História e Fantasia no Lar
Era me difícil meu querido diário, rejeitar o convite
tão simpático, que me fez meu colega de quarto, esse antigo futebolista de 94
anos que, quando eu passava pelo corredor disse-me:
pssst, pssst…hei, Doutor ande cá,
Eu perguntei que queria e ele disse-me:
«queria convidá-lo para a matança do porco que vou
fazer.»
Eu agradeci e perguntei:
«Quando e onde?»
E ele disse-me:
Agora cá na minha casa, vê!, aí tenho o porco na
pocilga e já amarrado para o sacrificar.
- Mas agora neste
minuto?
- Venha-me e
ajude-me a mata-lo!... Há..
Acrescentou:
…quando acabarmos o trabalho temos aí umas garotas
para namorar, apalpar e foder.
Eu disse-lhe:
Mas olhe eu sou casado!
Então está bem, traga a sua mulher!
Eu acrescentei:
mas eu namoro com ela é na minha casa!
Ele disse ainda:
Não interessa por esta vez namora com ela na minha
casa enquanto eu fodo essa garota que está aí, ajude-me agora a empurrar este
marrão para o sacrificar.
Eu parado no corredor do lar como estava e agachado
para ouvir as suas palavras proferidas no sofá onde ele costuma passar o dia,
levantei-me, bati nas costas dele e disse-lhe:
Muito obrigado meu amigo, mas não pode ser, já vamos
jantar e não há tempo para tratar do porco!
Virei-me e chamei uma funcionária e disse-lhe:
Ó menina, cá está este senhor com as fraldas e as
calças molhadas de chichi e cheira-me que também tem cocó.
A menina agradeceu, foi levantá-lo. Ele gritou:
-
Não, não, não… que este animal foge, não o posso largar…
Esta história não é fantasia é a realidade que eu vivo
no quotidiano da casa de repouso onde habito. Este senhor tem também o hábito e
a fantasia de namorar as garotas que no seu imaginário andam perto dele, como
aquela que imaginariamente, levou para a sua cama, agasalhou, beijou,
apaparicou com palavras doces e ternurentas:
calma meu amor, abraça-me forte linda, abre as pernas
…
E outra fantasias que não vou referir.
Ele de certeza reproduz o dia a dia da sua vida
passada quando namorava, ele não está no lar, não está na cronologia social,
está na história que ele organiza na base das suas vivências passadas e
reminiscentes.
Tal e qual essa senhora, meu querido diário, que um
dia te contei estava sentado ao pé de mim na sala da televisão, mulher esta que
quer sempre sair e voltar para a sua casa, o que não acontece, nem pode
acontecer num lar de idosos. Então fala para a sua irmã, já defunta, mas
que no entanto ela vê no seu imaginário e que lhe diz:
Ó mana não abrem as portas, estão todas fechadas!
E ela torna a falar como se ela própria fosse esta
irmã que lhe diz:
Calma, menina calma, já vão abrir.
Ela responde:
-
Será como tu dizes?
Muda de papel passando a ser a irmã que a consola e
diz:
Claro que sim, vamos já sair.
Ou ainda essa mulher mãe de 11 filhos que me
diz:
- Ó professor, ajude-me a
levantar-me desta cadeira para ir descascar batatas que vou preparar para os
meus filhos.
Eu respondo:
Amiga, seus filhos estão nas suas casas com as suas
famílias, a senhora não tem que cozinhar para eles!
A senhora grita e chora:
-
Ó professor não é assim, eles estão à minha espera, ande lá empurrar-me fora da
cadeira…
Esta é a realidade com que se defrontam as famílias
que visitam estes utentes e o quotidiano que o pessoal do lar tem que enfrentar
para tratar destes adultos. Eles não estão aí, eles estão no sítio que as suas
mentes lhes diz estarem. Eles estão no sítio que o seu imaginário retira da sua
história de vida de antigamente. É por isso que quando falamos com eles e
pronunciamos os nomes, eles não ouvem, porque como desta vez estão a
encarnar o jovem namorado da garota ou a irmã que acalma.
Os funcionários não são ouvidos, não existem para
estas mentes que moram noutra época histórica que não é a do minuto em que o
funcionário fala com o utente. Os funcionários fartam-se de dizer:
Anda cá… Anda cá
Mas o utente não ouve porque não está aí. O
funcionário que fala não está na história de vida que o senhor ou a senhora
estão a cismar neste minuto!
O funcionário não pode executar o seu trabalho de
lavar, mudar fraldas, vestir pijamas, dar de comer, apaparicar eventualmente e
deitar uma pessoa cuja mente não é a que o funcionário pensa que está a tratar.
Normalmente a mulher que fala com a sua irmã não é ela que ouve é a irmã que
responde, ela faz os dois papéis e o funcionário não sabe com quem está a
falar. O meu colega de quarto que é em certos momentos um rapaz de 20 anos que
namora uma garota não é o senhor que está na cama nem no quarto, mas no mato
escondido a fornicar. É difícil para pessoas novas e dentro da história
presente entender uma mentalidade que elabora em base de dados que a sua
memória lhe fornece do seu passado. Um passado que só ele conhece e que o
pessoal do lar não pode entender.
Este é mais um elemento problemático em casa de
repouso ou lar de idosos: não é o indivíduo que entra no lar trazido pela sua
família que aí reside; é a constelação de vivências, ideias e sentimentos que a
sua cabeça produz; é meu querido diário o que tenho observado dos três colegas
de que estou a falar e outros que entram no presente histórico que na medida em
que transcorre o tempo começam a elaborar uma fantasia, que sustenta a
base na qual vivem e à partir da qual se relaciona com colegas, utentes, com
funcionários e com família.
Não é a doença ou a idade só que torna difícil a
relação com o utente, é a elaboração fantástica quase mítica da história
quotidiana. É por isso que as famílias comentam: «ele ou ela está tão mal!»
Eu diria meu senhor, minha senhora o vosso familiar
não está mal, ele está noutra história.
Por favor parentes, vossos pais irmãos, avós não estão
mal, estão numa história alternativa que vão criando para suportar a vida que
lhe é fornecida pela interação com seres que vivem outra cronologia.
Professor Doutor Raúl Iturra, Catedrático Emérito do
ISCTE-IUL
Texto editado por Claire Smith, antropóloga.
Barra Mansa, 24 de Maio de 2024.
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