quinta-feira, 17 de outubro de 2019

GRAFFITAR A LITERATURA (XX)


             
             Foto de Luís Souta, 2015                                            Foto de Luís Souta, 2019
Rua Afonso Sanches, nº60, Cascais
                     
                                                                                                                                       
«– Atenção, meninos, vames fazere o ditade. Quem fazer erres, é castigade.
E não se esqueçam, ditade com “ó” no fim.»
(“Falares Ilhéus” in Arsénio e Rendas Velhas, Ricardo França Jardim, 1996: 24)

Este graffiti não assinado, do Muraliza 2015 – Festival de Arte Mural de Cascais, remete-nos, de imediato, para os caminhos do abc e o ensino das primeiras letras (do título da tese de doutoramento, de 1994, do querido e saudoso amigo Rogério Fernandes). A ineficácia das aprendizagens escolares agrava-se sempre que há mudanças linguísticas introduzidas pelos acordos ortográficos.
Recordo aqui um texto de 1971 “Um Instrumento Maravilhoso Atravessava a Cidade…” incluído num livro de «histórias e invenções» (segundo a categorização do próprio autor, José Gomes Ferreira1900-1985) – O Irreal Quotidiano: 
«Parece impossível!» – descompuseram-me. – «Escreveres vaca só com um «c». Assim nunca serás alguém na vida!» E a senhora professora, vexada por eu ter apanhado um suficiente (a classificação predilecta do meu cadastro estudantil pela existência fora), mandou-me escrever, por castigo, cinquenta vezes a palavra vacca com dois «cc»… Uma manada que nunca mais acabava de pastar na lentidão da planície sonolenta do caderno…
Por felicidade, decorridos dois ou três anos, proclamou-se a República e eu vinguei-me. Vim para a rua com o coração sangrento de bandeiras alegres (foi o dia mais feliz da minha infância!) e, enquanto os carbonários guardavam os bancos (só com um «c») eu, com o tempestuoso furor dos iconoclastas de coisas mínimas, destruía todas as letras dobradas que encontrava nos livros (vivam os erros de ortografia!), os «cc», os «tt» e, por fim, os «ph ph» e os «th th» sem falar nos «yyy», da minha especial embirração, por andarem a fingir de perfurantes e profundos.» (p. 14)

Um outro livro, de «crónica, romance, memorial e testamento», nas palavras do seu autor (Miguel Torga, 1907-1995) – A Criação do Mundo - o Primeiro Dia, publicado em 1937 (e refundido na 4ª edição de 1969), remete-nos também para esse universo da escola primária, e das (difíceis) aprendizagens da escrita e do ‘ruído’ que as novas ortografias acarretam:
«– Papel de trinta e cinco linhas. Ditado!
A esta palavra, a sala ficava silenciosa. (…)
O mestre, encostado à secretária, o livro na mão esquerda, a cana da Índia na direita, continuava:
– O calor, vírgula; a luz, vírgula; o som, vírgula; são agentes físicos. Ponto. Fí-si-cos... Já se não usa o ph, como lhes tenho ensinado. Há ainda certos autores que o empregam, mas só por caturrice…» (p. 15)

O terceiro livro – Alma (1995) de Manuel Alegre – fala-nos de um professor primário empenhado na defesa a todo o custo (nem que para isso tenha que recorrer a uma ‘pedagogia musculada’) do património linguístico:
«Ninguém ensinava gramática como Lencastre. (…)
Tinha com a língua portuguesa uma relação, por assim dizer, carnal. Ou religiosa. Ou ambas. Sentia que a missão da sua vida era defender a língua, ensinar a falá-la com as sílabas todas, obrigar a escrevê-la sem erros, o predicado a concordar com o sujeito. Ai de quem, na leitura, comesse a última sílaba, ou de quem, na cópia, borrasse a escrita. Lencastre podia ficar completamente alterado por causa de uma sílaba engolida, uma vírgula mal posta, um erro de ortografia, um verbo mal conjugado.» (p. 78)

Estes três extractos ilustram bem a realidade educativa do país, no século XX, no que respeita ao ensino da língua materna (em particular na vertente da correcção ortográfica).

E hoje? Não é nada fácil ser-se professor de Português quando o AO90 lançou a confusão no que parecia ser consensual – ‘como escrever sem erros’. Infelizmente, «o caos ortográfico está instalado» (Mª Filomena Molder, Público, 4/5/15, p. 47). Qualquer docente (e muito em especial o de Português) vive, presentemente, num dilema profissional: aceitar as directivas da tutela (reforçadas no seguidismo acrítico dos sindicatos) que obrigam a aplicar as directivas desse ‘acordo’ ou seguir o que estipulava (e bem) o relatório académico que antecedeu o acordo de 1945 (e que Nuno Pacheco, jornalista do Público, nos relembra no seu artigo de 11/3/16, p. 54): «Não se consentem grafias duplas ou facultativas. Cada palavra da língua portuguesa terá uma grafia única.»

O resultado desta deriva, na sociedade e na escola, está aí e é por demais evidente: o AO90 «desfigurou a fisionomia do Português (…) e o resultado é que não se fica a escrever nem em Português nem na ortografia imposta, escreve-se em língua que não existe, não é a da lei, nem a usual!» (Mª Alzira Seixo, Público, 25/2/14). Entretanto, o jornalista Nuno Pacheco acabou de publicar um livro imperdível: Acordo Ortográfico – Um Beco com Saída (Gradiva, 2019).
Até a língua hoje nos desune!

Post Scriptum
Da EDP (controlada pela China Three Gorges e dirigida, há anos, pelo CEO António Mexia) todos conhecemos desmandos, prepotências e arbitrariedades. É uma ‘toda poderosa’ que esbulha os clientes e fala grosso com os governantes, mansos e submissos (perante o Capital) e que olvidam o mandato democrático de que foram investidos – baterem-se pelo «bem comum».
Este caso, que aqui reporto, é uma minudência, sem dúvida, mas denota a arrogância do quero-posso-e-mando da EDP. No âmbito do Muraliza 2015, João Samina brindou-nos com um mural, numa vivenda degradada, no cruzamento da Travessa do Visconde da Luz com a Rua Affonso Sanches (assim mesmo, com letra dobrada, como ainda ver na antiga placa toponímica); no nº 60 desta rua, no muro da frente, desenharam uma criança (poderia ser o neto do velho pescador do stencil de Samina) segurando um cartaz onde se lê «Educassão é icenssial». Tal frase serviu-me então de mote ao texto, publicado no Estudo Geral de 23/04/2016, sobre as tropelias ortográficas cometidas pelos alunos da primária do século XX, ilustradas em obras de José Gomes Ferreira, Miguel Torga e Manuel Alegre.
Pois naquela longa rua, a EDP foi colocar a caixa de electricidade mesmo em frente do graffiti (ficou a cabeça do miúdo para testemunhar o atentado de que foi alvo). Esta atitude dos serviços técnicos da EDP revela o desdém pela arte de rua, pois actua como se o espaço público fosse pertença sua, regendo-se pelos seus critérios, onde os estéticos estão, naturalmente, omissos.
Num tempo em que se vulgarizou a figura do provedor (e há-os para quase tudo), talvez a Câmara Municipal devesse criar o lugar de «provedor da street art».

Luís Souta

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