sexta-feira, 17 de novembro de 2023

3 Poemas Escolhidos

Luís Santos

(organização, palavras introdutórias e fotos)



A ILHA DOS AMORES

A dimensão espiritual que se liga à demanda portuguesa dos mares, descrita de forma magistral por Luís de Camões nos Lusíadas, muito particularmente no canto IX, refere-se a uma certa Deusa, que há muito acompanhava os lusitanos e, quem sabe, já andava por esta nossa terra, quando foi tomada a célebre Decisão que se fosse além dos mares, no regresso da Índia liberta os nautas do tempo e do espaço e fá-los desembarcar nessa Ilha divina de sonhos mil, onde acaba por expor ao Gama, capitão da frota, os mecanismos pelos quais se regem os destinos do mundo. E o canto é, de facto, uma deliciosa marav-ilha dos amores. E, assim sendo, aqui ficam seis das noventa e cinco estrofes que perfazem o idílico canto, muito se aconselhando total leitura.

CANTO NONO

(…)

Porém a Deusa Cípria, que ordenada
Era, para favor dos Lusitanos,
Do padre Eterno, e por bom génio dada,
Que sempre os guia já de longos anos,
A glória por trabalhos alcançada,
Satisfação de bem sofridos danos,
Lhes andava já ordenando, e pretendia
Dar-lhes, nos mares tristes, alegria. 

Ali, com mil refrescos e manjares,
Com vinhos odoríferos e rosas,
Em cristalinos paços singulares,
Formosos leitos, e elas mais formosas;
Enfim, com mil deleites não vulgares,
Os esperem as Ninfas amorosas,
De amores feridas, pera lhe entregarem
Quanto delas os olhos cobiçarem. 

 

Mil árvores estão ao céu subindo,
Com pomos odoríferos e belos;
A laranjeira tem no fruto lindo
A cor que tinha Dafne nos cabelos.
Encosta-se no chão, que está caindo
A cidreira com os pesos amarelos;
Os fermosos limões ali, cheirando,
Estão virgíneas tetas imitando. 

Nesta frescura tal desembarcavam
Já das naus os segundos Argonautas,
Onde pela floresta se deixavam
Andar as belas Deusas, como incautas.
Algumas, doces cítaras tocavam,
Algumas, harpas e sonoras flautas;
Outras, com arcos de ouro, se fingiam
Seguir os animais que não seguiam. 

Ó que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã, e na sesta,
Que Vénus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo. 

E fareis claro o Rei que tanto amais,
Agora nos conselhos bem cuidados,
Agora com as espadas, que imortais
Vos farão, como os vossos já passados.
Impossibilidades não façais,
Que quem quis sempre pôde; e numerados
Sereis entre os Heróis esclarecidos
E nesta Ilha de Vénus recebidos.

 

Os Lusíadas, Canto IX (A Ilha dos Amores), estrofes 18, 41, 56, 64 83, 95.



INICIAÇÃO

Não dormes sob os ciprestes,

Pois não há sono no mundo.

......

O corpo é a sombra das vestes

Que encobrem teu ser profundo.

Vem a noite, que é a morte

E a sombra acabou sem ser.

Vais na noite só recorte,

Igual a ti sem querer.

Mas na Estalagem do Assombro

Tiram-te os Anjos a capa.

Segues sem capa no ombro,

Com o pouco que te tapa.

Então Arcanjos da Estrada

Despem-te e deixam-te nu.

Não tens vestes, não tens nada:

Tens só teu corpo, que és tu.

Por fim, na funda caverna,

Os Deuses despem-te mais.

Teu corpo cessa, alma externa,

Mas vês que são teus iguais.

......

A sombra das tuas vestes

Ficou entre nós na Sorte.

Não estás morto, entre ciprestes.

......

Neófito, não há morte.

s. d.

Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995). 

 - 233.
1ª publ. in Presença , nº 35. Coimbra: Mai. 1932.


 Depois da visita do arco da velha, a lembrar que "tudo vale a pena quando a alma não é pequena", aqui fica para os amigos outro dos poemas mais significativos, de tal forma que deu porta de entrada para um duradouro estudo que nos coube fazer:                    

Se eu chegasse a ser dum Outro
            mas de mim não me perdendo
            e esse Outro todos os outros
            que comigo estão vivendo

não só homens mas também
            os animais e as plantas
            e os minerais ou os ares
            e as estrelas tais e tantas

terei decerto cumprido
            meu destino e com que sorte
            para gozar de uma vida
            já ressurecta da morte.

Agostinho da Silva, uns poemas de agostinho, Lisboa, ulmeiro, 1990, p.106 (2ª ed.)


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