quarta-feira, 24 de abril de 2024

Do Diário de Vida de Raul Iturra


SENTIMENTO DE CULPA 

O trabalho dos funcionários do lar e a interação funcionário - utente que dinamiza a actividade do lar, meu Querido Diário, tem-me ocupado a maior parte do tempo na minha meditação. É difícil entender essa interação pelo excesso de trabalho dos funcionários e a falta de entendimento de muitos dos utentes como já te tenho dito em capítulos prévios. 

O velhote que compartilha comigo o quarto que uso, a maior parte das noites baixa as fraldas que os seus noventa e quatro anos de idade lhe pedem e faz chichi desde a sua cama para o chão. Ao sentir o ruído dessa curva de urina nos mosaicos do chão, corri ao pé dele para impedir maior problema, mas ele já tinha mijado a fralda, as calças, os lençóis e as mantas antes do chichi cair no chão. Eu, triste pelo espectáculo e pela humidade da sua cama, às 23 horas da noite fui chamar uma funcionária de turno para mudar pijama e mantas. Ela limpou o chão com uma esfregona e disse que já voltava, saiu e nunca mais soube dela. Pensava eu, coitado do meu colega de quarto com frio, de certeza, por causa da humidade das suas coberturas. Era-me triste pensar que ele tivesse de dormir de forma tão pouco confortável, mas dormiu igual a noite toda. Senti raiva pela funcionária não lhe mudar as roupas molhadas com urina e falei no dia seguinte perguntando o porquê. A funcionária me disse que já não conseguia trabalhar mais, cansada como estava no seu labor desde as 9.30 da manhã; exausta estava. O meu colega de quarto nem sabia que estava molhado, a funcionária não conseguia fazer mais nada. Ela tinha tentado envergonhar o velhote mijão pelo seu comportamento sem higiene, e ele não percebeu. Ela lhe disse que Deus estava zangado pelo que tinha feito, mas, ele olhava para ela  e dizia “o quê, o quê, o quê…" e adormeceu. 

O jogo do lar é como o comportamento da igreja católica com os seus fiéis, é a procura do sentimento de culpa para submeter a pessoa a um obedecimento cego, uma manipulação para conseguir os objetivos de trabalho. Ou seja: lavar a pessoa, vestir a mesma,  encaminhá-la para o refeitório ou para a sala de convívio, alimentá-la ou distraí-la. É a ideia de pecado que todas as religiões trabalham e que existe já na mente de funcionários e utentes. Retiram do comportamento social, pelo pensamento mágico que as religiões incutem na mente de quem tem vivido submetido à vontade da divindade, um sentimento de culpa que submete a pessoa individual a um comportamento social adequado ao objetivo que o lar pretende para manter a vida do utente. 

No lar observo reiteradamente muita reprimenda do tipo mãe para filho, o que rebaixa a dignidade das pessoas como seres humanos, tratadas como entidades culpadas do pecado de desobediência a Deus, o pecado original dos cristãos, do qual devem fugir. A luta pelo poder está no seio da teoria cristã, uma luta constante dentro do lar em que o mandar está sempre na boca dos funcionários para retirar essa ideia de autonomia dos utentes. Normalmente as palavras são “ou comes ou vais para o hospital”, “ou não gritas ou vais para o quarto sem comer!”, “ou te comportas como deves ser ou vou dizer aos teus filhos”.

Os funcionários parecem pensar que é bom trabalhar com a culpa pelos resultados positivos que pode proporcionar. Eles pensam que assim todos vão obedecer pelo conceito de culpa usado que, até o velhote do meu quarto é capaz de entender quando está mais descansado. Fome e frio, cansaço e bem estar, ouvir e fazer, são os elementos dinâmicos para submeter o utente ao trabalho do funcionário. Parece-me estar a ouvir sempre “ai, ai, ai! o que vai dizer a tua filha quando saiba isto”, “por amor de Deus ou comes ou vais para o hospital!”, “ou para de gritar ou não há comida”. Para materializar estes objetivos de culpa - submissão, os funcionários contam com comprimidos receitados por quem trata da medicação do lar que, meu querido diário, eles colocam na boca do utente da mesma forma em que se empurra uma moeda num gira-discos de um espaço público para baixar o disco da música que se quer ouvir, ou como a moeda que se coloca na máquina de baloiçar um cavalo para as crianças se divertirem. Não há simpatia, não há carinho, não há cuidado, empurra-se o comprimido, dá-se um copo de água e grita-se “bebe, bebe”. O comprimido cai como a moeda na caixinha que espoleta o disco para tocar ou o cavalo para divertir, sem simpatia e sem doçura com um “ai, ai, ai!” eterno.

É evidente que tomar conta de velhos é um trabalho pesado, é evidente que o trabalho num lar é pouco estimado e cansa, mas quando no fim da vida um ser humano quer carinho, descanso, compreensão, carícias, beijos, o “ai, ai, ai!” e o “deve ser!” não devia ser usado. Essas pessoas precisam de carinho como o velhote do meu quarto que tem começado a gritar ao longo da noite “mãe, mãe, mãe... acuda-me, mãe vem!” e soluça, chora profundamente. Perante isso levanto-me, faço carinho e digo “a mãe já vem”, ele tranquiliza-se e dorme. Os funcionários cansados, super explorados, não conseguem gerir sentimentos para  apaparicar. Eles deitam a pessoa e saem a correr para ir buscar o próximo que tem que deitar. Há momentos em que relaxam e riem com simpatia estimulando a pessoa a rir também, mas pouco tempo têm para isso. 

Ó meu querido diário, sentimento de culpa tem sido o mais usado nas diversas estruturas religiosas que eu conheço. Hoje em dia estamos mais livres para diminuir o medo do inferno, já quase ninguém acredita nele, mas a história mostra-nos como até faz pouco as instituições chamadas igrejas e seus fiéis têm aderido ao medo que o pecado causa.

Medo infelizmente para estruturar o pensamento mágico que cria o comportamento entre funcionário e utente. O conceito de culpa funciona hoje em dia incutindo o medo do pecado por pessoas específicas que detêm o poder e agem de forma contrária aos nossos desejos ou doenças que vão matando pessoas por causa de vírus novos e que as religiões definem como a ira de Deus sobre uma humanidade pecadora. Isto é também como se manipula dentro do lar.

Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith Antropóloga

Barra Mansa, Abril de 2024 


Sem comentários: