SENTIMENTO DE CULPA
O trabalho dos funcionários do lar e a interação
funcionário - utente que dinamiza a actividade do lar, meu Querido Diário,
tem-me ocupado a maior parte do tempo na minha meditação. É difícil entender
essa interação pelo excesso de trabalho dos funcionários e a falta de
entendimento de muitos dos utentes como já te tenho dito em capítulos
prévios.
O velhote que compartilha comigo o quarto que uso, a maior
parte das noites baixa as fraldas que os seus noventa e quatro anos de idade
lhe pedem e faz chichi desde a sua cama para o chão. Ao sentir o ruído dessa
curva de urina nos mosaicos do chão, corri ao pé dele para impedir maior
problema, mas ele já tinha mijado a fralda, as calças, os lençóis e as mantas
antes do chichi cair no chão. Eu, triste pelo espectáculo e pela humidade da sua
cama, às 23 horas da noite fui chamar uma funcionária de turno para mudar
pijama e mantas. Ela limpou o chão com uma esfregona e disse que já voltava,
saiu e nunca mais soube dela. Pensava eu, coitado do meu colega de quarto com
frio, de certeza, por causa da humidade das suas coberturas. Era-me triste
pensar que ele tivesse de dormir de forma tão pouco confortável, mas dormiu
igual a noite toda. Senti raiva pela funcionária não lhe mudar as roupas
molhadas com urina e falei no dia seguinte perguntando o porquê. A funcionária
me disse que já não conseguia trabalhar mais, cansada como estava no seu labor
desde as 9.30 da manhã; exausta estava. O meu colega de quarto nem sabia que
estava molhado, a funcionária não conseguia fazer mais nada. Ela tinha tentado
envergonhar o velhote mijão pelo seu comportamento sem higiene, e ele não
percebeu. Ela lhe disse que Deus estava zangado pelo que tinha feito, mas, ele
olhava para ela e dizia “o quê, o quê, o quê…" e adormeceu.
O jogo do lar é como o comportamento da igreja católica com
os seus fiéis, é a procura do sentimento de culpa para submeter a pessoa a um
obedecimento cego, uma manipulação para conseguir os objetivos de trabalho. Ou
seja: lavar a pessoa, vestir a mesma, encaminhá-la para o
refeitório ou para a sala de convívio, alimentá-la ou distraí-la. É a ideia de
pecado que todas as religiões trabalham e que existe já na mente de
funcionários e utentes. Retiram do comportamento social, pelo pensamento mágico
que as religiões incutem na mente de quem tem vivido submetido à vontade da
divindade, um sentimento de culpa que submete a pessoa individual a um
comportamento social adequado ao objetivo que o lar pretende para manter a vida
do utente.
No lar observo reiteradamente muita reprimenda do tipo mãe
para filho, o que rebaixa a dignidade das pessoas como seres humanos, tratadas
como entidades culpadas do pecado de desobediência a Deus, o pecado original
dos cristãos, do qual devem fugir. A luta pelo poder está no seio da teoria
cristã, uma luta constante dentro do lar em que o mandar está sempre na boca
dos funcionários para retirar essa ideia de autonomia dos utentes. Normalmente
as palavras são “ou comes ou vais para o hospital”, “ou não gritas ou
vais para o quarto sem comer!”, “ou te comportas como deves ser ou vou dizer
aos teus filhos”.
Os funcionários parecem pensar que é bom trabalhar com a
culpa pelos resultados positivos que pode proporcionar. Eles pensam que assim
todos vão obedecer pelo conceito de culpa usado que, até o velhote do meu
quarto é capaz de entender quando está mais descansado. Fome e frio, cansaço e
bem estar, ouvir e fazer, são os elementos dinâmicos para submeter o utente ao
trabalho do funcionário. Parece-me estar a ouvir sempre “ai, ai, ai! o que
vai dizer a tua filha quando saiba isto”, “por amor de Deus ou comes ou vais
para o hospital!”, “ou para de gritar ou não há comida”. Para materializar
estes objetivos de culpa - submissão, os funcionários contam com comprimidos
receitados por quem trata da medicação do lar que, meu querido diário, eles
colocam na boca do utente da mesma forma em que se empurra uma moeda num
gira-discos de um espaço público para baixar o disco da música que se quer
ouvir, ou como a moeda que se coloca na máquina de baloiçar um cavalo para as
crianças se divertirem. Não há simpatia, não há carinho, não há cuidado,
empurra-se o comprimido, dá-se um copo de água e grita-se “bebe, bebe”.
O comprimido cai como a moeda na caixinha que espoleta o disco para tocar ou o
cavalo para divertir, sem simpatia e sem doçura com um “ai, ai, ai!”
eterno.
É evidente que tomar conta de velhos é um trabalho pesado, é
evidente que o trabalho num lar é pouco estimado e cansa, mas quando no fim da
vida um ser humano quer carinho, descanso, compreensão, carícias, beijos, o “ai,
ai, ai!” e o “deve ser!” não devia ser usado. Essas pessoas precisam
de carinho como o velhote do meu quarto que tem começado a gritar ao longo da
noite “mãe, mãe, mãe... acuda-me, mãe vem!” e soluça, chora profundamente.
Perante isso levanto-me, faço carinho e digo “a mãe já vem”, ele
tranquiliza-se e dorme. Os funcionários cansados, super explorados, não
conseguem gerir sentimentos para apaparicar. Eles deitam a pessoa e saem
a correr para ir buscar o próximo que tem que deitar. Há momentos em que
relaxam e riem com simpatia estimulando a pessoa a rir também, mas pouco tempo
têm para isso.
Ó meu querido diário, sentimento de culpa tem sido o mais
usado nas diversas estruturas religiosas que eu conheço. Hoje em dia estamos
mais livres para diminuir o medo do inferno, já quase ninguém acredita nele,
mas a história mostra-nos como até faz pouco as instituições chamadas igrejas e
seus fiéis têm aderido ao medo que o pecado causa.
Medo infelizmente para estruturar o pensamento mágico que cria o comportamento entre funcionário e utente. O conceito de culpa funciona hoje em dia incutindo o medo do pecado por pessoas específicas que detêm o poder e agem de forma contrária aos nossos desejos ou doenças que vão matando pessoas por causa de vírus novos e que as religiões definem como a ira de Deus sobre uma humanidade pecadora. Isto é também como se manipula dentro do lar.
Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do
ISCTE-IUL
Texto Editado por Claire Smith Antropóloga
Barra Mansa, Abril de 2024
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