu estabeleço essa diferença na medida em que até um escravo, no seu íntimo, poderia permanecer um homem livre. É afinal a melhor lição que poderemos reter do Primo Lévi, no “Se Isto É Um Homem”. Até mesmo no contexto do indizível, um homem poderia permanecer espiritualmente livre e íntegro. É certo que o escravo estaria completamente impedido de tomar decisões quanto ao que, por exemplo, poderia querer fazer no dia seguinte. Mas é verdade que ele poderia sempre escolher um determinado ideal e, pelo menos no domínio dos sonhos, viver em função disso.
-A liberdade de sonhar, isso é um tanto ou quanto dejá vu, não?
-Se o senhor quiser ver a coisa sob esse prisma. Mas a verdade é que pelo menos espiritualmente sempre permaneceremos livres de escolher as ideias que mais nos agradem.
-Sim, concordo com isso.
-Pois é por isso que poderemos então dizer que ao nível do indivíduo, se bem que possa não o ser em termos sociais, a liberdade é uma dádiva divina, decorre da infinita justiça e da infinita bondade de Deus que, por o ser, nos deixou com essa simples propriedade que decorre da nossa natureza que é a liberdade de errarmos. É a angústia de que falou Kirkegaard. Aquilo que ele diz que é a possibilidade sempre presente de podermos optar pelo caminho do bem ou pelo caminho do mal. Deus não interfere nos assuntos dos homens para que sejam estes a usufruírem da liberdade de O encontrarem ou não.
-E olha que há aí uma coisa engraçada.
-O quê?
-É que dessa mesma maneira resolves a afirmação do senhor Wisenthal.
-Como?
-É que precisamente pelo facto de Deus não interferir nos assuntos dos homens é que a liberdade, como tu dizes, em termos sociais, não se trata de uma dádiva divina, não se poderia tratar disso, pois dessa forma Deus estaria a interferir nos assuntos humanos. É por isso que a esse nível a liberdade não é uma dádiva divina e tem que ser, forçosamente, uma conquista dos homens.
-Bem observado, sem dúvida.

(continua)

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