sexta-feira, 19 de abril de 2024

“Graffitar a Literatura” (VIII)

 Luís Souta
(Texto e foto)

AMADA MORRISON 

«este é o tempo das mulheres na literatura»
(Fernanda Melchor, Ípsilon, 15/03/2024, p. 25) 

Cascais, Outeiro da Vela, Av. Engº António de Azevedo Coutinho] 

«Eu sou Amada e ela é minha. Sethe é aquela que apanhou as flores, flores amarelas, antes de ficarmos agachados. Colheu-as das plantas verdes. Elas estão na colcha onde dormimos. Ela ia sorrir para mim quando os homens sem pele vieram e nos levaram com os mortos para o sol e empurraram-nos para o mar. (…) Sethe é o rosto que encontrei e perdi na água debaixo da ponte. Quando entrei, vi o seu rosto vindo para mim, e era o meu rosto também. Quis juntar-me a ela. Tentei, mas ela subiu em pedaços de luz para o alto da água. Perdi-a de novo, mas encontrei a casa em que ela sussurrava para mim. E lá estava ela, sorrindo, finalmente. É bom, mas não posso perdê-la de novo. Tudo o que quero saber é porque é que ela entrou na água naquele lugar onde ficámos agachados. Porque é que fez isso mesmo na hora em que ia sorrir para mim? Quis juntar-me a ela no mar, mas não podia mexer-me; quis ajudá-la quando apanhava flores, mas as nuvens de pólvora cegaram-me e eu perdi-a. Três vezes e perdi-a (…) Agora encontrei-a nesta casa. Ela sorri para mim e é o meu próprio rosto sorrindo. Não a perderei de novo. Ela é minha.» (pp. 274-5)

Amada (Beloved) é o primeiro romance de uma trilogia que inclui Jazz (1992) e Paraíso (1997). O livro de Toni Morrison recebeu o Prémio Pulitzer (1988) tendo sido mais tarde adaptado, ao cinema, por Jonathan Demme (USA, 1998), com interpretações de Oprah Winfrey (Sethe), Danny Glover (Paul D.), Thandiwe Newton (Beloved)… Toni Morrison baseou-se na história real da ex-escrava Margaret Garner e da relação com filha que nasce durante a sua fuga de uma plantação do Kentucky.

A ilustração da capa, de uma das edições portuguesas, de Amada (Difusão Cultural, 1989) é da brasileira Glair Alonso Arruda. Vislumbro nela similitudes visuais com esta mulher do trabalho plástico de oats.ink na sua intervenção de street art em Cascais[1], que veio dar outro colorido e animação estética a duas paredes contíguas de um incaracterístico e anódino equipamento urbano da EDP. Uma mulher jovem, negra, de cabelo preto, curto, sobrancelhas grossas, lábios espessos, olhos cerrados. A outra (a da capa do livro) de olhos abertos. Podia ser a mesma pessoa, em dois momentos sequenciais. Mas em ambas, não se vislumbra qualquer alegria nos seus estados de alma. Mulheres sofridas? Muito provavelmente… A mulher que oats.ink desenhou e pintou podia muito bem ilustrar a capa de Amada. 

Ilustração da capa de Amada, Difusão Cultural, 1989]

A autora, a norte-americana Toni Morrison (de seu nome Chloe Anthony Wofford, 1931-2019), natural de Lorain estado de Ohio, e formada em Estudos Ingleses pelas Universidades de Howard, Washington e Cornell, NY (1949-1955). Foi editora (Random House[2]) e professora universitária em diversas universidades, acabando na Princeton (1989-2006); desde 1981 membro da Academia Americana das Artes. Foi a primeira escritora negra a receber o Prémio Nobel da Literatura (1993); a Academia sueca sublinhou então a sua «força visionária e relevância poética». A defesa intransigente da liberdade, da dignidade humana e da igualdade, num persistente combate ao racismo, colocaram-na como uma voz de referência na sociedade americana, muito em especial, entre a comunidade negra, emparceirando com James Baldwin (1924-1987), essa figura central do Movimento dos Direitos Civis que, com clarividência, assegurava: «A glorificação de uma raça em detrimento de outra – ou outras – tem sido e será sempre uma receita para o morticínio.»

A sua obra, muito baseada na experiência das mulheres afro-americanas, contribui de forma poderosa para a construção positiva dessa identidade negra. O então presidente Barack Obama condecorou-a, em 2012, com a Presidential Medal of Freedom (a mais alta condecoração civil dos EUA concedida pelo Presidente), considerando-a «um tesouro nacional».

Morrison publicou onze romances, entre os quais, O Olho mais Azul (1970), Sula (1973), Song of Solomon (1977), A Dádiva (2008), Voltar para Casa (2012), Deus Ajude a Criança (2015), seis livros de literatura infantil (com seu filho Slade Morrison), teatro e até o libreto de uma ópera – Margaret Garner (2015). Publicou diversos ensaios, num deles – A Origem dos Outros: seis ensaios sobre racismo e literatura (Companhia das Letras, 2019), as Palestras Norton da Universidade de Harvard, 2016 – desenvolve o conceito de «literature of belonging».

 «Eu não olho para a política ou para a ciência. Eu olho para a literatura em busca de orientação, e isso é o que vou fazer.» (Ípsilon, 18/03/2016, p. 16)

Amada é a magnum opus de Toni Morrison, romance que exige um leitor atento, activo, disponível para entender o encantamento desse imbricar da realidade com a magia.

«Na quinta, Lady Jones surpreendeu-a a espionar.

– Entra pela porta da frente, querida Denver. Aqui não é um parque de diversões.

Assim, Denver passara quase um ano inteiro na companhia dos seus pares e juntamente com eles aprendera a ler e a contar. Estava com sete anos e aquelas duas horas ao fim da tarde eram preciosas para ela. Mais ainda porque fora até lá sozinha e vira o prazer e a surpresa no rosto da mãe e dos irmãos ao contar-lhes a proeza. Por um níquel por mês, Lady Jones fazia aquilo que os brancos achavam desnecessário, senão ilegal: enchia a pequena sala de visitas com crianças negras que tinham tempo e interesse em aprender a ler. O níquel, que Denver levava atado num lenço e preso ao cinto para entregá-lo à professora, fazia-a sentir-se importante. Empolgava-se com o esforço em manusear correctamente o giz e evitar o guincho que ele poderia fazer na lousa. Adorava o W maiúsculo, o i pequenino, a beleza das letras no seu próprio nome, as frases da Bíblia cheias de lamento que Lady Jones usava como cartilha.» (pp. 132-3) 

Notas

1. Uma iniciativa da Wallmob, associação que procura «dinamizar a Arte Urbana do Concelho de Cascais.

2. Desafiou Angela Davis a escrever Uma Autobiografia (Antígona, 2023), quando esta tinha apenas 28 anos; editou-o em 1974 e sobre ela escreveu: «Angela é a mulher mais feroz que alguma vez conheci e eu venho de uma longa linhagem de mulheres ferozes.»

Em breve será publicado o livro A TRÍADE DISJUNTIVA: Literatura, Antropologia e Educação que reúne, na sua II parte, os 30 textos desta rubrica que aqui fui editando desde 07/09/2014.

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