quarta-feira, 29 de maio de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra

 

História e Fantasia no Lar


Era me difícil meu querido diário, rejeitar o convite tão simpático, que me fez meu colega de quarto, esse antigo futebolista de 94 anos que, quando eu passava pelo corredor disse-me:

pssst, pssst…hei, Doutor ande cá, 

Eu perguntei que queria e ele disse-me: 

«queria convidá-lo para a matança do porco que vou fazer.» 

Eu agradeci e perguntei: 

«Quando e onde?»

E ele disse-me:

Agora cá na minha casa, vê!, aí tenho o porco na pocilga e já amarrado para o sacrificar. 

     -   Mas agora neste minuto?

     -   Venha-me e ajude-me a mata-lo!... Há.. 

Acrescentou:

…quando acabarmos o trabalho temos aí umas garotas para namorar, apalpar e foder.

Eu disse-lhe:

Mas olhe eu sou casado!

Então está bem, traga a sua mulher!

Eu acrescentei: 

mas eu namoro com ela é na minha casa!

Ele disse ainda:

Não interessa por esta vez namora com ela na minha casa enquanto eu fodo essa garota que está aí, ajude-me agora a empurrar este marrão para o sacrificar.

Eu parado no corredor do lar como estava e agachado para ouvir as suas palavras proferidas no sofá onde ele costuma passar o dia, levantei-me, bati nas costas dele e disse-lhe:

Muito obrigado meu amigo, mas não pode ser, já vamos jantar e não há tempo para tratar do porco! 

Virei-me e chamei uma funcionária e disse-lhe:

Ó menina, cá está este senhor com as fraldas e as calças molhadas de chichi e cheira-me que também tem cocó.

 A menina agradeceu, foi levantá-lo. Ele gritou:

- Não, não, não… que este animal foge, não o posso largar…

 

Esta história não é fantasia é a realidade que eu vivo no quotidiano da casa de repouso onde habito. Este senhor tem também o hábito e a fantasia de namorar as garotas que no seu imaginário andam perto dele, como aquela que imaginariamente, levou para a sua cama, agasalhou, beijou, apaparicou com palavras doces e ternurentas:

calma meu amor, abraça-me forte linda, abre as pernas …

E outra fantasias que não vou referir.

Ele de certeza reproduz o dia a dia da sua vida passada quando namorava, ele não está no lar, não está na cronologia social, está na história que ele organiza na base das suas vivências passadas e reminiscentes. 

Tal e qual essa senhora, meu querido diário, que um dia te contei estava sentado ao pé de mim na sala da televisão, mulher esta que quer sempre sair e voltar para a sua casa, o que não acontece, nem pode acontecer num lar de idosos.  Então fala para a sua irmã, já defunta, mas que no entanto ela vê no seu imaginário e que lhe diz:

Ó mana não abrem as portas, estão todas fechadas!

E ela torna a falar como se ela própria fosse esta irmã que lhe diz:

Calma, menina calma, já vão abrir.

Ela responde:

- Será como tu dizes?

Muda de papel passando a ser a irmã que a consola e diz:

Claro que sim, vamos já sair. 

Ou ainda essa mulher mãe de 11 filhos que me diz: 

    - Ó professor, ajude-me a levantar-me desta cadeira para ir descascar batatas que vou preparar para os meus filhos.

Eu respondo:

Amiga, seus filhos estão nas suas casas com as suas famílias, a senhora não tem que cozinhar para eles!

A senhora grita e chora:

- Ó professor não é assim, eles estão à minha espera, ande lá empurrar-me fora da cadeira…

 

Esta é a realidade com que se defrontam as famílias que visitam estes utentes e o quotidiano que o pessoal do lar tem que enfrentar para tratar destes adultos. Eles não estão aí, eles estão no sítio que as suas mentes lhes diz estarem. Eles estão no sítio que o seu imaginário retira da sua história de vida de antigamente. É por isso que quando falamos com eles e pronunciamos os nomes, eles não ouvem, porque como desta vez estão a encarnar o jovem namorado da garota ou a irmã que acalma.

Os funcionários não são ouvidos, não existem para estas mentes que moram noutra época histórica que não é a do minuto em que o funcionário fala com o utente. Os funcionários fartam-se de dizer: 

Anda cá… Anda cá

Mas o utente não ouve porque não está aí. O funcionário que fala não está na história de vida que o senhor ou a senhora estão a cismar neste minuto!

O funcionário não pode executar o seu trabalho de lavar, mudar fraldas, vestir pijamas, dar de comer, apaparicar eventualmente e deitar uma pessoa cuja mente não é a que o funcionário pensa que está a tratar. Normalmente a mulher que fala com a sua irmã não é ela que ouve é a irmã que responde, ela faz os dois papéis e o funcionário não sabe com quem está a falar. O meu colega de quarto que é em certos momentos um rapaz de 20 anos que namora uma garota não é o senhor que está na cama nem no quarto, mas no mato escondido a fornicar. É difícil para pessoas novas e dentro da história presente entender uma mentalidade que elabora em base de dados que a sua memória lhe fornece do seu passado. Um passado que só ele conhece e que o pessoal do lar não pode entender. 

Este é mais um elemento problemático em casa de repouso ou lar de idosos: não é o indivíduo que entra no lar trazido pela sua família que aí reside; é a constelação de vivências, ideias e sentimentos que a sua cabeça produz; é meu querido diário o que tenho observado dos três colegas de que estou a falar e outros que entram no presente histórico que na medida em que transcorre o tempo começam a elaborar uma fantasia,  que sustenta a base na qual vivem e à partir da qual se relaciona com colegas, utentes, com funcionários e com família.

Não é a doença ou a idade só que torna difícil a relação com o utente, é a elaboração fantástica quase mítica da história quotidiana. É por isso que as famílias comentam: «ele ou ela está tão mal!»

Eu diria meu senhor, minha senhora o vosso familiar não está mal, ele está noutra história.

Por favor parentes, vossos pais irmãos, avós não estão mal, estão numa história alternativa que vão criando para suportar a vida que lhe é fornecida pela interação com seres que vivem outra cronologia.

 

Professor Doutor Raúl Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto editado por Claire Smith, antropóloga.

Barra Mansa, 24 de Maio de 2024.

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