domingo, 17 de março de 2024

Paulo Borges, curso online

 


E se tudo fosse uma Presença luminosa, sem princípio nem fim, aquilo a que uns chamam Buda, outros "Deus", outros "Tao", ouyros "Brahman" e outros o que não tem nome?

E se a tua essência, tal como a de tudo quanto existe, nada fosse senão esta mesma Presença infinita, consciente e amorosa, livre de nascimento e morte?

E se o que chamas “eu” não fosse senão a máscara desta Presença, que num sentido a manifesta e noutro a encobre?

E se toda a tua vida, bem como a vida do universo e de todos os seres, nada fosse senão a manifestação contínua desta Presença?

E se tudo o que experiencias, gratificante ou doloroso, não fossem senão oportunidades para reconheceres quem verdadeiramente és?

E se tudo o que mais procuras – liberdade, felicidade, conhecimento, amor, beleza, poder, riqueza, realização – não fossem senão qualidades desta Presença que é a verdade mais funda de ti e de tudo?

E se o sentido último e supremo da tua vida e do cosmos fosse descobrires e realizares isto, para assim ajudares os outros a cumprirem-se plenamente?

E se tudo isto fosse o Tesouro que és e ignoras, enquanto estiveres a dormir e sonhar que não és desde sempre a plenitude que procuras?

E se desde tempos imemoriais até hoje muitos seres humanos, mulheres e homens como tu, houvessem despertado e, movidos por amor e compaixão, tivessem deixado mensagens e instruções claras sobre como podes também despertar do sono e do esquecimento para a fruição da Preciosa Jóia em ti escondida?

sexta-feira, 15 de março de 2024

JOSÉ GIL

 "O homem, professor e amigo, mais apaixonado pelo Teatro que nós conhecemos"

encenador dramaturgista ator teatro artes do palco e de rua
de 1973-2024 teatro mundial

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Professor Adjunto de Teatro na empresa Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal durante muitos anos, agora jubilado, mas não por vontade própria.

quarta-feira, 6 de março de 2024

Textos Soltos

 Luís Santos

"De que árvore florida chega? Não sei. Mas é seu perfume."
(Matsuo Basho)



O ESTUDO GERAL, um pasquim digital que temos vindo a realizar, fez 14 anos. Ao longo destes anos muita e boa gente tem passeado por aqui. A tónica dominante tem sido a Língua Portuguesa, mas não exclusivamente. A última publicação foi do chileno Professor Catedrático Emérito Raul Angel Iturra, com quem temos tido gosto em aprender, já lá vão 40 anos. Um texto próprio de um sábio.
Muito mais se pode ver neste ESTUDO... Já este ano participaram autores como Firmino Pascoal (Projeto Musical Lindu Mona), Luís Souta (Literatura, o pão nosso de cada dia), Agostinho da Silva (a propósito dos 500 anos do nascimento de Luís de Camões), Luís Santos (editorial e fotografia) e, por último, Raul Iturra (Leitura em Voz Alta).
Fica também um apreciável, adorável, "photopoema de Kity Amaral, pintora brasileira, mineira, que muito estimamos.

Vou até lá, mas volto já. Um miradouro, uma paisagemm uma paz: que beleza de natureza, aquela que gosta de regressar. E, depois, um rio que dá num rio, num doce balançar que trás à memória proncesinha do mar. Um antigo estaleiro naval e a água escura que molha a areia branca. Abaeté. A chuva molhava-me o rosto. Bacalhau de molho. Fevereiro, Carnaval e Março. Alô, Alô, Ernestina aquele abraço. Mas náo é José que o Egito resplandece em plemo umbigo e o sinal que vejo é este, onde o cujo faz a curva, o cu do mundo esse nosso sítio. E para você que me esqueceu, aquele abraço. Aquela bahia já me deu régua e compasso, quando Jorge assentou praça na cavalaria e eu fiquei feliz, porque eu também sou da sua companhia. De Iaparica à cidade da Praia, uma cidade com dois nomes. Logo mais, mornas e coladeras.



HOJE ao pequeno-almoço estivemos muito bem acompanhados. Uma roda de amigos, foi o Pomar que se lembrou, vieram o Ricardo, o Álvaro, o Alberto e a Hoffélia, como se vê na foto. Mais do que uma teoria, uma mónada de verdade, uma congregação de espíritos simples que encontramos amiúde, e que já vêm desde o início, inacessíveis e incorruptíveis a tudo quanto existe, pois que existe por inteiro e é ela própria sem partes. Uma evolução e desenvolvimento até chegar ao intelecto. União perfeita de espírito e matéria. Um frequenta o mesmo hipermercado e é engenheiro, outro vive na mesma rua ajudante de telecomunicações, também um guardador de rebanhos, ela professora, o promotor do encontro é pintor. Um deles disse que "o Homem é do tamanho do seu sonho", ao que se aproveita a ocasião para perguntar, afinal quantos somos cada um, ó Fernando Pessoa?

Sentimos saudades daquele pequeno promontório do nosso familiar ROSÁRIO. Já não nos permitíamos aquela boa contemplação, fazia demasiado tempo. Um dia destes António Lobo Antunes há-de descrevê-lo por magistrais palavras. À beira do sítio onde mora, uma pequenina igreja que está perto de comemorar quinhentos anos. Portal manuelino, arco triunfal de volta perfeita do mesmo estilo e paínéis de azulejos azuis e brancos com cenas da Senhora com o Menino. Senhora que certamente lhe dá nome, tantas as voltas que foram dadas a desfiar as contas maiores e as contas menores... o Rosário.
Mas, desta vez, o que nos levou lá foi aquela boca da ponta da passadeira por onde, depois de kilómetros a fio, nos entras o Tejo. Por detrás, ponte 25 de Abril e Cristo-Rei, Almada e Lisboa, foz do rio feito um estuário que se despeja no Atlântico. Oceano que nos trás a água do rio misturada com o salgado vai-vém do mar. Movimentos de maré. E até o Coina que vem descendo da Arrábida e se enfia neste seu braço do Tejo, ali na crescente beleza do nosso Barreiro, ajuda à festa da dança prateada das águas que nos assistem. O resultado é esta baía de águas calmas, mar da palha, onde tantas vezes nos enfiámos da cabeça aos pés e nos vai ajudando a desfiar esta maravilhosa coisa rara e preciosa, do estar aqui.

Bem hajam.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

DO DIÁRIO DE VIDA DE RAUL ITURRA


Sobre o livro “Misericórdia” de Lídia Jorge


Em Janeiro passado fiz 83 anos, meu querido diário de vida. A minha filha mais nova veio visitar-me desde a nossa linda cidade de Cambridge, Inglaterra, e me ofereceu um William Boyle; três das minhas amigas almoçaram conosco e encheram-me de Ken Follets; a minha mulher, de forma mais concreta, ofereceu-me um Lídia Jorge, era o seu mais recente romance “Misericórdia” que me impactou profundamente. Ela contraria a lenda sobre os lares de idosos ao falar da vida da sua recente falecida mãe num lar da Misericórdia. Construiu uma teia de relações sociais entre a dona Alberti e as suas amigas do lar o que a ajudam a manter a sua mente activa. 

A sua personagem central, essa Dona Alberti, escreve tudo o que vê e faz no seu diário de vida e em notas de papel que guarda e esconde e que a romancista recolhe, lê e elabora. Há um mistérioso facto de uma morte de um velho que namora com outra idosa do lar e que falece no meio da noite no quarto desta mesma senhora. Eles namoravam, contrariando as histórias que existem da falta de sentimentos amorosos entre anciões. A romancista desmonta a ideia de que os adultos maiores não teriam libido, engano de muita  gente. As pessoas mesmo atacadas de senilidade como nos mostra Lídia Jorge, são capazes de estabelecer amizades, simpatias, empatias e amores secretos. Ela salienta o que a sua mãe diz no seu diário, a existência de uma luta incrível entre utentes do lar que vivem segundo a sua lógica senil bem primária que devia ser respeitada, ser tratada com dignidade e os funcionários que aí trabalham que a querem ignorar. Os anciões tem a sua vontade de viver e sua vontade de ser. O desejo de ser pessoa digna existe profundamente nos velhos como salienta Lídia Jorge ao longo do seu livro e como reparo no lar onde moro. Ela também desfaz o mito da alegria que é a vida numa casa de repouso em que tudo estaria feito à medida de proporcionar esta alegria entre os utentes aí residentes. 

Na realidade os funcionários agem como se os anciões fossem parasitas inadequados para vida em sociedade, pensem que de nada se lembram, pensam que não sentem frio, pensam que são entes sem objetivos de vida. Este livro parece ter sido feito à minha medida. 

Identifico-me em tudo o que Lídia Jorge diz fruto da minha experiência de oito longos anos da minha permanência numa chamada casa de repouso, cheia dos gritos dos trabalhadores e dos utentes, das raivas entre eles e do mau entendimento das suas lógicas. 

Também é possível observar como trabalham mais estrangeiros do que nacionais entre as paredes quer da Misericórdia do livro quer na casa de repouso onde eu moro. Estes imigrantes procuram seu primeiro emprego em Portugal mas quando conseguem uma alternativa, fogem do cansaço de mudar fraldas, vestir roupas limpas todos os dias, de lavar as mãos usadas para comer. Essa falta de urbanidade não desejada pelo anciões mas que deve ser tolerada por ser a lógica que reina na vida senil. Lógica estudada mas nunca estruturada para ser ensinada aos trabalhadores sobre o entendimento que devem ter os funcionários acerca do pensamento dos velhos nem para melhorar as suas condições de trabalho. Este livro é o emblema do que deve ser reformulado na atenção das pessoas idosas e das condições de trabalho dos funcionários e de vida dos utentes. Meu querido diário, mais tarde vou referir outros assuntos. O livro de que falo é “Misericórdia”, Lídia Jorge, Dom Quixote, 2022.


Professor Doutor Raúl Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto editado por Claire Smith, antropóloga.

Barra Mansa, 20 de Fevereiro de 2024.


domingo, 18 de fevereiro de 2024

"Literatura: o pão nosso de cada dia" (XXIII)

Luís Souta

 LITERATURA NO ENSINO

     «A ingente tarefa de ensinar literatura é a de dar a conhecer por meio da leitura 
o conteúdo e o sentido daquilo que chamamos existência humana» 
(Salvato Telles Menezes, Literatura, 1993:42)

No território escolar, a crise parece também instalar-se. “Acabar de vez com a literatura”[1] e “A literatura morre na escola?”[2] são títulos sugestivos de artigos que prenunciam um certo mal estar, ou pelo menos, o reconhecimento de um domínio que está longe da consensualidade. Tal foi evidente nos dois processos de revisão curricular do ensino secundário, entre 2001 e 2003. Em causa estava o fim da obrigatoriedade d’Os Lusíadas (no10º e 11º anos)[3] sendo a leitura (de excertos!) passada para o 12º, a substituição da disciplina de «Português» pela de «Língua Portuguesa» nos cursos gerais, e o entrincheirar da «Literatura Portuguesa» ao Curso Geral de Línguas e Literaturas[4]. Estas opções tinham como base três pressupostos, ainda que não explicitados: (i) a generalidade dos alunos termina o ensino básico sem o domínio da língua materna; (ii) uma certa desvalorização da literaturacomo propiciadora, por excelência, da formação linguística dos alunos; (iii) restringir a utilidade da literatura apenas àqueles que prosseguem estudos superiores nessa área; (iv) «o ensino se deve aproximar cada vez mais da preparação do estudante para o mundo do trabalho (o chamado mundo das realidades), libertando-o das disciplinas que representam o queaparentemente é inútil (as disciplinas de humanidades)»[5], ou «disciplinas simplesmente toleradas», como as classificava Rui Grácio (1959:122).

Muitos escritores contestaram esta revisão curricular[6] em que a literatura (que já era pouco importante) passava a marginal.

Manuel Gusmão

Manuel Gusmão (2003) alertava para o facto de o «ensino da língua materna, expurgada da sua literatura, reduz a língua a uma função veicular, empobrece-a e pode aproximar-se perigosamente das técnicas específicas do ensino de uma língua estrangeira.» Carlos Ceia chegava a considerar estas decisões curriculares com uma «sentença de morte que é passada ao património literário português» (2001:8), onde o ensino da língua e o ensino da literatura deviam em caso algum ser separados. Nesta mesma linha se posicionava a escritora e jornalista, Alexandra Lucas Coelho (2001) que, em artigo de opinião, considerava que «a rasura da literatura dos programas de língua portuguesa só fará menos pela leitura e pelo amor aos livros.»

Alexandra Lucas Coelho

Por sua vez, António Guerreiro (2003) sintetizava: «A separação entre língua e literatura prevista na proposta leva às últimas consequências uma concepção do estudo da língua materna que a reduz a uma dimensão meramente instrumental, e para a qual a literatura não passa de um empecilho.» Já uma outra voz, muito respeitada nos meios académicos, Vítor Aguiar e Silva (2001), ainda que defendendo, no essencial, as opções curriculares anunciadas pelo ME, sempre ia dizendo: «Sou dos que pensam que a componente literária dos programas devia ser mais densa e mais rica, porque é nos textos literários que as línguas históricas manifestam toda a sua riqueza, toda a sua criatividade, toda a sua beleza, e porque os textos literários, exactamente por serem construídos na língua e com a língua, proporcionam uma modelização e um conhecimento insubstituíveis do homem, da vida e do mundo». A literatura seria, deste modo, o veículo por excelência para a aquisição da «cidadania culta».

Claro que o debate assumiu muitas outras vertentes, onde se esgrimiram argumentos do mais variado teor: desde o tradicional corporativismo por quem toma as deliberações (linguistas vs culturalistas), às opções programáticas (abandono da orientação historicista do programa de literatura e “exclusão” dos clássicos[7]), às abordagens pedagógicas (muito centradas, ainda, em manuais escolares), às potencialidades de leituras complementares ao cânone das obras e autores obrigatórios e que as actividades extra-curriculares (agora designadas de «enriquecimento») podem possibilitar, à inevitável questão da formação dos professores e do perfil específico daqueles a quem cabe, o dever primeiro, de ensinar a língua e a literatura[8], até à falência da eficácia do ensino básico (incapaz de cumprir uma das suas finalidades centrais numa disciplina com um lugar charneira no currículo).

Esta última merece algum desenvolvimento: o Português, a par com a Matemática, tem vindo a ganhar um lugar de destaque no currículo, sendo agora evidente a hierarquização disciplinar. O que até aqui não passava de um currículo oculto – em que as práticas concretas nos estabelecimentos de ensino revelavam a existência de disciplinas de 1ª e de 2ª – é agora, de forma inequívoca, assumido como currículo oficial. Essas duas mega-disciplinas têm presença em todos os anos de escolaridade, com uma alta carga horária, e foram até há pouco as únicas a serem testadas a nível nacional, quer através das «provas de aferição» (no 4º e 6º anos) quer dos exames reintroduzidos (no 9ª ano). Acresce ainda que desde a Lei de Bases do Sistema Educativo (1986)[9] e que agora se reforçou com as «formaçõestransdisciplinares»[10], se passou a responsabilizar todos os professores, e todas ascomponentes curriculares, pela valorização da língua portuguesa. Os resultados, no entanto, são, até agora, no mínimo, insatisfatórios.

Mas este subestimar da literatura, é também uma preocupação sentida ao nível pós- secundário. Carlos Azevedo, ao analisar o lugar da literatura nas sociedades modernas, onde o critério custo/benefício, numa lógica neoliberal de rentabilização e eficácia económica dos “produtos”, coloca a literatura e, muito em especial a poesia, no domínio do “inútil”; consequentemente, «o professor de literatura ou de humanidades corre o risco de ser olhado como o sem-abrigo das universidades, ou até da própria sociedade» (1999:14). O viver quotidiano e pragmático nas nossas sociedades complexas e globalizadas, é muito marcado quer pelo utilitarismo (imediato de preferência) quer pelo totalitarismo científico-tecnológico que tem, pretensamente, as soluções para os mais variados problemas dos indivíduos, dos grupos e das comunidades, numa sociedade que pensa que «se faz a si mesma através da ciência» (Cabral, 2002:1211). E se a isto, acrescentarmos o “reino todo poderoso” do audiovisual, o primado da imagem, e da internet, em simultâneo com uma frequência crescentemente massificada do ensino superior (procurado mais como rampa de lançamento para um emprego e uma carreira do que para se adquirir saber), temos um quadro padronizado, no qual à literatura dificilmente se reconhece algum valor de uso social e muito menos de acesso ao mercado de trabalho.

A versão definitiva – “Documento Orientador da Revisão Curricular do Ensino Secundário” – datada de 10/04/2003, acabou por acolher algumas das críticas então formuladas pelo campo literário: vingou a designação «Português» para a disciplina obrigatória da formação geral; surgiu a disciplina de opção anual «Clássicos da Literatura» nos cursos de “Ciências e Tecnologia” e “Artes Visuais” (mas curiosamente o “Curso de Ciências Sociais e Humanas” não ficou com nenhuma disciplina ligada à Literatura!); e a oferta da disciplina «Literaturas de Língua Portuguesa» (embora só fazendo parte do curso de “Línguas e Literaturas”) deixou de estar dependente do projecto educativo das escolas.

Entretanto, as reformas sucedem-se… E presentemente[11], qual a situação? Temos a disciplina de “Literatura Portuguesa”, na formação específica (10º e 11º anos) do Curso de Línguas e Humanidades [e já não “Literaturas”], e uma disciplina de opção “Clássicos da Literatura” (numa lista de 11 disciplinas e «dependente do projecto educativo de escola») nos restantes três Cursos Científico-Humanísticos. Nada sobre literaturas lusófonas e/ou internacionais! Fechamento completo sobre a realidade literária nacional.

Maria Adresen S. Tavares

Já Maria Adresen Sousa Tavares, em 1986, defendia (para o ensino nas ESE) o oposto: «creio que no âmbito de um corpus literário para a infância não devem caber apenas, nem exclusivamente, obras de autores nacionais – as grandes obras e os grandes autores para crianças são, como se sabe, universais, o mesmo se podendo dizer de certos motivos e temas – nem exclusivamente as obras escritas expressamente para crianças.» Salvato Telles Menezes (1993:119-120), ex-docente da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, situa-se nessa mesma linha: «Embora a literatura não seja uma disciplina específica no ensino primário, a verdade é que constitui (ou deveria constituir) o espírito da aprendizagem da leitura. Todos aqueles que frequentaram o ensino primário e secundário deveriam possuir uma boa orientação literária. Boa orientação: nada mais, nada menos.» É nesse sentido que se aponta em Espanha (Junta da Andalucía), onde a minha neta frequenta o 1º ano da Educação Primária, ano lectivo 2023-24 (Mijas Costa - Málaga): na sua ficha de avaliação de 1º período, uma das sete áreas de aprendizagem designa-se “Lengua Castellana y Literatura”. Por cá, esse 2 em 1, nem no Secundário![12]

Um dos grandes problemas do sistema educativo nacional, sempre residiu num certo autismo dos responsáveis do respectivo Ministério. E não é de agora. Recordemos Os Maias (1888):
«– Ó Ega, quem é aquele homem, aquele Sousa Neto, que quis saber se em Inglaterra havia também literatura?
Ega olhou-o com espanto:
– Pois não adivinhaste? Não deduziste logo? Não viste imediatamente quem neste país é capaz de fazer essa pergunta?
– Não sei… Há tanta gente capaz…
E o Ega radiante:
– Oficial superior de uma grande repartição do Estado!
– De qual?
– Ora de qual! De qual há-de ser?… Da Instrução Pública!» (p. 402)

Já Rui Grácio, num texto de Abril de 1959 em que criticava o lugar da literatura portuguesa contemporânea no ensino secundário, constatava «o carácter ainda sumptuário das letras e das artes [e] a feição estreitamente pragmatista do ensino» onde domina(va) «a inflação da análise gramatical e a dominância de critérios historicistas na articulação dos programas de Português e de Literatura Portuguesa».

Notas

1. Carlos Ceia “Reforma curricular no ensino secundário: acabar de vez com a Literatura”, JL/Educação,16/05/2001, pp. 8-9.
2. Leonel Cosme “A literatura morre na escola?”, a Página da Educação, Julho 2001, p. 30.
3. Esta proposta parece assentar nas conclusões do estudo realizado pelo Observatório das Actividades Culturais: «ao prescrever obras de leitura obrigatória», fecha-se aos jovens estudantes «todo um universo a descobrir».
4. O documento “Linhas orientadoras da revisão curricular”, apresentado pelo ministro David Justino, em 21/11/2002 e que esteve em discussão pública até Janeiro de 2003, (i) manteve a «Língua Portuguesa» como disciplina da componente de formação geral obrigatória em todos os cursos do secundário, e (ii) acentuou ainda mais o “apagamento” da Literatura: a disciplina (bienal) de «Literatura Portuguesa» passou a opcional, na componente de formação específica, mesmo no curso de “Línguas e Literaturas” e a leccionação da disciplina «Literaturas de Língua Portuguesa», para além de ser também uma opção (em 4 cursos do 12º ano), fica dependente da disponibilidade das escolas. Cf. JL/Educação, 05/09/2001, pp. 1-6 “A revisão curricular do Secundário”.
5. Nelson de Matos “A literatura e o ensino da língua”, DNA, nº 344, 05/07/2003, p. 41.
6. Público, 25/01/2003, p. 30 “Escritores Contestam Revisão do Secundário”.
7. O debate centrou-se, naturalmente, sobre o ícone literário nacional – Camões e o ensino/aprendizagem d’Os Lusíadas. Rui Grácio falava-nos do «rancor juvenil pelos clássicos».
8. Cf. de Carlos Ceia: “O ensino do Português: o papel dos professores”, JL/Educação, 26/12/2001, p. 8 e “A má fortuna da língua e da literatura portuguesas”, Público, 09/11/2003, p. 34.
9. Artº 47º nº 7 da Lei nº 46/86 de 14 de Outubro. D.R. nº 237, I Série.
10. Artº 6º dos Decretos-Lei nº 6/2001 e nº 7/2001 de 18 Janeiro, D.R. nº 15, I Série-A. Reorganização curricular do ensino básico e do ensino secundário.
11. Decreto-Lei nº 139/2012, de 5 de Julho, alterado pelo Decreto-Lei nº 91/2013, de 10 de Julho e pelo Decreto-Lei nº 176/2014, de 12 de Dezembro.
12. No programa de Português do 5º ano do ensino básico, na «operacionalização das aprendizagens essenciais», domínio da Educação Literária, prescreve-se «Ler integralmente textos literários de natureza narrativa, lírica e dramática (no mínimo, um livro infanto-juvenil, quatro poemas, duas lendas, três contos de autor e um texto dramático – seleccionados da literatura para a infância, de adaptações de clássicos e da tradição popular)» [sublinhados nossos].


Referências

AZEVEDO, Carlos (1999) “O Lugar da Literatura”. Línguas e Literaturas, revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, II Série, vol. XVI, pp. 9-22.
CABRAL, João Pina (2002) “Novas articulações universitárias – pós-graduação, investigação e massificação do ensino superior”. Análise Social, vol. XXXVI, nº 161, pp. 1209-1217.
GRÁCIO, Rui (1959) “A literatura portuguesa contemporânea e o ensino secundário” in Educação e Educadores. Lisboa: Livros Horizonte/ Biblioteca do Educador Profissional, nº 4, pp. 121-7.
GUERREIRO, António (2003) “A literatura exclusa”, Actual-Expresso, nº 1583, 01/03/03, p. 46-7.
GUSMÃO, Manuel (2003) “A literatura atrapalha o ensino da língua?”, Actual-Expresso, nº 1583, 01/03/03, p. 48.
COELHO, Alexandra Lucas (2001) “Além da esquerda e da direita”, Público, 27/08/2001, p. 10.
MENEZES, Salvato Telles (1993) Literatura. Lisboa: Difusão Cultural/ O que é, nº 4.
QUEIROZ, Eça de (1888) Os Maias. Lisboa: Livros do Brasil/ Obras de E.Q., nº 5, s/d.
SILVA, Vítor Aguiar e (2001) “O ‘naufrágio’ de Os Lusíadas no ensino secundário”, Público, 01/09/2001, p. 7.
TAVARES, Maria Andresen de Sousa (1986) “Porquê o ensino da literatura nas Escolas Superiores de Educação?”, comunicação apresentada ao Encontro sobre o ensino e a aprendizagem da literatura portuguesa, Braga 30-31/10/1986.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Agostinho da Silva 118 anos

Em dia de aniversário do Professor Agostinho da Silva, um pensamento vivo, deixamos aqui imagens de um "powerpoint" que fizemos para sessão na Fnac do Chiado, em Lisboa, no ido 19 de setembro de 2013.

Luís Santos

















sábado, 3 de fevereiro de 2024

Dia UNESCO - Leitura em Voz Alta

 

Somos seres que aprendemos com a experiência que se acumula no tempo. A dita experiência repete-se e melhora-se. Para este processo acontecer é necessário guardar a memória do acontecido para reter o experimentado e assimilar a sabedoria do já feito e assim aprender e ter uma vivência melhor. A experiência é entendida e corrigida, é um processo histórico. Esta guarda-se em símbolos que aprendemos e denominamos palavra escrita. Atesoura-se em documentos que chamamos livros. O livro guarda essa memória do feito e permite a sua utilização e aperfeiçoamento. O livro guarda os símbolos que permitem essa desejada ideia provada que permite o avanço da humanidade. O livro é a memória que reproduz e melhora a vida. É essencial para o progresso da história humana. Melhorar a vida é possível pelos livros. Esta é a importância da leitura que comemoramos hoje, dia 1 de fevereiro, especialmente a leitura em voz alta para os que não conhecem os símbolos e precisam de saber a história na qual estão inseridos.


Professor Doutor Raul Iturra

Catedrático Emério do ISCTE-IUL


terça-feira, 23 de janeiro de 2024

14 anos de Estudo Geral

 O Estudo Geral faz hoje, 23 de janeiro de 2024, 14 anos, o que denota uma existência persistente e significativa. Pressupostamente, o mesmo dia em que se assinalam os 500 anos de nascimento de Luís Vaz de Camões. Parabéns aos dois. Não querendo deixar de assinalar a data aqui deixamos uma quadra de Agostinho da Silva, do seu livro Quadras Inéditas, p. 72, Ed. Ulmeiro, que reza assim:


Naquela Ilha dos Amores

que sonhou Camões outrora

só entra e fica liberto

quem lá viva desde agora



Travessa do Abarracamento de Peniche, nº7, frontaria do prédio onde o Professor Agostinho da Silva viveu os últimos anos da sua vida.

Fotografia de Luís Santos


sábado, 20 de janeiro de 2024

Literatura: o pão nosso de cada dia (XXII)

 Luís Souta

LITERATURA E EDUCAÇÃO

«Alguém viu a literatura como infância recuperada.
Por isso escrevo, sim»
(Mortal e Rosa, Francisco Umbral, 2003:81)

A Educação não ganhou ainda autonomia própria enquanto campo temático específicona literatura. Esta evidência pode ser constatada na não existência de nenhuma entrada com essa designação nos Dicionários de Literatura; por exemplo, num dos de maior referência, o dirigido por Jacinto do Prado Coelho, já com várias edições, a “Escola” não é contemplada, mas sim a «Infância» e a «Adolescência»[1], também eles temas, relativamente, recentes no universo literário. E é nestas duas “gavetas” que aparecem indicadas algumas das obras quenos interessaram para a análise do fenómeno educativo. Naturalmente, que estas duas grandes etapas da vida humana são, nos últimos tempos, marcadas por uma ocupação forte na vidaacadémica. Tanto assim é que, como nos relembra Calvino, «o romance de educação [termina] quando o herói atinge a maturidade» (1990:163).

Poder-se-ia supor que seriam os escritores realistas aqueles que, por querem captar o “mundo real”, a sua essência, mais interessaria uma démarche deste tipo. No entanto, vemos que as problemáticas escolares – adjacentes à centralidade que a infância e a adolescência têm em muitas das obras – estão presentes nas diferentes correntes literárias – romantismo(Camilo Castelo Branco), neo-romantismo (Trindade Coelho), realismo (Eça de Queiroz), naturalismo (Fialho de Almeida), simbolismo (Aleixo Ribeiro), saudosismo (Teixeira dePascoaes), orfismo (Fernando Pessoa), presencismo (José Régio), neo-realismo (SoeiroPereira Gomes), existencialismo (Vergílio Ferreira), surrealismo (Mário-Henrique Leiria) – e a especificidade e focagem desses olhares, em vez de nos “embaraçar”, servem antes para complementar o puzzle humano e educativo, que se (re)faz em dinâmicas permanentes.

O romance português, nos anos 40 e 50, dedica particular atenção à vida do jovem em (de)formação na clausura do internato, seja ele numa instituição laica, religiosa ou militar. Várias são as obras que o abordam: Ilha Doida (1945) de Joaquim Ferrer, A Velha Casa I - Uma Gota de Sangue (1945) de José Régio, Internato (1946) de João Gaspar Simões, Uma Luz ao Longe (1948) de Aquilino Ribeiro, Manhã Submersa (1954) de Vergílio Ferreira, Malta Brava (1955) de Alexandre Cabral, Adolescente Agrilhoado (1958) de José Marmelo e Silva, e, ainda que só em alguns episódios, A Origem (1958) de Graça Pina de Morais. Mais tarde temos o romance Lúcialima (1983) de Maria Velho da Costa dando particular destaque, em episódios marcantes, à vida do colégio interno feminino e do colégio militar. Em todoseles, a vida de estudo, as aulas, o quotidiano da escola-prisão estão presentes de forma constante e intensa. Esta é a instituição escolar em que, de forma mais explícita, e brutal, se procura domesticar os jovens e uniformizar os seus comportamentos. Pela disciplina, pelo medo e pelo castigo. O internato é, simultaneamente, um local de educação e de repressão. Aviolência da “pedagogia musculada”, o a mbiente asfixiante e despótico que neles dominava, leva a que se tome o microcosmos do internato como metáfora do país-prisão que vive em ditadura, privado de liberdade, fechado sobre si. Tal como na sociedade, também ali se registam resistências, se subvertem as regras, e na revolta os alunos procuram a evasão para oexterior. Para o reencontro com o lar de que foram, forçosamente, apartados.

Muitos outros escritores produziram romances geracionais, onde a vida escolar preenche parte substancial do jovem adolescente, em especial no liceu ou na universidade(aqui numa separação desejada da família, na procura dos caminhos da autonomia, da liberdade e, até de uma certa, boémia). Eis algumas dessas obras: A Via Sinuosa (1918) de Aquilino Ribeiro, Um Fio de Música (1937) de Raquel Bastos, os três volumes de A Criação do Mundo (1937, 1938, 1939) de Miguel Torga, Bússola Doida (1938) de Aleixo Ribeiro, As Sete Partidas do Mundo (1938) e Fogo na Noite Escura (1943) de Fernando Namora, Amigos Sinceros (1941) de João Gaspar Simões, O Caminho Fica Longe (1943) de Vergílio Ferreira, Adolescentes (1945) de Adolfo Casais Monteiro,

Adolfo Casais Monteiro (desenho de António Dacosta, 1946)

os cinco volumes de A Velha Casa (1945, 1947, 1953, 1960, 1966) de José Régio, Montanha Russa (1946) de Tomaz Ribas, Porta de Minerva (1947) de Branquinho da Fonseca, Rapariga (1949) e Companheiros (1959) de Ester de Lemos, Grades Vivas (1954) de Celeste Andrade, Alvorada (1955) de Manuel Mendes, Bárbara Casanova (1955) de Maria da Graça Freire, A Gata e a Fábula (1960) de Fernanda Botelho, Chamada Escrita (1988) Fala de uma Professora ao volante no IC1 (2004) de Orlando Ferreira Barros, Inveja - uma novela académica de Mário Avelar (2010). Como se pode constatar, o adolescentismo, e a personagem infanto-juvenil, têm o seu período áureo nos meados do século XX (muitocultivados pela geração presencista e neo-realista), com predominância ainda do herói masculino. No entanto, sente-se já o importante contributo que vem da “escrita feminina”, apesar da sua entrada tardia no campo da literatura, fazendo emergir esse universo próprio da infância e adolescência femininas e, naturalmente, «desocultando interacções e modelos de socialização nos espaços escolares tradicionalmente destinados às mulheres» (Souta, 2000:109). Maria Gabriela Llansol (2006:169) contrapõe: «quando eles se perderam na discussão aberrante da escrita feminina,/ se o tálamo da escrita tem sexo,/ o que eles estão é a desviar a atenção da ressuscitação do texto.(…) é um único o leito da linguagem».

A atracção da nossa literatura pelas personagens infantis e juvenis[2], traz associada a emergência do escolar, com uma vantagem acrescida: permite-nos ver a instituição escola pelos olhos daqueles que são os seus destinatários primeiros (“clientes” na terminologia neo-liberal). A explicitação dos objectivos da escola, dos seus mecanismos de funcionamento e organização é tarefa de adultos, em especial dos professores, pedagogos e políticos da educação. É sob a perspectiva do adulto especialista (que em geral se exprime sob a forma do ensaio) que se conhece esse mundo peculiar, onde as crianças e os jovens, aparecem como sujeitos indiferenciados sem “voz e pensamento”. Ora o olhar infantil da narração ficcional, o da criança-aluno (ainda que agora, num distanciamento temporal e racionalizante do adulto-escritor, maduro e sabedor), fruto de um acentuado introspectivismo, revela-nos um outro ângulo de apreciação, muito descurado nos trabalhos de investigação empírica. A forma comoa criança e o jovem entendem essa “máquina” organizacional, percepcionam as matérias curriculares, reagem aos métodos e orientações pedagógicas, se relacionam com osprofessores, interagem com os colegas, debatem com os seus familiares as questões escolares, são apenas algumas das muitas dimensões possíveis de captar através da sensibilidade e da linguagem única dos mais novos.

A força da narrativa tem vindo a impor-se, ultimamente, tanto no campo educativocomo no da psicologia. A proposta de desenvolvimento educacional de Kieran Egan (1979, 1986)[3] assenta no uso da narrativa como técnica de ensino – «teaching as story telling». Por sua vez, Óscar F. Gonçalves (1994) vem advogando, em vários trabalhos, uma linha de investigação e prática de uma psicoterapia narrativa, ligada ao campo da formação e da cognição.

Também António Damásio veio defender[4] as potencialidades formativas da narrativa, ligando o processo de contar histórias à capacidade de fazer “sentir”; as histórias que se contam têm uma força intrínseca capaz de desencadear o «processo de emoção e sentimento» e, paralelamente, despertam nos indivíduos memórias, pelo conjunto de associações,comparações que naturalmente sugerem. Para Damásio, as histórias podem ainda ter um outro apport: fazer com que «os estudantes aprendam mais sobre si». As implicações, para a área da educação, daqui decorrentes, poderão ajudar a escola, num processo de reconfiguração, a questionar o absolutismo, até aqui, dominante do “cognitivo” (reconhecendo ao “afectivo” utilidade formativa), abrir-se a outras dimensões consideradas “menores” (caso das histórias, do imaginário e da fantasia); e também, aceitar rever algumas “verdades” pedagógicas como aquela que considera o “contar histórias” como uma actividade de ensino a “evitar” (em especial em idades para lá do pré-escolar) porque promove a passividade; partidários acríticos dos «métodos activos», confundem uma postura de escuta com imobilismo intelectual[5].

Ora a narrativa tem a sua expressão de excelência na literatura. Os escritores são os exímios, e incontestáveis, contadores de histórias. Rentabilizá-los é um dever. Conhecer e estudar as suas obras, uma obrigação. O texto literário possibilita essa convergência do cognitivo, do emotivo e do sensorial.

A junção da escrita poética ou ficcional e da reflexão pedagógica é cultivada, entre nós, por um reduzido número de escritores. Foram os escritores/professores que mais o fizeram. O poeta Sebastião da Gama é talvez o caso mais emblemático porque o seu Diário, escrito entre Janeiro de 1949 e Outubro de 1950, se centra quase integralmente na experiência do estágio pedagógico de Português que realizou na Escola Técnica Veiga Beirão, em Lisboa (há um curto «Apêndice» sobre os primeiros dias de actividade lectiva na Escola Industrial e Comercial de Estremoz, onde efectivou). E que acabou por se tornar um livro de referência para aqueles que procuram abordagens alternativas, e se posicionam numa linha humanista que privilegia a dimensão relacional e afectiva. O que não deixa de ser curioso tratando-se de um jovem professor estagiário. O lema da sua vida ficou sintetizada na frase: «Tens muito que fazer? Não. Tenho muito que amar». Não se considerava apenas um professor de Português, mas um professor de Alunos, para quem essa tarefa não se restringia à sala de aula. O grande tema do Diário é, sem dúvida, o relacionamento entre professor e aluno. Daí as páginas do Diário estarem longe de ser uma fonte inspiradora exclusiva para os professores de língua materna. Muitas questões, para além das didácticas, são ali descritas e reflectidas. Por exemplo, as ligadas à (in)disciplina. É interessante como uma vida tão curta (morreu com 27 anos) e uma tão reduzida experiência docente (5 anos) foram tão marcantes no pensamento pedagógico nacional.

Sebastião da Gama

Outros exemplos de professores/escritores, bem conhecidos, poderiam ser avançados. Uns exerceram a profissão docente a tempo inteiro (Garibaldino de Andrade, Mário Dionísio, José Marmelo e Silva, Ondina Braga, Matilde Rosa Araújo, Maria Rosa Colaço, Eduarda Dionísio), outros por períodos mais ou menos longos (Aquilino Ribeiro, Ruben A., José Rodrigues Miguéis, Ruy Belo, Augusto Abelaira), no ensino básico (Irene Lisboa), secundário (José Régio, Vergílio Ferreira, João de Melo) e superior (Vitorino Nemésio, Almeida Faria, Cristóvão de Aguiar), mas em nenhum se consubstanciou a prática de um diário exclusivamente sobre o mundo escolar. Para além do Diário de Sebastião da Gama e do Bom dia, s'tora (diário duma professora em Macau) de Graciete Nogueira Batalha (1991) pouco mais temos em Portugal neste género literário. Isto apesar de alguns dos escritores terem cultivado a prática do diário – Conta-Corrente de Vergílio Ferreira, Diário de Miguel Torga, Dias Comuns de José Gomes Ferreira, Relação de Bordo de Cristóvão de Aguiar – mas onde as questões ligadas ao ensino surgem de forma esparsa, sem a preocupação de as destacar ou de lhes dar relevo especial. De realçar o caso de José Rodrigues Miguéis e de Irene Lisboa, que no início dos anos 30, foram integrados num grupo de bolseiros que a Junta de Educação Nacional enviou para a Europa com o intuito de se especializarem em Ciências Pedagógicas. Ambos, em muitas das suas obras têm episódios sobre a experiência escolar: no caso de Rodrigues Miguéis – Páscoa Feliz (1932), A Escola do Paraíso (1960), O Espelho Poliédrico (1973), Paços Confusos (1982);

José Rodrigues Miguéis (desenho de José Tagarro, 1925)

e no de Irene Lisboa – Solidão: Notas do punho de uma mulher (1939), Começa uma Vida (1940), Apontamentos (1943), Voltar Atrás Para Quê? (1956). Nalguns casos estamos perante romances com fortes marcas autobiográficas. Em Irene Lisboa, essa linha é ainda mais notória, pois desenvolveu, com a persistência de uma escrita afectiva, tensa e amargurada, o «diário íntimo» e a autobiografia romanceada. Opções literárias usadas, no entanto, mais com objectivos de autoconhecimento mas onde também afloram análises a experiências de inovação pedagógica (arte infantil) em que esteve envolvida na sequência dessa formação adquirida no estrangeiro.

«Coitadas das professoras! Havia algumas simpáticas, merecedoras, não muitas; mas isso não        importava… Sentiam que eu trazia a ideia nova, uma pequena ideia… Mesmo a novidade é sempre bruxuleante; é preciso acalentá-la, dar-lhe forças. Três professoras, ou quatro, ou cinco, criam que eu ia renovar o ensino. Não as interessava o meu programa, mas o meu espírito, as minhas ideias… submetiam-se-lhes com graça e com coragem.» (Apontamentos, Irene Lisboa, pp. 80-1).

João de Melo, autor de Gente Feliz com Lágrimas (1988) onde se encontram múltiplas passagens sobre a escola (açoriana), salientava essa eficácia do professor/escritor: «tenho a sorte de amar a literatura e de a ensinar e de a praticar. Talvez haja nisso uma dupla convicção. Os alunos lêem essa paixão nos olhos do professor/escritor»[6].

Notas

1. Entrada também existente no volume I do Grande Dicionário da Literatura Portuguesa e de Teoria Literária dirigido por João José Cochofel (1977). 

2. Óscar Lopes destaca Cinco Réis de Gente de Aquilino Ribeiro, de 1948, como «o melhor romance português que tem como protagonista uma criança».

3. E de sua “discípula” em Portugal, Maria do Céu Roldão (1995): «não se trata de contar “histórias” de ficção, mas sim de organizar os conteúdos de aprendizagem de qualquer das áreas curriculares segundo a estruturada história, e de acordo com os níveis etários dos alunos, ou seja, enquadrando-os numa estrutura narrativa».

4. Intervenção de António Damásio no fórum “A arte de se aprender”, Porto, 24/02/2001.

5. Vergílio Ferreira diz a este propósito: «Não é mexendo-nos muito que aprendemos muito. Pelocontrário, é a imobilidade que permite ao pensamento levantar ferro» in Dacosta (2001:117).

 6. Entrevista de João de Melo ao DN, 23/12/00, p. 33.

Referências

CALVINO, Italo (1990) Seis Propostas para o Próximo Milénio (Lições Americanas). Lisboa: Teorema, 3ª edição, 1998.

EGAN, Kieran (1979) O Desenvolvimento Educacional. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.

EGAN, Kieran (1986) O uso da Narrativa como técnica de ensino: uma abordagem alternativa ao ensino e ao currículo na escolaridade básica. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1994.

GONÇALVES, Óscar F. (1994) “Cognitive narrative psychotherapy: The hermeneutic construction of alternative meanings”. Journal of Cognitive Psychotherapy, vol. 8, nº 2, pp. 105-125.

LLANSOL, Maria Gabriela (2006) Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004. Lisboa: Assírio & Alvim/ arrábido, nº 5.

SOUTA, Luís (2000) “Antropologia da Literatura: a multiculturalidade num corpus literário português”. Educação, Sociedade & Culturas, nº 14, pp. 103-119.

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Firmino Pascoal, Lindu Mona, Kalunga


Firmino Pascoal aka Lindu Mona lançou em 2023 o seu novo álbum «Kalunga» nas plataformas digitais e na Loja da Zoomusica em Vinil. Este disco conta com o apoio à edição fonográfica por parte da GDA.


Lindu Mona nasce no conceito musical criado por Firmino Pascoal nos finais dos anos 80 para dar a conhecer e evoluir temas de influências étnicas de Angola misturadas com electrónica, jazz e blues. Com Lindu Mona, o regresso a África é Espiritual e Físico. Assim sendo, na sua música sentimos os Pássaros e os filhos da Floresta, o tambor e os Passos de Dança, os Nzumbi (almas dum Outro Mundo), o dialecto e os Instrumentos de música tradicional como o Kissange.

Em Maio de 2021, Lindu Mona juntamente com a Mainha Irene e o Dj e Engenheiro de Som Pedro Cardoso iniciaram esta viagem ancestral e espiritual da música angolana. Com fortes inspirações do álbum outrora trabalhado por Lindu Mona - Bantu - a sonoridade de Kalunga remete-nos para uma experiência cultural afro-brasileira, que arrebata pelo trabalho da percussão e pelas harmonias que a acompanham. Neste sentido, Kalunga é uma viagem discográfica a Angola marcada pelos batimentos da percussão de Tiago Tocha, das guitarras do Dasoul e Rui Pais, dos baixos ritmados do Diogo Antunes e Jorge Silva e do canto de Tristany, Trista e Ritta Tristany que casa com as melodias do Dj Pedro Cardoso. Ao piano contamos com o João Oliveira e Octávio Salles no saxofone.

Pode-se dizer também que a homenagem à Natureza Africana que Lindu Mona profetiza nos seus temas reflete-se não só nas composições rítmicas como também na forte presença sonora da fauna e flora, que nos transporta à imensidão e grandeza de Kalunga.
 
Kalunga tem origem a partir do quimbundo de Angola que significa “mar”. Durante a escravatura, para se referirem aos negros no Brasil, os brancos chamavam Calungas aos escravos trazidos de Angola. Por outro lado, os negros utilizavam este nome para se referirem ao Deus dos brancos, pois consideravam-no vago como a imensidão do mar. Para Lindu Mona, Kalunga é o lugar tanto físico quanto espiritual onde o mar, a imensidão e a grandeza se encontram. Kalunga é Terra, Kalunga é casa.  

Mais informações e músicas, AQUI:

Melhores cumprimentos
Firmino Pascoal

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Firmino Pascoal
ZOOMUSICA
968972450

sábado, 6 de janeiro de 2024

Crónicas de Dezembro

 Luís Santos

É a Hora. Fomos de visita à LIVRARIA UNI VERSO, em Setúbal, que muito se recomenda, ali a uma dezena de metros da lateral esquerda da Câmara Municipal. Muito mais que bons livros. Amistoso atendimento. Bons presentes de Natal. Entre-tanto, o nosso amigo Bocage ia-se fazendo anunciar. Entrámos em pastelaria a que deu nome e, curiosamente, entre as muitas pessoas que se entrecruzavam, entrando e saindo, mónadas de interligadas almas, a larguíssima maioria eram mulheres. Tal como atrás do balcão, umas quantas empregadas em atarefado serviço, tudo mulheres. Não havia como não pensar, eis as musas do Bocage que se vão multiplicando e saltitando entre poemas. As suas muito cantadas mediadoras divinas, qual carrocel mágico de eternas curvas rodando sem parar. Nelas, todas as ~~~ do mar, todas as *** do céu, tudo o que não tem mais fim.

P.S.: Este textinho, inspirado pelo dia em que faria 87 anos, é dedicado ao meu pai.

Breve testemunho do Encontro de ontem no Moinho de Maré do Cais Velho, a culminar a 1ª edição do PRÉMIO LITERÁRIO DE ALHOS VEDROS, patrono Leonel Eusébio Coelho, onde se comemoraram também os 509 anos da atribuição de Carta de Foral à vila, pelo alcochetano rei D. Manuel I, ainda que a idade da terra, pelo menos com este topónimo, vá até perto do início do país oitocentos anos atrás. Mas, o que mais importa agora reconhecer é que este Prémio Literário, cuja segunda edição para 2025 foi anunciada, já que a sua periodicidade se determinou bienal, vem mais enriquecer as boas dinâmicas culturais e artísticas que caracterizam esta região e, muito em particular, este lugar que nos dá porto de abrigo.


domingo, 24 de dezembro de 2023

“Literatura: o pão nosso de cada dia”(XXI)

 Luís Souta

A ESCOLA SELECTIVA E OS NOVOS EXCLUÍDOS 

«o acto educativo é porventura, na sua raiz, um acto provocatório.»
(Rui Grácio, Educação e Educadores, 1996:99)

A aprendizagem na escola

A criação da escola alterou substancialmente o quadro de aprendizagem no lar (traçado no final do nosso artigo de Novembro). Um novo modelo económico e de desenvolvimento estava a emergir. A indústria não se compadecia com este tipo de trabalhador “(des)qualificado”.

A existência de uma instituição, em edifício próprio, dedicada integralmente à transmissão dos saberes, com gente especializada e treinada para o exercício dessa função, teve, naturalmente, fortes implicações na vida individual, familiar e colectiva.

Em Portugal, a sua implantação no tecido nacional foi lenta e muito irregular, ao longo destes últimos dois séculos. Em particular, a sua penetração no mundo rural, ficou-se, durante muitas décadas, pelos níveis elementares. O pós-primário, estava quase em exclusivo nas capitais de distrito e o universitário nas três principais cidades. No entanto, a política de escolarização foi progressivamente delapidando as famílias desse bem precioso que são os seus filhos (enquanto força de trabalho) e esvaziando-as da sua tradicional função educativa. Começou primeiro por lhes retirar os rapazes, para mais tarde as raparigas seguirem caminho idêntico. Inicialmente, durante uma parte do dia e num número reduzido de anos (os 3-4 correspondentes aos estudos primários). Para agora, nos nossos dias, as políticas de democratização do ensino – no âmbito de uma escolaridade obrigatória e universal progressivamente alargada e de um processo de massificação também no secundário – acabarem por levar ao limite essa separação entre a escola e o lar. Passa-se o dia na escola e durante anos a fio. Em certos casos, houve desvinculação geográfica com o local de origem: ter que sair da aldeia para frequentar a escola situada na vila ou na cidade. E assim emerge um “situated self” decorrente destas adaptações a novos contextos de diversidade, valores culturais e estilos de vida. A aprendizagem na escola é agora formal, explícita, dirigida por professores de que nada se sabe, para além daquele contacto fugaz que o tempo lectivo estipula (em regra, também eles uns “nómadas” vindos de longe). O professor é a fonte de um saber letrado, que se complementa nos manuais escolares. A trilogia do «saber ler, escrever e contar» torna-se no instrumental técnico de base que permite o acesso do aluno a outros conhecimentos, de que nunca ouviu falar ou sentiu que lhe fizessem falta (a si ou aos seus). Mas uma vez na posse de tais competências, as relações no seio familiar sofrem profundas mudanças. O detentor do saber inverteu-se: os pais nada têm agora para ensinar aos filhos (os seus conhecimentos práticos não são pertinentes para o saber teórico e abstracto da escola); os filhos “sabem mais” que eles.

«As batatas vieram da América», disse eu à minha mãe ao jantar, quando ela me pôs o prato à frente.

“Logo haviam de vir da América! Sempre houve batatas”, sentenciou ela.

“Não. Dantes comiam-se castanhas. E o milho também veio da América.” Era a primeira vez que tinha a clara sensação de, graças ao mestre, saber coisas do nosso mundo que eles, os pais, desconheciam.» (Que Me Queres, Amor?, Manuel Rivas, 1998:33)

Paulatinamente, afastam-se do trabalho manual (o tempo de estudo exige-lhes exclusividade), concebem formas alternativas de vida, têm outras aspirações sociais e profissionais. A ruptura está consumada.

A função clássica atribuída à escola como transmissora de saberes, isto é, privilegiando o ensinar (imprimir uma marca), tem, mais recentemente, vindo a ser contrabalançada pelo acentuar do aprender (incorporar em si). De qualquer modo, estaríamos sempre numa relação entre alunos e professores de «simples troca de bens e não da comunhão de pessoas» (Garcia, 2000:571) que um verdadeiro processo de educação, entendido como relação, pressupõe (ajudar alguém a ser). Ora é essa dimensão que prevalece no interior do grupo doméstico. O hábito de aprender, que pautava o viver dos jovens no seio familiar, deveria ser também a forma de estar no terreno escolar. Aprender seria assim um processo de continuidade, permanente e duradouro. Tal como o era nos contextos de aprendizagem informal no lar. E deste modo se evitariam rupturas sem sentido.

A escola selectiva

A «escola para alguns» era, no essencial, uma escola selectiva na entrada e na passagem de um ciclo a outro da escolaridade. Nesse sentido, os professores eram treinados no desempenho de uma função tida como primordial à sua actividade: ensinava-se mais com intuitos de avaliação do que de aprendizagem; avaliava-se para seleccionar, premiando ou excluindo conforme o (de)mérito dos alunos.

Essas práticas criaram raízes tão fortes no corpo docente que ainda estamos lembrados do tempo em que o valor de um professor variava na razão directa do número de alunos que reprovava. Claro, que neste crivo entravam apenas algumas disciplinas – Matemática, sempre em primeiro lugar, a Física, a Química, a Geometria Descritiva, o Português, as línguas estrangeiras – e desta forma se consolidava uma hierarquia docente e curricular (em que as «disciplinas bastardas» nem contavam para a nota).

Rui Grácio

Uma consequência imediata era o mercado paralelo das «explicações»: mais uma sobrecarga financeira no orçamento familiar e o aparecimento de uma nova profissão (o explicador), para a qual concorriam muitos professores numa dúbia situação de duplo “emprego” [1].

Por isso não é de estranhar que a mudança de paradigma de uma «escola para alguns», onde a selecção constituía um traço distintivo do seu funcionamento, para uma «escola para todos», onde o acesso e o sucesso devem ser universais, se tenha vindo a processar com enormes dificuldades e resistências. A comprová-lo estão as elevadas taxas de insucesso e abandono escolar. Estes indicadores mostram o desencontro de culturas (v.g., oral vs escrita) e como largas camadas da população mantêm com o ensino e os saberes escolares relações marcadas por estratégias de resistência ou de mera credencialização (cf. artigo XIX, nesta rubrica). A escola é vista como a instituição que confere um diploma que facilitará o acesso ao trabalho, mais do que um local onde se aprende e, se reforça a identidade cultural. Se tempo houve, em que a escola habilitava com graus e certificações que permitiam a integração na sociedade, a entrada garantida no mercado de trabalho e a consequente mobilidade social ascendente, hoje o diploma académico abre menos portas, vale cada vez menos. A sua desvalorização é célere.

A nossa escola, confronta-se com problemas crónicos que atravessam épocas, regimes e governos. O insucesso escolar é um dos mais notórios. Nos últimos anos, ao nível do ensino básico (com provas de aferição mas sem exames), tudo se fez para baixar esses valores. Foram caindo lentamente, mais por alterações administrativas na forma de o contabilizar e por pressão de factores endógenos (como o PIPSE - Programa Interministerial para a Promoção do Sucesso Escolar, de 1987, ou a(s) Reforma(s), ávidos de mostrar resultados positivos) do que propriamente por uma quebra do fenómeno em si. Estamos cientes que o insucesso real é bem maior do que o oficial, tornado público em pautas e fichas de avaliação final. Muitas das vezes não se avaliam as aprendizagens reais mas as «enviesadas manifestações». A participação em estudos internacionais (PISA ou TIMSS, por exemplo, que avaliam as competências da leitura, Matemática e Ciências, e onde são usados instrumentos de maior validade e fiabilidade) evidenciam as lacunas na formação académica dos nossos jovens (vejam-se os desastrosos resultados do PISA 2022 [2]). A consequência imediata do insucesso acumulado traduz-se no abandono escolar [3], com a entrada precoce no trabalho produtivo. É a chaga do trabalho infantil que não se estanca. Os mecanismos de selecção económica conjugam-se aqui com os baixos rendimentos académicos. A escola mostra-se incapaz de segurar no seu seio este tipo de alunos. A alternativa ao fracasso escolar não tem sido o de recomeçar, em novos moldes, os estudos, mas antes a saída da escola e procurar emprego, mesmo clandestino e ilegal.

Perante os números de abandono e reprovação, a generalidade da população mantém uma estranha atitude de benevolência perante estas instituições que não são capazes de cumprir as grandes finalidades que a sociedade lhes impôs. Em termos comparativos, que crédito nos mereceria um hospital onde morressem 20% daqueles que lá entram ou um estabelecimento prisional de onde fugissem, todos os anos, 20% dos seus reclusos, ou ainda de uma empresa industrial com semelhantes valores de desperdício no seu ciclo de produção? Estranha-se, de facto, no campo educativo, a falta de indignação, quer dos utentes directos (crianças e jovens), quer dos utentes indirectos (pais e suas associações), quer mesmo dos cidadãos em geral que financia as escolas, através dos seus impostos. A ausência de uma cultura de intervenção cívica em paralelo com o diminuto associativismo (mais acentuado ainda nas minorias étnico-culturais) pode explicar, em parte, que perante resultados tão negativos não se peçam responsabilidades à direcção das escolas, aos professores e, naturalmente, aos decisores de política educativa.

A “crise na educação” parece que passou de cíclica a permanente. Os professores oscilam entre a posição do “náufrago” e a do “astronauta” (Simões e Boavida, 1999), ou seja, ou se agarram à segurança da tradição, do conhecido e testado, ora avançam para inovações constantes, sempre na busca da novidade e da mudança pedagógica. E neste quadro ninguém se satisfaz com as condições em que exerce a sua profissão. Os investimentos aumentam mas os resultados não são proporcionais. As Reformas sucedem-se mas os problemas persistem. A recessão demográfica na população estudantil tem possibilitado melhorar os edifícios escolares e a sua funcionalidade (finalmente acabaram os “pré-fabricados” da fase do boom), mas as escolas continuam longe de possuir os equipamentos, os materiais técnicos e pedagógicos que se impõem nesta sociedade altamente tecnológica. A excepção regista-se no campo das tecnologias de informação e comunicação. Aí sente-se uma enorme vontade em alterar profundamente a situação de alguma escassez em que muitas ainda se encontram; há políticas, programas e acções. Os ventos sopram de feição: os propósitos não são só nossos mas de toda a comunidade europeia… É o imperativo básico para que o e-commerce funcione, se expanda e se rentabilize. Estamos em crer que também na Educação, só a pressão de factores externos, leia-se da UE [4], através da definição de “critérios de convergência” poderá superar as fragilidades do nosso sistema educativo, onde o analfabetismo [5], o insucesso, o abandono, a iliteracia e, agora também, a falta de professores (!), são males que, parece, não se conseguir sarar.

Os novos excluídos

Em Portugal são extremamente preocupantes os números que nos dão conta dos baixos níveis de literacia. Muitas dessas pessoas frequentaram a escola e chegaram mesmo a concluir os primeiros ciclos de estudo. Mas as aprendizagens escolares ficaram inertes e de nada lhes servem nas tarefas do quotidiano – são os analfabetos funcionais. Este fenómeno veio demonstrar que não basta haver escola. Quando «a escolarização se reduz a mero rito sem substância social» (Esteves, 1999:42) é porque os alunos a vão frequentando, sem motivação, com irregularidade, com muitas faltas, pouco trabalho. As aprendizagens não se realizam e o aproveitamento é mais que insuficiente… mas acabam por ir transitando de ano para ano. A escola, bem pelo contrário, precisa de funcionar com eficácia e cumprir a sua principal função que é habilitar os alunos com os conhecimentos, competências, atitudes e valores necessárias ao desempenho de tarefas nas esferas do emprego, da família e da cidadania. O clássico «ler, escrever e contar» (consignado já na Constituição de 1822) não é de modo algum suficiente numa sociedade cognitiva, da informação e digital como a do século XXI.

A escola para além de não ter conseguido, até agora, cumprir propósitos essenciais – como escolarizar todas as crianças, possibilitar a todas a conclusão com êxito do percurso escolar legal mínimo, o ensino obrigatório – começa a falhar também ao não preparar adequadamente aqueles a quem atribui um diploma académico. Vários estudos têm mostrado que «a maior parte das matérias ensinadas na escola são completamente inúteis para a vida prática»; outros indicam que a escola não prepara, ou prepara mal, «para a vida prática e profissional». O descrédito da escola e dos seus diplomas atinge hoje também aqueles que apesar de estudos superiores engrossam as fileiras do desemprego. Ou, quanto muito, aceita-se um trabalho mas que pouco ou nada tem a ver com as habilitações académicas obtidas no curso de origem, quantas das vezes segunda ou terceira escolha no acesso ao ensino superior [6]. Outra das vias a que se recorre é o permanecer no sistema da “educação permanente”, saltitando de curso em curso, de estágio em estágio, ganhando créditos, “fazendo currículo”, mas sempre adiando a entrada efectiva no cenário de emprego a tempo inteiro. E neste círculo vicioso parece que (quase) todos ganham: as instituições de formação que não deixam de ter clientes, os empregadores que vão tendo mão-de-obra paga ao preço de estagiário e o Estado que consegue, artificialmente, mostrar estatísticas de um desemprego controlado, abaixo da média comunitária. Queixam-se as famílias, hoje profundamente afectadas pela “síndrome do ninho cheio”, ou seja, o lar não se esvazia como seria natural na sequência da autonomia plena dos seus filhos. Mas a maioridade já poucas alterações traz para a vida familiar. A «geração canguru» acomoda-se, sente-se bem em casa (os conflitos de gerações cessaram), adia o casamento [7], prolonga os estudos, tarda em arranjar emprego. Os filhos não deixam a casa, não ganham independência. E quando finalmente saem, às vezes,… acabam por voltar. As separações e os divórcios esses são precoces e não param de aumentar.

Notas

1. Cf. “Explicações” in Direito ao Erro: a batalha da educação em Portugal de José Alberto Quaresma. Lisboa: Vega/ Outras obras, 2000.

2. Público 06/12/2023, pp. 6-9.

3. A taxa de abandono no 10º ano foi de 23% no ano lectivo de 1999-2000, o valor mais alto desde 1974. Em 2022, apenas 6% dos jovens entre os 18 e os 24 anos não tinham completado o ensino secundário.

4. António Barreto em Tempo de Incerteza (Relógio d’Água, 2002) considerava, então, que muitas das transformações ocorridas, na última década e meia, em vários sectores da sociedade portuguesa se devem à imposição europeia.

5. Nos Censos de 2001, o analfabetismo atingia os 9%; em 2021, é de 3,1% (292.809 pessoas com 10 ou mais anos que não sabem ler ou escrever).

6. Em 2002, só 6 em cada 10 alunos entraram nos cursos de primeira opção; em 2023-24, foram 56%.

7. Segundo a Pordata, em 2022, os homens casam aos 35,1 e as mulheres aos 33,7 anos quando, no início do milénio, a maioria dos casamentos se registava no grupo dos 25-29 anos.

Referências

ESTEVES, António Joaquim (1999) “Mitos, ritos e símbolos: a escola, o trabalho e a cultura nacional”. Cadernos de Ciências Sociais, nº 19-20, Outubro, pp. 39-60.

GARCIA, Mário (2000) “O horizonte da beleza no ensino da literatura”. Brotéria, nº 5/6, vol. 150, Maio-Junho, pp. 567-577.

GRÁCIO, Rui (1963) Obra Completa I - Da Educação. Lisboa: FCG, 1995.

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SIMÕES, Mª das Dores Formosinho e BOAVIDA, João (1999) “Náufragos ou astronautas? Pós-modernidade e educação”. Revista Portuguesa de Pedagogia, nº 1, pp. 5-17.