domingo, 26 de novembro de 2023

"Literatura: o pão nosso de cada dia" (XX)

 Luís Souta

Questionar a escola

PERSPECTIVAS DA ANTROPOLOGIA DA EDUCAÇÃO

«A escola parecia-lhe bastante néscia, local onde geralmente insistiam no desinteressante,
escamoteando tudo o que pudesse ter um brilho de fascínio ou utilidade.»
(“O companheiro sinistro” in Os Sensos Incomuns, Maria Isabel Barreno, 1993:62)

Outras razões se podem avançar como explicativas para o não cumprimento da escolaridade obrigatória de 12 anos. Com a crescente massificação na entrada, coube ao insucesso escolar a função de manter a selectividade do sistema. A escola continuava fiel à sua génese: «criada para desnivelar as diferenças entre seres humanos» (Iturra, 1995:99). A instituição escolar não deu mostras de adaptabilidade à heterogeneidade dos novos públicos, portadores de culturas e estilos de vida bem distintos dos há muito dominantes no ensino. Exigiu-se, pelo contrário, a descaracterização cultural dessas crianças e jovens. A assimilação era o objectivo. A escola massificadora pautava-se por uma matriz estandardizada, unificadora e de rejeição das diferenças, fossem elas de género, classe social, étnicas, religiosas, linguísticas ou outras. Aos alunos exigia-se a aceitação do intocável modus vivendi escolar. Nesta perspectiva, os saberes de que os alunos eram portadores eram ignorados e depreciados, pois desconsiderava-se toda essa vivência exterior ao aprendizado escolar. As relações com o meio e, em particular, com as famílias eram evitadas. A escola fechada e centrada sobre si, auto-suficiente, era um “bunker” para a transferência livresca do saber letrado, abstracto e descontextualizado. No essencial, mantinha os traços fundadores e, naturalmente, continuava a “produzir” um tipo de aluno – o homo scholaris – que, também ele, não se distinguia das gerações precedentes. Hábitos, comportamentos e valores reproduzem-se, num processo de ensino e aprendizagem marcados pela continuidade e conservadorismo. De facto, a escola pouco tem mudado. O discurso político, dos líderes pedagógicos ou dos reformistas vai-se alterando (ainda que ao ritmo do “pêndulo oscilante”), mas a retórica e o texto legal não se podem confundir com a realidade das práticas escolares, que a observação participante e a literatura revelam como estáveis.

 É no quadro de alargamento da escolaridade a populações que tradicionalmente dela estiveram arredadas e dos problemas daí decorrentes – insucesso e abandono – que a Antropologia da Educação emerge com um importante contributo para a compreensão destes fenómenos. Historicamente, a Antropologia esteve próxima destes novos destinatários do “civilizacional bem educativo”, fossem eles (e/i)migrantes, gente rural, piscatória ou de grupos sociais mais ou menos marginalizados pelo desenvolvimento e pelo urbanismo. O conhecimento dessas culturas tinha sido, em certa altura, a razão de ser da disciplina antropológica. Foram o seu objecto de estudo privilegiado. As formas como adultos e crianças se relacionam e partilham a vida, em contextos informais de aprendizagem quer as experiências quer os saberes necessários à manutenção e reprodução da vida do grupo, foi dos aspectos que mereceu particular interesse por parte dos professores. A escola começava agora a questionar-se. Os seus ancestrais pilares eram postos em causa. O problema não estava tanto na criança (e no seu grupo doméstico) a quem era detectado um “défice cultural” mas na estrutura, organização e práticas curriculares da própria escola.

 «Lembro-me de pensar: “Como é que é possível que crianças tão criativas, tão observadoras, tão prontas a fazer perguntas e a defender as suas ideias tenham tão maus resultados na escola” E lembro-me de chegar à conclusão que era a escola que estava errada e não elas. Em muitos casos, aliás, ainda está.» (Elvira Leite e a sua experiência com os miúdos do Bairro da Sé, no Porto, em 1976-77).

 Reconhecer que também estes jovens eram portadores de um «capital cultural» e de formas próprias de entender e dar significado ao mundo real foi o princípio da mudança que ao respeitar a iden tidade do “outro” lhe atribui capacidades para um percurso de sucesso no seio escolar. Para tanto, a escola teria que repensar a sua escala de valores, abandonar a sua «cultura social de discriminação» (Afonso, 1998:272), legitimar um conjunto de saberes práticos que este tipo de alunos eram detentores e diversificar os métodos de ensino no sentido de uma maior  individualização. Articular esses dois mundos – o escolar e o de origem dos alunos – passou a ser um objectivo de acção educativa, agora já numa lógica de «escolapara todos» a que, alguns,  apelidam de «inclusiva». Os professores passam então a percepcionar o «meio» como uma recurso potenciador de aprendizagens significativas para os seus alunos e a ele recorrem como fonte de conhecimento, “laboratório” social e terreno pedagógico. Já Rui Grácio (1963:120-1) propunha:

 «Uma óptica que alargasse o campo de visão, da aula até ao pátio da escola e ao lar do aluno, e discernisse nestes três personagens que habitam uma só personalidade, repartida entre as obrigações familiares, discentes e de camaradagem.»

 E é neste novo quadro, de contacto directo com o «meio social envolvente», onde a aproximação às famílias ganha outro sentido para além da instrumental colaboração pedagógica, que a Antropologia da Educação evidencia toda a sua utilidade científica e metodológica.

Tal como o exprime Telmo Caria «a etnografia cria condições para entender a cultura do outro» (1999:27). A abordagem directa, personalizada e continuada junto das populações permite conhecer as culturas em presença, na sua globalidade. O conhecimento desses  saberes particulares possibilita a compreensão daquilo a que Raúl Iturra (1990) designa como a «memória cultural» dos jovens estudantes, marcada pela genealogia, pelo local e pelasexperiências do agir quotidiano. Na “posse” de tal conhecimento (que as histórias de vida mais facilmente possibilitam), o professor saberá então articulá-la com a «memória nacional», de que a escola é depositária. E deste modo o aluno deixa de ser esse ente anónimo para passar a ser visto pelos professores como pessoa, portadora de uma cultura. O desencontro entre o que  e o como se ensina e o que e o como aprende tende assim a ser minimizado. Utopia? Apenas o caminho que a Antropologia da Educação tem vindo a desbravar.

 A aprendizagem no lar

 Qualquer grupo social precisa de transmitir a sua experiência e o seu saber acumulados no tempo às novas gerações. Nisso reside a condição básica da sua continuidade histórica. A aquisição desses saberes fez-se, durante séculos, de uma forma informal, no seio de um grupo  doméstico alargado, pela observação, acompanhamento e contacto directo, permanente e continuado, dos mais jovens em todo o desenrolar das múltiplas actividades que os adultos(pais, avós, irmãos,…) protagonizavam. Nas sociedades agrárias, de tradição oral, os saberes pragmáticos do quotidiano agro-pastoril transmitem-se de forma directa no trabalho compartido de adultos e crianças. «Ver fazer e ouvir dizer são a base do seu envolvimento» (Iturra, 1990:121). Gradualmente, as crianças vão sendo solicitadas à participação nos trabalhos caseiros, nas actividades de produção, religiosas e de lazer. Num primeiro momento, fazem-se pequenos serviços, simples ajudas, bastantes “recados”; aprende-se mais na rua com os amigos e os companheiros, em jogos, brincadeiras, e num conversar constante. Nestes grupos de crianças, apesar de as diferenças etárias não serem acentuadas, há sempre os “mais velhos” que acabam por assumir papéis de liderança e de “mestres”; a experiência do que já se fez, no cumprimento das normas ou na sua transgressão, e do muito que se (ou)viu fazer aos adultos (em público ou numa privacidade “violada”), são um capital reconhecido entre os pares. Mas a brincadeira está sempre sujeita a ser interrompida, a qualquer momento, pela intervenção do adulto. Basta que o chame, para um trabalho a que é preciso dar cumprimento imediato. Vai, contrariado, mas vai. O adulto põe e dispõe, marca o ritmo da vida da criança. Decide o que ela deve fazer e o que ela deve aprender. Define o permitido e o interdito. A autoridade de quem deu a vida, dá o pão e fornece o saber (agrícola ou artesanal), não é questionada. E de um tra balho pontual, esporádico e ocasional, na infância, passa-se, com o avançar da idade, ao cumprimento de tarefas específicas de que progressivamente se é responsável (tratar do rebanho ou cuidar do irmão mais novo, por exemplo). No decorrer dessa longa aprendizagem, o trabalho faz-se sempre sob tutoria; aprende-se vendo, fazendo, errando… E logo no momento recebe-se feedback, é-se corrigido, repreendido ou premiado. Neste processo de endoculturação, a finalidade última é fazer da criança e do jovem um igual aos outros, torná-lo um do grupo, com os mesmos princípios, crenças, valores, comportamentos e práticas. Numa educação não formal que se confunde com a vida real e quotidiana do próprio grupo. Eles são educados no grupo e para o grupo:

 «Sou apenas o produto/ Do meio em que fui criado» (Este Livro Que Vos Deixo…, António Aleixo, 1975:49)

António Aleixo

 Adquirem a cultura com os seus «outros significativos» (Spiro, 1998:206). Assim se forma, o que Spindler & Spindler (1993) designam como “enduring self” (o sentido de continuidade, a ligação a um passado, a identidade social). Essa é a herança oral que recebem dos seus progenitores e de toda uma comunidade que funciona como uma rede de apoio e enquadramento. Quando adultos, autónomos e independentes, num novo ciclo de vida, espera-se que dêem continuidade à herança recebida e procedam de igual modo com os seus descendentes. Assim se garante a continuidade e a coesão do grupo.

Nota

1. “Elvira Leite. Tudo o que eles queriam era brincar na rua e uma sala para trabalhar”, Ípsilon, 25/08/2023, p. 8.

Referências

AFONSO, Almerindo Janela (1998) Políticas Educativas e Avaliação Educacional. Para uma análise sociológica da Reforma Educativa em Portugal (1985-1995). Universidade do Minho, Instituto de Educação e Psicologia, Centro de Estudos Centro em Educação e Psicologia.

ALEIXO, António (1969) Este Livro Que Vos Deixo... Lisboa: Edições Vitalino Martins Aleixo, 3ª ed., 1975.

CARIA, Telmo H. (1999) “A reflexividade e a objectivação do olhar sociológico na investigação etnográfica”. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 55, Novembro, pp. 5-36.

GRÁCIO, Rui (1963) Obra Completa I - Da Educação. Lisboa: FCG, 1995.

ITURRA, Raúl (1990) Fugirás à Escola para trabalhar a terra: ensaios de Antropologia Social sobre o insucesso escolar. Lisboa: Escher/ A aprendizagem para além da escola, nº 1.

ITURRA, Raúl (1995) “Tu ensinas-me fantasia, eu procuro realidade”. Educação, Sociedade & Culturas, nº 4, pp. 91-103.

SPINDLER, George e SPINDLER, Louise (1993) “The Processes of Culture and Person: Cultural Therapy and Culturally Diverse Schools” in Patricia Phelan e Ann Locke Davidson (eds.) Renegotiating Cultural Diversity in American Schools. NY and London: Teachers College Press, pp. 27-51.

SPIRO, Melford E. (1998) “Algumas reflexões sobre o determinismo e o relativismo culturais com especial referência à emoção e à razão”. Educação, Sociedade & Culturas, nº 19, pp. 197-230.

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