sábado, 22 de junho de 2024

DO DIÁRIO DE VIDA DE RAUL ITURRA

 

A MÃE, UMA GARANTIA DE COMPORTAMENTO ÉTICO



Sempre pensei, Querido Diário, que a mãe era a mulher que nos gestava, dava à luz, criava e eventualmente ensinava. 

No lar onde resido ouvi a conversa da minha colega utente que fala com sua irmã, que só ela vê, a quem dizia:

  • Ó irmã, estou farta do comportamento da nossa amiga que sabes, porque rouba-me o marido e o dinheiro que tenho na carteira,

A irmã que ela imagina responde:

  • Como sabes que ela se deita com o teu marido?,

  • Porque os vi beijarem-se e abraçarem-se o outro dia,

  • Tens andado a espreitar?

  • Tenho!

  • Mas que coisa, isto não se faz, assim não recuperas o amor do teu homem,

  • Talvez não, mas tomo cuidado de que a mãe não saiba,

  • A mãe não sabe?,

  • Pois não!

Diz a minha colega utente em diálogo que ela reproduz do seu passado, que só ela conhece:

  • Enquanto a mãe não saiba está tudo bem porque não quero levar uma rebocada dela. Não quero que me diga outra vez “Ó rapariga, este homem não presta..”

  • Será que ela disse que não presta porque te faz sofrer?

  • Eu já não sei, irmã, se presta ou não, apenas não quero que a mãe saiba…


Eu fiquei perplexo como a minha amiga utente, que fala com a irmã, que se importa mais da opinião da mãe do que do comportamento do seu marido com a sua amiga. Até onde eu entendo seria mais provável dar mais importância ao relacionamento do casal, do que a conduta que mantém com a sua  mãe que um dia acabou, especialmente quando a filha se tornou mãe e a mãe avó. 

Esse respeito pela opinião da mãe o tenho também observado nas visitas quotidianas de uma imensa filharada, adulta e casada, de outra utente que não sai da sua cadeira de rodas; um dia vêm dois, outro dia três, a seguir uma filha só e assim sucessivamente ao longo das semanas. Todos eles  beijam-na, abraçam a mãe e às vezes dão-lhe o lanche como mostra de carinho, choram quando ela está perdida ou mal de saúde. Perguntam com ansiedade como tem sido o dia dela. Querem saber o que come, o que conversa, o que ela comenta. Têm-me dito que essa mãe foi quem organizou a vida deles todos até casarem e saírem de casa. Eles agradecem a entrega dessa mãe hoje em cadeira de rodas que não teve um minuto de sossego na sua dezena de gravidezes ao longo de 20 anos. Não é apenas dedicação mas é a orientação amorosa e emotiva que ela lhes deu ao longo do seu crescimento, período no qual essa mãe incutiu um comportamento religioso que ela cultivava em casa: terço em família, missa aos domingos, catequese e outros rituais religiosos com que a igreja católica ao qual eles pertencem os formou. 

Um comportamento que eu também vivi e não entendi porque nesse tempo os ritos eram numa língua desconhecida, uma língua morta que se denomina latim. Uma língua conservada no ritual católico para subjugar os membros da igreja que viviam no mistério dos motivos pelos quais os sacerdotes exigiam um determinado comportamento, especialmente na sexualidade e na emotividade.

          A Igreja Católica pensava que o entendimento da Bíblia, quer do antigo, quer do novo testamento, estava reservado ao clero que estudava e se preparava durante anos para espalhar a palavra de Deus e a liturgia que acompanhava o sermão. Que um secular entendesse estes textos, era heresia que bradava ao céu e que podia causar a condenação de quem não estava preparado para entender a palavra divina que sem preparação podia ser mal entendida. 

Eu não consigo esquecer os sermões que o missionário da terra em que nasci costumava dizer no sermão da tarde: “Em cima está o céu aberto, em baixo o inferno aberto também; entre o céu aberto e o inferno aberto, estamos nós suspenso por um fio que a morte pode cortar e  irmos cair no inferno ou subirmos ao céu. Porque é mais fácil cair do que se levantar”. E enquanto dizia isto brandia o crucifixo com um Jesus semi nu, morto. E ele dizia “será que este Cristo impede-nos de arder eternamente para nos levar a uma vida de alegria e tranquilidade?”. Não consigo esquecer o medo que a homilia me dava e admirando-me a preparação do sacerdote por incutir fé através do medo.

São estas ideias que a mãe da minha amiga que fala com a sua irmã, incutiu também na sua descendência. Eram também as ideias que a mãe hoje sentada na cadeira de rodas transmitia à sua filharada como me tem contado; eram também estas as ideias que a minha mãe me transmitia a mim porque nunca esqueço o dia em que me falou e me perguntou “Ó filho porquê tens tanta olheira”, “eu olheira minha mãe, não sabia”. “Tens, tens, teus olhos estão pretos por baixo das pálpebras, tens por acaso maus costumes?”. Eu sem saber o que eram maus costumes, por princípio de auto defesa respondi: “ não mãe, não tenho” e fiquei duvidoso de que seriam esses maus costumes. Corri e perguntei a um amigo meu da minha idade, os dois com 13 anos e contei-lhe a conversa e perguntei-lhe o que serão esses “ maus costumes”; Ele riu na sua liberdade de vida, filho como era de pais maçons e ateus,  “maus costumes, é o que a gente faz : bater punheta”, “Bater punheta, o que é isso?”, “É o que tu chamas de forma tão elegante masturbação”. “Ah.. então isso é um mau costume?” “ Pois é!” e riu… Eu fiquei espantado porque a mãe tinha me dito que um mau costume era um pecado que só um confessor podia perdoar em nome da divindade. A partir deste dia lutei violentamente por não me masturbar e passei a andar atrás de uma empregada jovem que havia em casa para me deitar com ela, porque não me tinha sido dito que foder fosse um mau costume. A partir dos meus 13 anos tentei libertar-me do julgamento moral sobre o meu comportamento sexual secreto, fugindo da masturbação procurando a cama duma rapariga sem sempre consegui-lo e voltando assim ao pecado... Nem me confessava sobre a minha vida sexual por temor que os sacerdotes amigos da mãe dessem a entender que eu devia ser vigiado na minha sexualidade e na emotividade.

          Deve ser assim como os filhos das minhas amigas utentes têm se relacionado com as suas mães sempre a pensar na salvação e na perdição entre o céu e o inferno. É assim que a minha amiga utente que fala com a sua irmã, que só ela vê, tem mais medo da crítica materna do que a da traição do marido com a sua amiga. É assim que a minha amiga utente em cadeira de rodas deve ter educado suas crianças para respeitar a castidade ensinada a partir do exemplo de Jesus, José e Maria que nunca tiveram experiência sexual ou emotiva como nos é transmitido pelos ditos assexuados e servos sacerdotes católicos que já não falem em latim mas ensinam os mistérios da vida, morte e ressurreição de Jesus e a subida ao céu em corpo e alma da sua mãe, a Virgem Maria, como dizem agora em língua natal para todos entendermos.

          Nunca pensei, querido diário, que as mães também fossem uma garantia de comportamento ético e social, ensinadas a serem assim pela catequese obrigatória da igreja católica; nunca pensei que era necessário dominar a multidão de fiéis na base da sua sexualidade e amor, como a clerecia é dominada. Nunca pensei nas lutas do Papa Roncaglio, João XXIII , que mandou o fim da missa em latim e ordenou a prática do ritual e a leitura da palavra divina em língua natal. Anos de luta fratricida entre cristãos: católicos contra protestantes, homens salvos contra hereges, que ele acabou duma penada. Mas não acabou com a subordinação do comportamento social e individual pela imitação do comportamento dos ícones santos, pessoas  que a igreja salienta como exemplos.

          Tudo isto pensei quando ouvi estas três mães, a minha e as minhas duas colegas utentes. São as garantes do comportamento ético que a doutrina religiosa prescreve. Apenas que a minha colega que fala com a irmã que só ela vê, acaba por dizer “Vai tudo à merda, não me importa esse marido, essa amiga é nojenta, o dinheiro que perdi o recuperei no trabalho, e só vou me importar dos meus filhos”; ou a mãe em cadeira de rodas começa a gritar de manhã cedo ”foda-se, caralho, deixem-me em paz, quero comer, calem a boca…” e outras ideias semelhantes, palavras que demonstram a sua libertação dos ensinamentos dogmáticos que ela, no entanto, já incutiu na sua filharada, acreditem eles ou não essa doutrina religiosa. Ou a minha mãe que no seu leito de morte me perguntav incessantemente: “Onde está o pai, onde está o pai, onde está o pai…”, sem se lembrar para nada da divindade…. Será que elas estão em pecado…?

          É uma pena, meu Querido Diário a sorte das mães  submetidas a uma imagem ética que passa a ser a estética da vida em comum, da solidariedade social. Que está no dogma desde que não prejudique a alegria de viver que reside na afetividade e no prazer sexual. É o que penso da vida através do meu convívio no lar.


Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith Antropóloga

Barra Mansa, Junho de 2024 


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