terça-feira, 3 de agosto de 2010

HÁ PINTASSILGOS NO MEU QUINTAL
XVI

O marejar das trepadeiras. Uma folha ressequida bocejando um rastejo sobre as rugas dos plátanos de calcário.

-Mas deixa-me dizer que a observação que tu fizeste é bastante pertinente. Vejo-me mesmo forçado a dizer que para mim não deixa de ser curioso que as pessoas que mais insistem naquilo que podemos definir como uma ideia primitiva de Deus sejam, precisamente, aqueles que, de algum modo, O negam. Dito de outra maneira e parece-me que esta observação vem a propósito depois daquilo que disseste, na grande maioria dos casos ou, se quisermos, aquilo que é o mais vulgar vermos acontecer é que aqueles que mais acerrimamente negam a realidade de Deus têm, normalmente, uma ideia muito primitiva de Deus. Ora isto não deixa de ser bastante curioso, não é?
-Ideia primitiva de Deus? O meu amigo vai ter a bondade de nos explicar isso.
-Sim, podemos dizer que a ideia que está subjacente ao espanto que o meu caro amigo expressou, isto é demasiadamente perfeito para que não possa haver uma qualquer entidade, uma qualquer força –o senhor até se referiu especificamente a uma qualquer energia, não foi?
-Sim, disse isso.
-Pois essa ideia de que isto é demasiadamente perfeito para que não possa haver uma qualquer entidade, seja ou não uma energia, por detrás disto tudo, essa maneira de colocar o problema está contida na visão de Spinoza a respeito do Deus Natureza; em certa medida é mais ou menos a ideia do Deus relojoeiro do século dezoito. Convenhamos que isso, nos dias de hoje, com todos os conhecimentos que temos, não faz lá grande sentido, para não dizer que não faz sentido algum. Ora…
-Mas então Deus depende da interpretação que vamos fazendo dele com o decorrer e o sentido dos tempos? Parece-me um tanto ou quanto descabido, mas não tenho problema em admitir que possa não estar a perceber onde quer chegar.


-Obviamente que não foi isso que eu quis dizer e ao mesmo tempo não me parece que possamos tirar essa ilação das minhas palavras. O que eu quero dizer é que a maneira como nós temos concebido Deus essa é que tem vindo a evoluir ao longo dos tempos e isto é uma verificação de facto, não se trata de nada no domínio da opinião. Nós podemos observar isso mesmo se nos debruçarmos mesmo que superficialmente sobre a própria história religiosa, basta esta, nem temos que considerar minuciosamente a evolução do pensamento religioso a esse nível. Pois bem, à medida que os seres humanos vão adquirindo mais conhecimento e aqui o mais tem validade em termos quantitativos propriamente ditos mas também em termos qualitativos, portanto, à medida que os seres humanos vão aprofundando os seus conhecimentos a respeito da Natureza e da vida, assim eles vão evoluindo na própria concepção que conseguem estabelecer a respeito de Deus. Deus, esse, como é fácil de ver, permanece o mesmo, o que se vai modificando e não há, como vimos, nada de estranho que assim seja, o que se vai modificando, dizia, é a concepção que vamos formulando a Seu respeito. Veja bem, no fundo, se quisermos, até poderemos dizer que Ele é uma criação dos seres humanos.
-Sim, num certo sentido sim, ainda que Ele exista independentemente dos homens. Mas se tivermos em consideração que os seres humanos para O reconhecerem, até mesmo para se Lhe entregarem têm que o nomear, então nesse sentido e quanto a mim só nesse sentido poderemos dizer que Ele é uma criação dos homens. De outra maneira isso não passará de uma heresia de todo o tamanho, para não dizer até uma simples blasfémia.
-Calma, minha querida, calma lá com isso. É claro que era nesse sentido em que eu estava a falar, como poderia ser de outro jeito? Mas o que eu estava a tentar dizer é que essa ideia que se tem que pretende que Deus se intromete nos assuntos dos homens, isto é, nos assuntos deste mundo, essa ideia é, de algum modo, uma ideia primitiva de Deus. Essa era a forma como O viam os nossos mais remotos antepassados, desde que houve a Revelação de Abraão. E a verdade é que se reflectirmos em profundidade, o que sucede no mundo dos homens nada tem a ver com Ele que nada tem a ver com os assuntos deste mundo.
-Ó meu caro amigo, agora sou eu que fico completamente às escuras. Desculpe-me lá estar a cortar-lhe o fio do pensamento mas fico na dúvida. Então como é que é? Agora você vem dizer que Deus nada tem a ver com isto? Mas em que ficamos? Então nesse caso o que seria Deus? Então o amigo não diz que ele é o Criador? Afinal de contas não é nisso que todos os crentes acreditam?
-Eu compreendo que lhe seja um tanto difícil perceber esta construção de pensamento, se, como suspeito que é o seu caso, não tem grande educação religiosa, não está habituado e portanto treinado e reflectir nestes termos, compreendo que lhe seja difícil colocar-se nestes parâmetros de pensamento e que até lhe pareça aqui e ali que as ideias que tenho exposto sejam um tanto ou quanto contraditórias. Quanto a mim acho natural que assim seja e volto a salvaguardar que aqui não há o menor laivo de proselitismo.
-Já sabemos isso. E de facto, tal como diz, não tenho essa experiência do conhecimento religioso.

(continua)

2 comentários:

A.Tapadinhas disse...

...aqueles que mais acerrimamente negam a realidade de Deus têm, normalmente, uma ideia muito primitiva de Deus.

A evolução do conceito de Deus vai sendo feita adaptando-se ao aumento do conhecimento científico. Será alguma vez tão grande que prove ou elimine a existência de Deus?

No entanto, nem sempre o conhecimento científico é uma boa razão para se estar mais próximo de (ou da existência de), Deus.

Os portugueses por saberem tanto, recusaram dar barcos a Colombo para descobrir o caminho marítimo para a Índia, navegando para Oeste. Sabiam que nenhum navio conseguiria cobrir essa distância, cerca de 19.000 quilómetros. Os espanhóis, que precisavam de vencer os portugueses, deram-lhe o que ele queria e, com uma sorte inacreditável, depois de navegar 5.000 km, descobriu outro continente. Colombo morreu convencido que tinha chegado à Ásia.

O saber, algumas vezes, ocupa lugar, quer dizer, não nos deixa ver o mais evidente: um continente logo ali ou um deus...

Abraço,
António

Luís F. de A. Gomes disse...

Tiro o chapéu ao teu comentário e curvo-me perante o mesmo. Diz o essencial com pouco e isso é obra.

E começas por uma pergunta inteligente, a de o conhecimento que os saberes científicos nos proporcionam eventualmente vir a provar ou eliminar a existência de Deus. É uma interrogação crucial pois coloca-nos perante uma dualidade que no dizer comum mutuamente se exclui mas que por si nos remete logo a essência da questão. E quanto a mim a resposta é negativa antes de tudo porque não tem que o fazer. Mais não fosse pelo que dizes por fim, é que Ele não resulta e muito menos se poderia conter no conhecimento que dele pudessemos fazer, antes Se revela nessa luz interior em que nos sentimos caminhar pelo Seu apelo. Algo mais do género do essencial que não está no que os olhos vêem, como poeticamente nos disse Saint-Éxupery.
Mas continuamos a invadir a sabedoria das personagens que, insisto, são destas matérias muito mais sábias que eu e por isso deixo que sejam elas a dizer.

Colombo, Colombo, esse rosto esconso que a História colocou no cerne de um antes e depois, tem a grande curiosidade de ser o único grande herói que quase ganhou a dimensão de um herói cultural, como se dizia na Antropologia de antanho, o mesmo é dizer um ser verdadeiramente mitológico.

Está de pé a teoria de um Professor norte-americano que o apresenta como português, de gema e a mais alta nobreza -na verdade, o homem saberia muito para um simplório genovês que por naufrágio tivesse chegado a Portugal- e parte de uma conspiração de El Rei D. João II, por quem o homem do leme desobedeceu ao Gigante Adamastor.
É um livro interessantíssimo de se ler e apesar de o rigor académico não se reconhecer em tal procedimento de escrever a História, não deixa de nos colocar perante questões muito interessantes de se saber e conversar a respeito das mesmas. Enfim, malhas que o império teceu.

E assim deixo aquele abraço,

Luís