Luís Souta
A ESCOLA SELECTIVA E OS NOVOS EXCLUÍDOS
A aprendizagem na escola
A criação da escola alterou substancialmente o quadro de
aprendizagem no lar (traçado no final do nosso artigo de Novembro). Um novo
modelo económico e de desenvolvimento estava a emergir. A indústria não se
compadecia com este tipo de trabalhador “(des)qualificado”.
A existência de uma instituição, em edifício próprio,
dedicada integralmente à transmissão dos saberes, com gente especializada e
treinada para o exercício dessa função, teve, naturalmente, fortes implicações
na vida individual, familiar e colectiva.
Em Portugal, a sua implantação no tecido nacional foi lenta
e muito irregular, ao longo destes últimos dois séculos. Em particular, a sua
penetração no mundo rural, ficou-se, durante muitas décadas, pelos níveis
elementares. O pós-primário, estava quase em exclusivo nas capitais de distrito
e o universitário nas três principais cidades. No entanto, a política de
escolarização foi progressivamente delapidando as famílias desse bem precioso
que são os seus filhos (enquanto força de trabalho) e esvaziando-as da sua
tradicional função educativa. Começou primeiro por lhes retirar os rapazes,
para mais tarde as raparigas seguirem caminho idêntico. Inicialmente, durante
uma parte do dia e num número reduzido de anos (os 3-4 correspondentes aos
estudos primários). Para agora, nos nossos dias, as políticas de democratização
do ensino – no âmbito de uma escolaridade obrigatória e universal
progressivamente alargada e de um processo de massificação também no secundário
– acabarem por levar ao limite essa separação entre a escola e o lar. Passa-se
o dia na escola e durante anos a fio. Em certos casos, houve desvinculação
geográfica com o local de origem: ter que sair da aldeia para frequentar a
escola situada na vila ou na cidade. E assim emerge um “situated self” decorrente
destas adaptações a novos contextos de diversidade, valores culturais e estilos
de vida. A aprendizagem na escola é agora formal, explícita, dirigida por
professores de que nada se sabe, para além daquele contacto fugaz que o tempo
lectivo estipula (em regra, também eles uns “nómadas” vindos de longe). O
professor é a fonte de um saber letrado, que se complementa nos manuais
escolares. A trilogia do «saber ler, escrever e contar» torna-se no
instrumental técnico de base que permite o acesso do aluno a outros
conhecimentos, de que nunca ouviu falar ou sentiu que lhe fizessem falta (a si
ou aos seus). Mas uma vez na posse de tais competências, as relações no seio
familiar sofrem profundas mudanças. O detentor do saber inverteu-se: os pais
nada têm agora para ensinar aos filhos (os seus conhecimentos práticos não são
pertinentes para o saber teórico e abstracto da escola); os filhos “sabem mais”
que eles.
«As batatas vieram da América», disse eu à minha
mãe ao jantar, quando ela me pôs o prato à frente.
“Logo haviam de vir da América! Sempre houve batatas”,
sentenciou ela.
“Não. Dantes comiam-se castanhas. E o milho também veio da
América.” Era a primeira vez que tinha a clara sensação de, graças ao mestre,
saber coisas do nosso mundo que eles, os pais, desconheciam.» (Que Me Queres, Amor?, Manuel Rivas,
1998:33)
Paulatinamente, afastam-se do trabalho manual (o tempo de
estudo exige-lhes exclusividade), concebem formas alternativas de vida, têm
outras aspirações sociais e profissionais. A ruptura está consumada.
A função clássica atribuída à escola como transmissora de
saberes, isto é, privilegiando o ensinar (imprimir uma marca), tem, mais
recentemente, vindo a ser contrabalançada pelo acentuar do aprender (incorporar
em si). De qualquer modo, estaríamos sempre numa relação entre alunos e
professores de «simples troca de bens e não da comunhão de pessoas» (Garcia,
2000:571) que um verdadeiro processo de educação, entendido como relação,
pressupõe (ajudar alguém a ser). Ora é essa dimensão que prevalece no interior
do grupo doméstico. O hábito de aprender, que pautava o viver dos jovens no
seio familiar, deveria ser também a forma de estar no terreno escolar. Aprender
seria assim um processo de continuidade, permanente e duradouro. Tal como o era
nos contextos de aprendizagem informal no lar. E deste modo se evitariam
rupturas sem sentido.
A escola selectiva
A «escola para alguns» era, no essencial, uma escola
selectiva na entrada e na passagem de um ciclo a outro da escolaridade. Nesse
sentido, os professores eram treinados no desempenho de uma função tida como
primordial à sua actividade: ensinava-se mais com intuitos de avaliação do que
de aprendizagem; avaliava-se para seleccionar, premiando ou excluindo conforme
o (de)mérito dos alunos.
Essas práticas criaram raízes tão fortes no corpo docente que ainda estamos lembrados do tempo em que o valor de um professor variava na razão directa do número de alunos que reprovava. Claro, que neste crivo entravam apenas algumas disciplinas – Matemática, sempre em primeiro lugar, a Física, a Química, a Geometria Descritiva, o Português, as línguas estrangeiras – e desta forma se consolidava uma hierarquia docente e curricular (em que as «disciplinas bastardas» nem contavam para a nota).
Uma consequência imediata era o mercado paralelo das
«explicações»: mais uma sobrecarga financeira no orçamento familiar e o
aparecimento de uma nova profissão (o explicador), para a qual concorriam
muitos professores numa dúbia situação de duplo “emprego” [1].
Por isso não é de estranhar que a mudança de paradigma de
uma «escola para alguns», onde a selecção constituía um traço distintivo do seu
funcionamento, para uma «escola para todos», onde o acesso e o sucesso devem
ser universais, se tenha vindo a processar com enormes dificuldades e
resistências. A comprová-lo estão as elevadas taxas de insucesso e abandono
escolar. Estes indicadores mostram o desencontro de culturas (v.g., oral vs
escrita) e como largas camadas da população mantêm com o ensino e os saberes
escolares relações marcadas por estratégias de resistência ou de mera
credencialização (cf. artigo XIX, nesta rubrica). A escola é vista como a
instituição que confere um diploma que facilitará o acesso ao trabalho, mais do
que um local onde se aprende e, se reforça a identidade cultural. Se tempo
houve, em que a escola habilitava com graus e certificações que permitiam a
integração na sociedade, a entrada garantida no mercado de trabalho e a
consequente mobilidade social ascendente, hoje o diploma académico abre menos
portas, vale cada vez menos. A sua desvalorização é célere.
A nossa escola, confronta-se com problemas crónicos que
atravessam épocas, regimes e governos. O insucesso escolar é um dos mais
notórios. Nos últimos anos, ao nível do ensino básico (com provas de aferição
mas sem exames), tudo se fez para baixar esses valores. Foram caindo
lentamente, mais por alterações administrativas na forma de o contabilizar e
por pressão de factores endógenos (como o PIPSE - Programa Interministerial
para a Promoção do Sucesso Escolar, de 1987, ou a(s) Reforma(s), ávidos de
mostrar resultados positivos) do que propriamente por uma quebra do fenómeno em
si. Estamos cientes que o insucesso real é bem maior do que o oficial, tornado
público em pautas e fichas de avaliação final. Muitas das vezes não se avaliam
as aprendizagens reais mas as «enviesadas manifestações». A participação em
estudos internacionais (PISA ou TIMSS, por exemplo, que avaliam as competências
da leitura, Matemática e Ciências, e onde são usados instrumentos de maior
validade e fiabilidade) evidenciam as lacunas na formação académica dos nossos
jovens (vejam-se os desastrosos resultados do PISA 2022 [2]). A consequência
imediata do insucesso acumulado traduz-se no abandono escolar [3], com a
entrada precoce no trabalho produtivo. É a chaga do trabalho infantil que não
se estanca. Os mecanismos de selecção económica conjugam-se aqui com os baixos
rendimentos académicos. A escola mostra-se incapaz de segurar no seu seio este
tipo de alunos. A alternativa ao fracasso escolar não tem sido o de recomeçar,
em novos moldes, os estudos, mas antes a saída da escola e procurar emprego,
mesmo clandestino e ilegal.
Perante os números de abandono e reprovação, a generalidade
da população mantém uma estranha atitude de benevolência perante estas
instituições que não são capazes de cumprir as grandes finalidades que a
sociedade lhes impôs. Em termos comparativos, que crédito nos mereceria um
hospital onde morressem 20% daqueles que lá entram ou um estabelecimento
prisional de onde fugissem, todos os anos, 20% dos seus reclusos, ou ainda de
uma empresa industrial com semelhantes valores de desperdício no seu ciclo de
produção? Estranha-se, de facto, no campo educativo, a falta de indignação,
quer dos utentes directos (crianças e jovens), quer dos utentes indirectos
(pais e suas associações), quer mesmo dos cidadãos em geral que financia as
escolas, através dos seus impostos. A ausência de uma cultura de intervenção
cívica em paralelo com o diminuto associativismo (mais acentuado ainda nas
minorias étnico-culturais) pode explicar, em parte, que perante resultados tão
negativos não se peçam responsabilidades à direcção das escolas, aos
professores e, naturalmente, aos decisores de política educativa.
A “crise na educação” parece que passou de cíclica a
permanente. Os professores oscilam entre a posição do “náufrago” e a do
“astronauta” (Simões e Boavida, 1999), ou seja, ou se agarram à segurança da
tradição, do conhecido e testado, ora avançam para inovações constantes, sempre
na busca da novidade e da mudança pedagógica. E neste quadro ninguém se
satisfaz com as condições em que exerce a sua profissão. Os investimentos
aumentam mas os resultados não são proporcionais. As Reformas sucedem-se mas os
problemas persistem. A recessão demográfica na população estudantil tem
possibilitado melhorar os edifícios escolares e a sua funcionalidade
(finalmente acabaram os “pré-fabricados” da fase do boom), mas as escolas continuam longe de possuir os equipamentos,
os materiais técnicos e pedagógicos que se impõem nesta sociedade altamente
tecnológica. A excepção regista-se no campo das tecnologias de informação e
comunicação. Aí sente-se uma enorme vontade em alterar profundamente a situação
de alguma escassez em que muitas ainda se encontram; há políticas, programas e
acções. Os ventos sopram de feição: os
propósitos não são só nossos mas de toda a comunidade europeia… É o imperativo
básico para que o e-commerce
funcione, se expanda e se rentabilize. Estamos em crer que também na Educação,
só a pressão de factores externos, leia-se da UE [4], através da definição de
“critérios de convergência” poderá superar as fragilidades do nosso sistema educativo,
onde o analfabetismo [5], o insucesso, o abandono, a iliteracia e, agora
também, a falta de professores (!), são males que, parece, não se conseguir
sarar.
Os novos excluídos
Em Portugal são extremamente preocupantes os números que
nos dão conta dos baixos níveis de literacia. Muitas dessas pessoas
frequentaram a escola e chegaram mesmo a concluir os primeiros ciclos de
estudo. Mas as aprendizagens escolares ficaram inertes e de nada lhes servem
nas tarefas do quotidiano – são os analfabetos funcionais. Este fenómeno veio
demonstrar que não basta haver escola. Quando «a escolarização se reduz a mero
rito sem substância social» (Esteves, 1999:42) é porque os alunos a vão frequentando,
sem motivação, com irregularidade, com muitas faltas, pouco trabalho. As
aprendizagens não se realizam e o aproveitamento é mais que insuficiente… mas
acabam por ir transitando de ano para ano. A escola, bem pelo contrário,
precisa de funcionar com eficácia e cumprir a sua principal função que é
habilitar os alunos com os conhecimentos, competências, atitudes e valores
necessárias ao desempenho de tarefas nas esferas do emprego, da família e da
cidadania. O clássico «ler, escrever e contar» (consignado já na Constituição
de 1822) não é de modo algum suficiente numa sociedade cognitiva, da informação
e digital como a do século XXI.
A escola para além de não ter conseguido, até agora, cumprir propósitos essenciais – como escolarizar todas as crianças, possibilitar a todas a conclusão com êxito do percurso escolar legal mínimo, o ensino obrigatório – começa a falhar também ao não preparar adequadamente aqueles a quem atribui um diploma académico. Vários estudos têm mostrado que «a maior parte das matérias ensinadas na escola são completamente inúteis para a vida prática»; outros indicam que a escola não prepara, ou prepara mal, «para a vida prática e profissional». O descrédito da escola e dos seus diplomas atinge hoje também aqueles que apesar de estudos superiores engrossam as fileiras do desemprego. Ou, quanto muito, aceita-se um trabalho mas que pouco ou nada tem a ver com as habilitações académicas obtidas no curso de origem, quantas das vezes segunda ou terceira escolha no acesso ao ensino superior [6]. Outra das vias a que se recorre é o permanecer no sistema da “educação permanente”, saltitando de curso em curso, de estágio em estágio, ganhando créditos, “fazendo currículo”, mas sempre adiando a entrada efectiva no cenário de emprego a tempo inteiro. E neste círculo vicioso parece que (quase) todos ganham: as instituições de formação que não deixam de ter clientes, os empregadores que vão tendo mão-de-obra paga ao preço de estagiário e o Estado que consegue, artificialmente, mostrar estatísticas de um desemprego controlado, abaixo da média comunitária. Queixam-se as famílias, hoje profundamente afectadas pela “síndrome do ninho cheio”, ou seja, o lar não se esvazia como seria natural na sequência da autonomia plena dos seus filhos. Mas a maioridade já poucas alterações traz para a vida familiar. A «geração canguru» acomoda-se, sente-se bem em casa (os conflitos de gerações cessaram), adia o casamento [7], prolonga os estudos, tarda em arranjar emprego. Os filhos não deixam a casa, não ganham independência. E quando finalmente saem, às vezes,… acabam por voltar. As separações e os divórcios esses são precoces e não param de aumentar.
Notas
1. Cf. “Explicações” in Direito ao Erro: a batalha da educação em
Portugal de José Alberto Quaresma. Lisboa: Vega/ Outras obras, 2000.
2. Público
06/12/2023, pp. 6-9.
3. A taxa de abandono no 10º ano foi de 23% no
ano lectivo de 1999-2000, o valor mais alto desde 1974. Em 2022, apenas 6% dos
jovens entre os 18 e os 24 anos não tinham completado o ensino secundário.
4. António Barreto em Tempo de Incerteza (Relógio d’Água, 2002) considerava, então, que
muitas das transformações ocorridas, na última década e meia, em vários
sectores da sociedade portuguesa se devem à imposição europeia.
5. Nos Censos de 2001, o analfabetismo atingia
os 9%; em 2021, é de 3,1% (292.809 pessoas com 10 ou mais anos que não sabem
ler ou escrever).
6. Em 2002, só 6 em cada 10 alunos entraram nos
cursos de primeira opção; em 2023-24, foram 56%.
7. Segundo a Pordata, em 2022, os homens casam
aos 35,1 e as mulheres aos 33,7 anos quando, no início do milénio, a maioria
dos casamentos se registava no grupo dos 25-29 anos.
Referências
ESTEVES, António Joaquim
(1999) “Mitos, ritos e símbolos: a escola, o trabalho e a cultura nacional”. Cadernos de Ciências Sociais, nº 19-20,
Outubro, pp. 39-60.
GARCIA,
Mário (2000) “O horizonte da beleza no ensino da literatura”. Brotéria, nº 5/6, vol. 150, Maio-Junho, pp. 567-577.
GRÁCIO,
Rui (1963) Obra Completa I - Da Educação.
Lisboa: FCG, 1995.
RIVAS, Manuel (1995) Que Me Queres, Amor?. Lisboa: Publ. Dom Quixote/ Ficção Universal,
nº 197, 1998.
SIMÕES,
Mª das Dores Formosinho e BOAVIDA, João (1999) “Náufragos ou astronautas?
Pós-modernidade e educação”. Revista Portuguesa
de Pedagogia, nº 1, pp. 5-17.
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