quinta-feira, 11 de julho de 2024

Epaminondas Costalima


EU NUNCA ESTIVE AQUI...

 Para Agostinho da Silva

Ah Portugal!
Ninguém neste mundo agora sabe
em que dias remotos
um Vaz, um Nunes,
um Ribeiro, um Rosa
um Silva, um Costa Lima
deixaram a casa avoenga
e partiram 
para nunca mais.

Ninguém!
Nem mesmo os que, como eu,
seus velhor nomes portam
e ainda conservam
na alquimia do sangue
um certo contigente
do que lhes foi legado
originariamente.

Ah esses fantasmas ancestrais
insistem
em açular extintas
memórias.
Quem, senão eles,
de onde estão comandam 
esta vontade de rever
o nunca dantes visto
e de reviver
o que não foi jamais
por mim
vivido?

Assim, já não sei, Portugal
se sou eu que venho a ti
ou eles que regressam
disfarçados
dentro de mim.

Alguns por certo
cantaram enternecidos
suas próprias canções.

Daí,
este apelo do sangue
que antecede
as histórias ouvidas
na infância.
...velhos castelos
princesas e fadas
madrastas cruéis
inocentes órfãs
as incríveis perfídias
da Moura Torta.
E o herói
(ou o destino?)
aparecendo afinal
quando o bem
invariavelmente
triunfava sobre o mal.

E é deles também
o apelo que revive
impressões obscuras
- Trovas de amor ingênuo
Cantigas de Amigo -
das primeiras leituras. 

Ah esses fantasmas ancestrais
blasonam
seu grande destemor nas caravelas.
Daí, talvez,
este apelo do sangue
que se junta à lembrança mais funda
da epopéia lusíada.
Os versos de Camões
outrora declamados
agora compreendidos
quando piso, reverente,
as lájeas dos Jerónimos
onde repousam o Gama,
e o Vate,
e reis e infantes.
Onde um sepulcro jaz
vazio
à espera de um rei
que partiu
para nunca mais.

Ah Portugal!
Dói de tão intensa
a emoção que me envolve
nesta hora
ao percorrer 
em lentos passos
os enormes salões,
os corredores,
os terraços
de teus museus,
de teus palácios.

Silencioso, assisto
o desfilar de séculos
de tua longa história,
enquanto à minha volta
esses fantasmas ancestrais
comentam
que viveram, sofreram,
pelejaram
neste ou naquele episódio.

Acompanham-me, depois,
ao Terreiro do Paço,
à Torre de Belém,
ao Tejo!
que ainda é formoso
e é meu também.

E seguem-me
pelas ruas de Alfama
onde, inesperadamente,
tal como vieram
no ar se desvanecem.

De novo só,
no entanto ilhado
pelas lembranças
que ficaram em mim
do ler, do ouvir dizer.
Versos, romances,
lugares... A Baixa,
o Chiado, o Rossio...

Ah Portugal!
De tão familiares
não me surpreenderia
se visse agora
o vulto esguio de Eça
saindo da Havanesa;
ou, em um café anônimo,
Fernando Pessoa solitário
a meditar
ninguém sabe com qual
de seus heterônimos.

Ah Portugal!
Estas confusas emoções
recebe-as
com paciência e com bondade
que eu nunca estive aqui
e vim matar saudade.

Lisboa, Maio/81



A fotografia é do editor


terça-feira, 9 de julho de 2024

O FIRMAMENTO É NEGRO E NÃO AZUL

por Luís Santos

António Cândido Franco recebeu no passado 4 de julho, Dia da Cidade, o Prémio de Literatura Biográfica atribuídp pela Associação Portuguesa de Escritores e a Câmara Municipal de Coimbra, com biografia do escritor Luiz Pacheco intitulada " Firmamento é Negro e Não Azul".

Aqui fica uma insinuante e preciosa pintura a óleo em platex sobre o biografado, de Jaime Duro, 2023.

Assinale-se que o escritor Cândido Franco tem outras biografias no seu pecúlio, de Agostinho da Silva (O Estranhíssimo Colosso), Mário Cesariny (O Triângulo Mágico) e Literatura de Teixeira de Pascoaes, entre uma obra literária muito referenciada e que já vai longa.



sábado, 29 de junho de 2024

"Love my Job!" - Crónicas Escolares

 

UMA FITA DE CETIM


1 sonho ou 1 desejo para realizar nos próximos 5 anos - escrevê-lo num papel, dobrá-lo e colocá-lo no frasco de vidro. Depois, atar uma fita de cetim no aro de metal enquanto pensa nesse sonho ou desejo.

Enquanto escreviam o sonhado, o desejado, fiquei a contemplar os rostos, os gestos, a suspensão (de algumas), a determinação (de outras). Antes de guardar o sonho, o desejo no frasco algumas selaram-no com um beijinho. (Que graça!) Cada qual prendia a sua fita ao seu jeito: nós em número par, nó e laço refeito com persistência, com convicção, com delicadeza.

- Professora, pensar num sonho é o primeiro passo para concretizá-lo.
E é. Já Teixeira de Pascoaes anunciava: "A ideia de água antecede todas as fontes".

Pedurei-os ali, por instantes, para serem brindados pelo vento. Daqui por cinco anos abrimos o frasco, juntas.

Love my job!

Gina Cláudia Lemos
Escola Superior de Educação
Instituto Politécnico de Setúbal

P.S.: O texto é acompanhado por breve vídeo que pode ser visto clicando AQUI

sábado, 22 de junho de 2024

DO DIÁRIO DE VIDA DE RAUL ITURRA

 

A MÃE, UMA GARANTIA DE COMPORTAMENTO ÉTICO



Sempre pensei, Querido Diário, que a mãe era a mulher que nos gestava, dava à luz, criava e eventualmente ensinava. 

No lar onde resido ouvi a conversa da minha colega utente que fala com sua irmã, que só ela vê, a quem dizia:

  • Ó irmã, estou farta do comportamento da nossa amiga que sabes, porque rouba-me o marido e o dinheiro que tenho na carteira,

A irmã que ela imagina responde:

  • Como sabes que ela se deita com o teu marido?,

  • Porque os vi beijarem-se e abraçarem-se o outro dia,

  • Tens andado a espreitar?

  • Tenho!

  • Mas que coisa, isto não se faz, assim não recuperas o amor do teu homem,

  • Talvez não, mas tomo cuidado de que a mãe não saiba,

  • A mãe não sabe?,

  • Pois não!

Diz a minha colega utente em diálogo que ela reproduz do seu passado, que só ela conhece:

  • Enquanto a mãe não saiba está tudo bem porque não quero levar uma rebocada dela. Não quero que me diga outra vez “Ó rapariga, este homem não presta..”

  • Será que ela disse que não presta porque te faz sofrer?

  • Eu já não sei, irmã, se presta ou não, apenas não quero que a mãe saiba…


Eu fiquei perplexo como a minha amiga utente, que fala com a irmã, que se importa mais da opinião da mãe do que do comportamento do seu marido com a sua amiga. Até onde eu entendo seria mais provável dar mais importância ao relacionamento do casal, do que a conduta que mantém com a sua  mãe que um dia acabou, especialmente quando a filha se tornou mãe e a mãe avó. 

Esse respeito pela opinião da mãe o tenho também observado nas visitas quotidianas de uma imensa filharada, adulta e casada, de outra utente que não sai da sua cadeira de rodas; um dia vêm dois, outro dia três, a seguir uma filha só e assim sucessivamente ao longo das semanas. Todos eles  beijam-na, abraçam a mãe e às vezes dão-lhe o lanche como mostra de carinho, choram quando ela está perdida ou mal de saúde. Perguntam com ansiedade como tem sido o dia dela. Querem saber o que come, o que conversa, o que ela comenta. Têm-me dito que essa mãe foi quem organizou a vida deles todos até casarem e saírem de casa. Eles agradecem a entrega dessa mãe hoje em cadeira de rodas que não teve um minuto de sossego na sua dezena de gravidezes ao longo de 20 anos. Não é apenas dedicação mas é a orientação amorosa e emotiva que ela lhes deu ao longo do seu crescimento, período no qual essa mãe incutiu um comportamento religioso que ela cultivava em casa: terço em família, missa aos domingos, catequese e outros rituais religiosos com que a igreja católica ao qual eles pertencem os formou. 

Um comportamento que eu também vivi e não entendi porque nesse tempo os ritos eram numa língua desconhecida, uma língua morta que se denomina latim. Uma língua conservada no ritual católico para subjugar os membros da igreja que viviam no mistério dos motivos pelos quais os sacerdotes exigiam um determinado comportamento, especialmente na sexualidade e na emotividade.

          A Igreja Católica pensava que o entendimento da Bíblia, quer do antigo, quer do novo testamento, estava reservado ao clero que estudava e se preparava durante anos para espalhar a palavra de Deus e a liturgia que acompanhava o sermão. Que um secular entendesse estes textos, era heresia que bradava ao céu e que podia causar a condenação de quem não estava preparado para entender a palavra divina que sem preparação podia ser mal entendida. 

Eu não consigo esquecer os sermões que o missionário da terra em que nasci costumava dizer no sermão da tarde: “Em cima está o céu aberto, em baixo o inferno aberto também; entre o céu aberto e o inferno aberto, estamos nós suspenso por um fio que a morte pode cortar e  irmos cair no inferno ou subirmos ao céu. Porque é mais fácil cair do que se levantar”. E enquanto dizia isto brandia o crucifixo com um Jesus semi nu, morto. E ele dizia “será que este Cristo impede-nos de arder eternamente para nos levar a uma vida de alegria e tranquilidade?”. Não consigo esquecer o medo que a homilia me dava e admirando-me a preparação do sacerdote por incutir fé através do medo.

São estas ideias que a mãe da minha amiga que fala com a sua irmã, incutiu também na sua descendência. Eram também as ideias que a mãe hoje sentada na cadeira de rodas transmitia à sua filharada como me tem contado; eram também estas as ideias que a minha mãe me transmitia a mim porque nunca esqueço o dia em que me falou e me perguntou “Ó filho porquê tens tanta olheira”, “eu olheira minha mãe, não sabia”. “Tens, tens, teus olhos estão pretos por baixo das pálpebras, tens por acaso maus costumes?”. Eu sem saber o que eram maus costumes, por princípio de auto defesa respondi: “ não mãe, não tenho” e fiquei duvidoso de que seriam esses maus costumes. Corri e perguntei a um amigo meu da minha idade, os dois com 13 anos e contei-lhe a conversa e perguntei-lhe o que serão esses “ maus costumes”; Ele riu na sua liberdade de vida, filho como era de pais maçons e ateus,  “maus costumes, é o que a gente faz : bater punheta”, “Bater punheta, o que é isso?”, “É o que tu chamas de forma tão elegante masturbação”. “Ah.. então isso é um mau costume?” “ Pois é!” e riu… Eu fiquei espantado porque a mãe tinha me dito que um mau costume era um pecado que só um confessor podia perdoar em nome da divindade. A partir deste dia lutei violentamente por não me masturbar e passei a andar atrás de uma empregada jovem que havia em casa para me deitar com ela, porque não me tinha sido dito que foder fosse um mau costume. A partir dos meus 13 anos tentei libertar-me do julgamento moral sobre o meu comportamento sexual secreto, fugindo da masturbação procurando a cama duma rapariga sem sempre consegui-lo e voltando assim ao pecado... Nem me confessava sobre a minha vida sexual por temor que os sacerdotes amigos da mãe dessem a entender que eu devia ser vigiado na minha sexualidade e na emotividade.

          Deve ser assim como os filhos das minhas amigas utentes têm se relacionado com as suas mães sempre a pensar na salvação e na perdição entre o céu e o inferno. É assim que a minha amiga utente que fala com a sua irmã, que só ela vê, tem mais medo da crítica materna do que a da traição do marido com a sua amiga. É assim que a minha amiga utente em cadeira de rodas deve ter educado suas crianças para respeitar a castidade ensinada a partir do exemplo de Jesus, José e Maria que nunca tiveram experiência sexual ou emotiva como nos é transmitido pelos ditos assexuados e servos sacerdotes católicos que já não falem em latim mas ensinam os mistérios da vida, morte e ressurreição de Jesus e a subida ao céu em corpo e alma da sua mãe, a Virgem Maria, como dizem agora em língua natal para todos entendermos.

          Nunca pensei, querido diário, que as mães também fossem uma garantia de comportamento ético e social, ensinadas a serem assim pela catequese obrigatória da igreja católica; nunca pensei que era necessário dominar a multidão de fiéis na base da sua sexualidade e amor, como a clerecia é dominada. Nunca pensei nas lutas do Papa Roncaglio, João XXIII , que mandou o fim da missa em latim e ordenou a prática do ritual e a leitura da palavra divina em língua natal. Anos de luta fratricida entre cristãos: católicos contra protestantes, homens salvos contra hereges, que ele acabou duma penada. Mas não acabou com a subordinação do comportamento social e individual pela imitação do comportamento dos ícones santos, pessoas  que a igreja salienta como exemplos.

          Tudo isto pensei quando ouvi estas três mães, a minha e as minhas duas colegas utentes. São as garantes do comportamento ético que a doutrina religiosa prescreve. Apenas que a minha colega que fala com a irmã que só ela vê, acaba por dizer “Vai tudo à merda, não me importa esse marido, essa amiga é nojenta, o dinheiro que perdi o recuperei no trabalho, e só vou me importar dos meus filhos”; ou a mãe em cadeira de rodas começa a gritar de manhã cedo ”foda-se, caralho, deixem-me em paz, quero comer, calem a boca…” e outras ideias semelhantes, palavras que demonstram a sua libertação dos ensinamentos dogmáticos que ela, no entanto, já incutiu na sua filharada, acreditem eles ou não essa doutrina religiosa. Ou a minha mãe que no seu leito de morte me perguntav incessantemente: “Onde está o pai, onde está o pai, onde está o pai…”, sem se lembrar para nada da divindade…. Será que elas estão em pecado…?

          É uma pena, meu Querido Diário a sorte das mães  submetidas a uma imagem ética que passa a ser a estética da vida em comum, da solidariedade social. Que está no dogma desde que não prejudique a alegria de viver que reside na afetividade e no prazer sexual. É o que penso da vida através do meu convívio no lar.


Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith Antropóloga

Barra Mansa, Junho de 2024 


quarta-feira, 19 de junho de 2024

quarta-feira, 29 de maio de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra

 

História e Fantasia no Lar


Era me difícil meu querido diário, rejeitar o convite tão simpático, que me fez meu colega de quarto, esse antigo futebolista de 94 anos que, quando eu passava pelo corredor disse-me:

pssst, pssst…hei, Doutor ande cá, 

Eu perguntei que queria e ele disse-me: 

«queria convidá-lo para a matança do porco que vou fazer.» 

Eu agradeci e perguntei: 

«Quando e onde?»

E ele disse-me:

Agora cá na minha casa, vê!, aí tenho o porco na pocilga e já amarrado para o sacrificar. 

     -   Mas agora neste minuto?

     -   Venha-me e ajude-me a mata-lo!... Há.. 

Acrescentou:

…quando acabarmos o trabalho temos aí umas garotas para namorar, apalpar e foder.

Eu disse-lhe:

Mas olhe eu sou casado!

Então está bem, traga a sua mulher!

Eu acrescentei: 

mas eu namoro com ela é na minha casa!

Ele disse ainda:

Não interessa por esta vez namora com ela na minha casa enquanto eu fodo essa garota que está aí, ajude-me agora a empurrar este marrão para o sacrificar.

Eu parado no corredor do lar como estava e agachado para ouvir as suas palavras proferidas no sofá onde ele costuma passar o dia, levantei-me, bati nas costas dele e disse-lhe:

Muito obrigado meu amigo, mas não pode ser, já vamos jantar e não há tempo para tratar do porco! 

Virei-me e chamei uma funcionária e disse-lhe:

Ó menina, cá está este senhor com as fraldas e as calças molhadas de chichi e cheira-me que também tem cocó.

 A menina agradeceu, foi levantá-lo. Ele gritou:

- Não, não, não… que este animal foge, não o posso largar…

 

Esta história não é fantasia é a realidade que eu vivo no quotidiano da casa de repouso onde habito. Este senhor tem também o hábito e a fantasia de namorar as garotas que no seu imaginário andam perto dele, como aquela que imaginariamente, levou para a sua cama, agasalhou, beijou, apaparicou com palavras doces e ternurentas:

calma meu amor, abraça-me forte linda, abre as pernas …

E outra fantasias que não vou referir.

Ele de certeza reproduz o dia a dia da sua vida passada quando namorava, ele não está no lar, não está na cronologia social, está na história que ele organiza na base das suas vivências passadas e reminiscentes. 

Tal e qual essa senhora, meu querido diário, que um dia te contei estava sentado ao pé de mim na sala da televisão, mulher esta que quer sempre sair e voltar para a sua casa, o que não acontece, nem pode acontecer num lar de idosos.  Então fala para a sua irmã, já defunta, mas que no entanto ela vê no seu imaginário e que lhe diz:

Ó mana não abrem as portas, estão todas fechadas!

E ela torna a falar como se ela própria fosse esta irmã que lhe diz:

Calma, menina calma, já vão abrir.

Ela responde:

- Será como tu dizes?

Muda de papel passando a ser a irmã que a consola e diz:

Claro que sim, vamos já sair. 

Ou ainda essa mulher mãe de 11 filhos que me diz: 

    - Ó professor, ajude-me a levantar-me desta cadeira para ir descascar batatas que vou preparar para os meus filhos.

Eu respondo:

Amiga, seus filhos estão nas suas casas com as suas famílias, a senhora não tem que cozinhar para eles!

A senhora grita e chora:

- Ó professor não é assim, eles estão à minha espera, ande lá empurrar-me fora da cadeira…

 

Esta é a realidade com que se defrontam as famílias que visitam estes utentes e o quotidiano que o pessoal do lar tem que enfrentar para tratar destes adultos. Eles não estão aí, eles estão no sítio que as suas mentes lhes diz estarem. Eles estão no sítio que o seu imaginário retira da sua história de vida de antigamente. É por isso que quando falamos com eles e pronunciamos os nomes, eles não ouvem, porque como desta vez estão a encarnar o jovem namorado da garota ou a irmã que acalma.

Os funcionários não são ouvidos, não existem para estas mentes que moram noutra época histórica que não é a do minuto em que o funcionário fala com o utente. Os funcionários fartam-se de dizer: 

Anda cá… Anda cá

Mas o utente não ouve porque não está aí. O funcionário que fala não está na história de vida que o senhor ou a senhora estão a cismar neste minuto!

O funcionário não pode executar o seu trabalho de lavar, mudar fraldas, vestir pijamas, dar de comer, apaparicar eventualmente e deitar uma pessoa cuja mente não é a que o funcionário pensa que está a tratar. Normalmente a mulher que fala com a sua irmã não é ela que ouve é a irmã que responde, ela faz os dois papéis e o funcionário não sabe com quem está a falar. O meu colega de quarto que é em certos momentos um rapaz de 20 anos que namora uma garota não é o senhor que está na cama nem no quarto, mas no mato escondido a fornicar. É difícil para pessoas novas e dentro da história presente entender uma mentalidade que elabora em base de dados que a sua memória lhe fornece do seu passado. Um passado que só ele conhece e que o pessoal do lar não pode entender. 

Este é mais um elemento problemático em casa de repouso ou lar de idosos: não é o indivíduo que entra no lar trazido pela sua família que aí reside; é a constelação de vivências, ideias e sentimentos que a sua cabeça produz; é meu querido diário o que tenho observado dos três colegas de que estou a falar e outros que entram no presente histórico que na medida em que transcorre o tempo começam a elaborar uma fantasia,  que sustenta a base na qual vivem e à partir da qual se relaciona com colegas, utentes, com funcionários e com família.

Não é a doença ou a idade só que torna difícil a relação com o utente, é a elaboração fantástica quase mítica da história quotidiana. É por isso que as famílias comentam: «ele ou ela está tão mal!»

Eu diria meu senhor, minha senhora o vosso familiar não está mal, ele está noutra história.

Por favor parentes, vossos pais irmãos, avós não estão mal, estão numa história alternativa que vão criando para suportar a vida que lhe é fornecida pela interação com seres que vivem outra cronologia.

 

Professor Doutor Raúl Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto editado por Claire Smith, antropóloga.

Barra Mansa, 24 de Maio de 2024.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Crónicas Escolares: Sebastião da Gama

à Beatriz


BRINCADEIRA


Ando a correr atrás do Outro,
como fazem
dois meninos brincando num jardim…
 
            …até me achar, de repente,
            sem saber como, o Outro lá da frente,
            que vai fugindo de mim.
 
(Sebastião da Gama, Serra-Mãe, Edições Ática, 1996, p.82)



Sebastião da Gama, Azeitão

 Neste abril comemoramos 50 anos de Democracia e 100 anos do nascimento de SEBASTIÃO DA GAMA. Não será por acaso. Liberdade e Educação, de mãos dadas. Este nosso adorado Professor de Azeitão que tão cedo partiu, amante de alunos livres e de referenciada obra poética, com particular ligação à sua Serra da Arrábida, musa inspiradora. Nas suas idílicas flores e matas, grutas e praias, capelas e monges, no velho convento, contemplação de tão extraordinária natureza, inabalável fé. Já em meados do século passado Ele pedia a sua proteção, o que nem a delimitação do Parque Natural conseguiu afastar de forma aceitável, a exploração voraz do seu valioso solo rochoso. Até quando?... Mas, sem que se perca a esperança, como diz no poema “Fé”:


Falas – e és a Pastora.
Não contes a visão, nem as palavras
que a Senhora te disse: apenas fala.
Falas e em tudo creio. Até no Mundo.
És a Pastora, fala. Fala apenas.
 
Arrábida, 8 Dez. 1951
(Sebastião da Gama, Por Mim Fora. Porto: Officium Lectionis Edições, 2024, p.96.)


Ou, ainda nas suas palavras, em aprumada síntese que dá lema a cartaz das Comemorações do Centenário: "o segredo é amar".


Luís Carlos R. dos Santos
Alhos Vedros, 29 de abril

quarta-feira, 24 de abril de 2024

DO DIÁRIO DE VIDA DE RAUL ITURRA


SENTIMENTO DE CULPA 

O trabalho dos funcionários do lar e a interação funcionário - utente que dinamiza a actividade do lar, meu Querido Diário, tem-me ocupado a maior parte do tempo na minha meditação. É difícil entender essa interação pelo excesso de trabalho dos funcionários e a falta de entendimento de muitos dos utentes como já te tenho dito em capítulos prévios. 

O velhote que compartilha comigo o quarto que uso, a maior parte das noites baixa as fraldas que os seus noventa e quatro anos de idade lhe pedem e faz chichi desde a sua cama para o chão. Ao sentir o ruído dessa curva de urina nos mosaicos do chão, corri ao pé dele para impedir maior problema, mas ele já tinha mijado a fralda, as calças, os lençóis e as mantas antes do chichi cair no chão. Eu, triste pelo espectáculo e pela humidade da sua cama, às 23 horas da noite fui chamar uma funcionária de turno para mudar pijama e mantas. Ela limpou o chão com uma esfregona e disse que já voltava, saiu e nunca mais soube dela. Pensava eu, coitado do meu colega de quarto com frio, de certeza, por causa da humidade das suas coberturas. Era-me triste pensar que ele tivesse de dormir de forma tão pouco confortável, mas dormiu igual a noite toda. Senti raiva pela funcionária não lhe mudar as roupas molhadas com urina e falei no dia seguinte perguntando o porquê. A funcionária me disse que já não conseguia trabalhar mais, cansada como estava no seu labor desde as 9.30 da manhã; exausta estava. O meu colega de quarto nem sabia que estava molhado, a funcionária não conseguia fazer mais nada. Ela tinha tentado envergonhar o velhote mijão pelo seu comportamento sem higiene, e ele não percebeu. Ela lhe disse que Deus estava zangado pelo que tinha feito, mas, ele olhava para ela  e dizia “o quê, o quê, o quê…" e adormeceu. 

O jogo do lar é como o comportamento da igreja católica com os seus fiéis, é a procura do sentimento de culpa para submeter a pessoa a um obedecimento cego, uma manipulação para conseguir os objetivos de trabalho. Ou seja: lavar a pessoa, vestir a mesma,  encaminhá-la para o refeitório ou para a sala de convívio, alimentá-la ou distraí-la. É a ideia de pecado que todas as religiões trabalham e que existe já na mente de funcionários e utentes. Retiram do comportamento social, pelo pensamento mágico que as religiões incutem na mente de quem tem vivido submetido à vontade da divindade, um sentimento de culpa que submete a pessoa individual a um comportamento social adequado ao objetivo que o lar pretende para manter a vida do utente. 

No lar observo reiteradamente muita reprimenda do tipo mãe para filho, o que rebaixa a dignidade das pessoas como seres humanos, tratadas como entidades culpadas do pecado de desobediência a Deus, o pecado original dos cristãos, do qual devem fugir. A luta pelo poder está no seio da teoria cristã, uma luta constante dentro do lar em que o mandar está sempre na boca dos funcionários para retirar essa ideia de autonomia dos utentes. Normalmente as palavras são “ou comes ou vais para o hospital”, “ou não gritas ou vais para o quarto sem comer!”, “ou te comportas como deves ser ou vou dizer aos teus filhos”.

Os funcionários parecem pensar que é bom trabalhar com a culpa pelos resultados positivos que pode proporcionar. Eles pensam que assim todos vão obedecer pelo conceito de culpa usado que, até o velhote do meu quarto é capaz de entender quando está mais descansado. Fome e frio, cansaço e bem estar, ouvir e fazer, são os elementos dinâmicos para submeter o utente ao trabalho do funcionário. Parece-me estar a ouvir sempre “ai, ai, ai! o que vai dizer a tua filha quando saiba isto”, “por amor de Deus ou comes ou vais para o hospital!”, “ou para de gritar ou não há comida”. Para materializar estes objetivos de culpa - submissão, os funcionários contam com comprimidos receitados por quem trata da medicação do lar que, meu querido diário, eles colocam na boca do utente da mesma forma em que se empurra uma moeda num gira-discos de um espaço público para baixar o disco da música que se quer ouvir, ou como a moeda que se coloca na máquina de baloiçar um cavalo para as crianças se divertirem. Não há simpatia, não há carinho, não há cuidado, empurra-se o comprimido, dá-se um copo de água e grita-se “bebe, bebe”. O comprimido cai como a moeda na caixinha que espoleta o disco para tocar ou o cavalo para divertir, sem simpatia e sem doçura com um “ai, ai, ai!” eterno.

É evidente que tomar conta de velhos é um trabalho pesado, é evidente que o trabalho num lar é pouco estimado e cansa, mas quando no fim da vida um ser humano quer carinho, descanso, compreensão, carícias, beijos, o “ai, ai, ai!” e o “deve ser!” não devia ser usado. Essas pessoas precisam de carinho como o velhote do meu quarto que tem começado a gritar ao longo da noite “mãe, mãe, mãe... acuda-me, mãe vem!” e soluça, chora profundamente. Perante isso levanto-me, faço carinho e digo “a mãe já vem”, ele tranquiliza-se e dorme. Os funcionários cansados, super explorados, não conseguem gerir sentimentos para  apaparicar. Eles deitam a pessoa e saem a correr para ir buscar o próximo que tem que deitar. Há momentos em que relaxam e riem com simpatia estimulando a pessoa a rir também, mas pouco tempo têm para isso. 

Ó meu querido diário, sentimento de culpa tem sido o mais usado nas diversas estruturas religiosas que eu conheço. Hoje em dia estamos mais livres para diminuir o medo do inferno, já quase ninguém acredita nele, mas a história mostra-nos como até faz pouco as instituições chamadas igrejas e seus fiéis têm aderido ao medo que o pecado causa.

Medo infelizmente para estruturar o pensamento mágico que cria o comportamento entre funcionário e utente. O conceito de culpa funciona hoje em dia incutindo o medo do pecado por pessoas específicas que detêm o poder e agem de forma contrária aos nossos desejos ou doenças que vão matando pessoas por causa de vírus novos e que as religiões definem como a ira de Deus sobre uma humanidade pecadora. Isto é também como se manipula dentro do lar.

Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith Antropóloga

Barra Mansa, Abril de 2024 


sexta-feira, 19 de abril de 2024

“Graffitar a Literatura” (VIII)

 Luís Souta
(Texto e foto)

AMADA MORRISON 

«este é o tempo das mulheres na literatura»
(Fernanda Melchor, Ípsilon, 15/03/2024, p. 25) 

Cascais, Outeiro da Vela, Av. Engº António de Azevedo Coutinho] 

«Eu sou Amada e ela é minha. Sethe é aquela que apanhou as flores, flores amarelas, antes de ficarmos agachados. Colheu-as das plantas verdes. Elas estão na colcha onde dormimos. Ela ia sorrir para mim quando os homens sem pele vieram e nos levaram com os mortos para o sol e empurraram-nos para o mar. (…) Sethe é o rosto que encontrei e perdi na água debaixo da ponte. Quando entrei, vi o seu rosto vindo para mim, e era o meu rosto também. Quis juntar-me a ela. Tentei, mas ela subiu em pedaços de luz para o alto da água. Perdi-a de novo, mas encontrei a casa em que ela sussurrava para mim. E lá estava ela, sorrindo, finalmente. É bom, mas não posso perdê-la de novo. Tudo o que quero saber é porque é que ela entrou na água naquele lugar onde ficámos agachados. Porque é que fez isso mesmo na hora em que ia sorrir para mim? Quis juntar-me a ela no mar, mas não podia mexer-me; quis ajudá-la quando apanhava flores, mas as nuvens de pólvora cegaram-me e eu perdi-a. Três vezes e perdi-a (…) Agora encontrei-a nesta casa. Ela sorri para mim e é o meu próprio rosto sorrindo. Não a perderei de novo. Ela é minha.» (pp. 274-5)

Amada (Beloved) é o primeiro romance de uma trilogia que inclui Jazz (1992) e Paraíso (1997). O livro de Toni Morrison recebeu o Prémio Pulitzer (1988) tendo sido mais tarde adaptado, ao cinema, por Jonathan Demme (USA, 1998), com interpretações de Oprah Winfrey (Sethe), Danny Glover (Paul D.), Thandiwe Newton (Beloved)… Toni Morrison baseou-se na história real da ex-escrava Margaret Garner e da relação com filha que nasce durante a sua fuga de uma plantação do Kentucky.

A ilustração da capa, de uma das edições portuguesas, de Amada (Difusão Cultural, 1989) é da brasileira Glair Alonso Arruda. Vislumbro nela similitudes visuais com esta mulher do trabalho plástico de oats.ink na sua intervenção de street art em Cascais[1], que veio dar outro colorido e animação estética a duas paredes contíguas de um incaracterístico e anódino equipamento urbano da EDP. Uma mulher jovem, negra, de cabelo preto, curto, sobrancelhas grossas, lábios espessos, olhos cerrados. A outra (a da capa do livro) de olhos abertos. Podia ser a mesma pessoa, em dois momentos sequenciais. Mas em ambas, não se vislumbra qualquer alegria nos seus estados de alma. Mulheres sofridas? Muito provavelmente… A mulher que oats.ink desenhou e pintou podia muito bem ilustrar a capa de Amada. 

Ilustração da capa de Amada, Difusão Cultural, 1989]

A autora, a norte-americana Toni Morrison (de seu nome Chloe Anthony Wofford, 1931-2019), natural de Lorain estado de Ohio, e formada em Estudos Ingleses pelas Universidades de Howard, Washington e Cornell, NY (1949-1955). Foi editora (Random House[2]) e professora universitária em diversas universidades, acabando na Princeton (1989-2006); desde 1981 membro da Academia Americana das Artes. Foi a primeira escritora negra a receber o Prémio Nobel da Literatura (1993); a Academia sueca sublinhou então a sua «força visionária e relevância poética». A defesa intransigente da liberdade, da dignidade humana e da igualdade, num persistente combate ao racismo, colocaram-na como uma voz de referência na sociedade americana, muito em especial, entre a comunidade negra, emparceirando com James Baldwin (1924-1987), essa figura central do Movimento dos Direitos Civis que, com clarividência, assegurava: «A glorificação de uma raça em detrimento de outra – ou outras – tem sido e será sempre uma receita para o morticínio.»

A sua obra, muito baseada na experiência das mulheres afro-americanas, contribui de forma poderosa para a construção positiva dessa identidade negra. O então presidente Barack Obama condecorou-a, em 2012, com a Presidential Medal of Freedom (a mais alta condecoração civil dos EUA concedida pelo Presidente), considerando-a «um tesouro nacional».

Morrison publicou onze romances, entre os quais, O Olho mais Azul (1970), Sula (1973), Song of Solomon (1977), A Dádiva (2008), Voltar para Casa (2012), Deus Ajude a Criança (2015), seis livros de literatura infantil (com seu filho Slade Morrison), teatro e até o libreto de uma ópera – Margaret Garner (2015). Publicou diversos ensaios, num deles – A Origem dos Outros: seis ensaios sobre racismo e literatura (Companhia das Letras, 2019), as Palestras Norton da Universidade de Harvard, 2016 – desenvolve o conceito de «literature of belonging».

 «Eu não olho para a política ou para a ciência. Eu olho para a literatura em busca de orientação, e isso é o que vou fazer.» (Ípsilon, 18/03/2016, p. 16)

Amada é a magnum opus de Toni Morrison, romance que exige um leitor atento, activo, disponível para entender o encantamento desse imbricar da realidade com a magia.

«Na quinta, Lady Jones surpreendeu-a a espionar.

– Entra pela porta da frente, querida Denver. Aqui não é um parque de diversões.

Assim, Denver passara quase um ano inteiro na companhia dos seus pares e juntamente com eles aprendera a ler e a contar. Estava com sete anos e aquelas duas horas ao fim da tarde eram preciosas para ela. Mais ainda porque fora até lá sozinha e vira o prazer e a surpresa no rosto da mãe e dos irmãos ao contar-lhes a proeza. Por um níquel por mês, Lady Jones fazia aquilo que os brancos achavam desnecessário, senão ilegal: enchia a pequena sala de visitas com crianças negras que tinham tempo e interesse em aprender a ler. O níquel, que Denver levava atado num lenço e preso ao cinto para entregá-lo à professora, fazia-a sentir-se importante. Empolgava-se com o esforço em manusear correctamente o giz e evitar o guincho que ele poderia fazer na lousa. Adorava o W maiúsculo, o i pequenino, a beleza das letras no seu próprio nome, as frases da Bíblia cheias de lamento que Lady Jones usava como cartilha.» (pp. 132-3) 

Notas

1. Uma iniciativa da Wallmob, associação que procura «dinamizar a Arte Urbana do Concelho de Cascais.

2. Desafiou Angela Davis a escrever Uma Autobiografia (Antígona, 2023), quando esta tinha apenas 28 anos; editou-o em 1974 e sobre ela escreveu: «Angela é a mulher mais feroz que alguma vez conheci e eu venho de uma longa linhagem de mulheres ferozes.»

Em breve será publicado o livro A TRÍADE DISJUNTIVA: Literatura, Antropologia e Educação que reúne, na sua II parte, os 30 textos desta rubrica que aqui fui editando desde 07/09/2014.