domingo, 24 de dezembro de 2023

“Literatura: o pão nosso de cada dia”(XXI)

 Luís Souta

A ESCOLA SELECTIVA E OS NOVOS EXCLUÍDOS 

«o acto educativo é porventura, na sua raiz, um acto provocatório.»
(Rui Grácio, Educação e Educadores, 1996:99)

A aprendizagem na escola

A criação da escola alterou substancialmente o quadro de aprendizagem no lar (traçado no final do nosso artigo de Novembro). Um novo modelo económico e de desenvolvimento estava a emergir. A indústria não se compadecia com este tipo de trabalhador “(des)qualificado”.

A existência de uma instituição, em edifício próprio, dedicada integralmente à transmissão dos saberes, com gente especializada e treinada para o exercício dessa função, teve, naturalmente, fortes implicações na vida individual, familiar e colectiva.

Em Portugal, a sua implantação no tecido nacional foi lenta e muito irregular, ao longo destes últimos dois séculos. Em particular, a sua penetração no mundo rural, ficou-se, durante muitas décadas, pelos níveis elementares. O pós-primário, estava quase em exclusivo nas capitais de distrito e o universitário nas três principais cidades. No entanto, a política de escolarização foi progressivamente delapidando as famílias desse bem precioso que são os seus filhos (enquanto força de trabalho) e esvaziando-as da sua tradicional função educativa. Começou primeiro por lhes retirar os rapazes, para mais tarde as raparigas seguirem caminho idêntico. Inicialmente, durante uma parte do dia e num número reduzido de anos (os 3-4 correspondentes aos estudos primários). Para agora, nos nossos dias, as políticas de democratização do ensino – no âmbito de uma escolaridade obrigatória e universal progressivamente alargada e de um processo de massificação também no secundário – acabarem por levar ao limite essa separação entre a escola e o lar. Passa-se o dia na escola e durante anos a fio. Em certos casos, houve desvinculação geográfica com o local de origem: ter que sair da aldeia para frequentar a escola situada na vila ou na cidade. E assim emerge um “situated self” decorrente destas adaptações a novos contextos de diversidade, valores culturais e estilos de vida. A aprendizagem na escola é agora formal, explícita, dirigida por professores de que nada se sabe, para além daquele contacto fugaz que o tempo lectivo estipula (em regra, também eles uns “nómadas” vindos de longe). O professor é a fonte de um saber letrado, que se complementa nos manuais escolares. A trilogia do «saber ler, escrever e contar» torna-se no instrumental técnico de base que permite o acesso do aluno a outros conhecimentos, de que nunca ouviu falar ou sentiu que lhe fizessem falta (a si ou aos seus). Mas uma vez na posse de tais competências, as relações no seio familiar sofrem profundas mudanças. O detentor do saber inverteu-se: os pais nada têm agora para ensinar aos filhos (os seus conhecimentos práticos não são pertinentes para o saber teórico e abstracto da escola); os filhos “sabem mais” que eles.

«As batatas vieram da América», disse eu à minha mãe ao jantar, quando ela me pôs o prato à frente.

“Logo haviam de vir da América! Sempre houve batatas”, sentenciou ela.

“Não. Dantes comiam-se castanhas. E o milho também veio da América.” Era a primeira vez que tinha a clara sensação de, graças ao mestre, saber coisas do nosso mundo que eles, os pais, desconheciam.» (Que Me Queres, Amor?, Manuel Rivas, 1998:33)

Paulatinamente, afastam-se do trabalho manual (o tempo de estudo exige-lhes exclusividade), concebem formas alternativas de vida, têm outras aspirações sociais e profissionais. A ruptura está consumada.

A função clássica atribuída à escola como transmissora de saberes, isto é, privilegiando o ensinar (imprimir uma marca), tem, mais recentemente, vindo a ser contrabalançada pelo acentuar do aprender (incorporar em si). De qualquer modo, estaríamos sempre numa relação entre alunos e professores de «simples troca de bens e não da comunhão de pessoas» (Garcia, 2000:571) que um verdadeiro processo de educação, entendido como relação, pressupõe (ajudar alguém a ser). Ora é essa dimensão que prevalece no interior do grupo doméstico. O hábito de aprender, que pautava o viver dos jovens no seio familiar, deveria ser também a forma de estar no terreno escolar. Aprender seria assim um processo de continuidade, permanente e duradouro. Tal como o era nos contextos de aprendizagem informal no lar. E deste modo se evitariam rupturas sem sentido.

A escola selectiva

A «escola para alguns» era, no essencial, uma escola selectiva na entrada e na passagem de um ciclo a outro da escolaridade. Nesse sentido, os professores eram treinados no desempenho de uma função tida como primordial à sua actividade: ensinava-se mais com intuitos de avaliação do que de aprendizagem; avaliava-se para seleccionar, premiando ou excluindo conforme o (de)mérito dos alunos.

Essas práticas criaram raízes tão fortes no corpo docente que ainda estamos lembrados do tempo em que o valor de um professor variava na razão directa do número de alunos que reprovava. Claro, que neste crivo entravam apenas algumas disciplinas – Matemática, sempre em primeiro lugar, a Física, a Química, a Geometria Descritiva, o Português, as línguas estrangeiras – e desta forma se consolidava uma hierarquia docente e curricular (em que as «disciplinas bastardas» nem contavam para a nota).

Rui Grácio

Uma consequência imediata era o mercado paralelo das «explicações»: mais uma sobrecarga financeira no orçamento familiar e o aparecimento de uma nova profissão (o explicador), para a qual concorriam muitos professores numa dúbia situação de duplo “emprego” [1].

Por isso não é de estranhar que a mudança de paradigma de uma «escola para alguns», onde a selecção constituía um traço distintivo do seu funcionamento, para uma «escola para todos», onde o acesso e o sucesso devem ser universais, se tenha vindo a processar com enormes dificuldades e resistências. A comprová-lo estão as elevadas taxas de insucesso e abandono escolar. Estes indicadores mostram o desencontro de culturas (v.g., oral vs escrita) e como largas camadas da população mantêm com o ensino e os saberes escolares relações marcadas por estratégias de resistência ou de mera credencialização (cf. artigo XIX, nesta rubrica). A escola é vista como a instituição que confere um diploma que facilitará o acesso ao trabalho, mais do que um local onde se aprende e, se reforça a identidade cultural. Se tempo houve, em que a escola habilitava com graus e certificações que permitiam a integração na sociedade, a entrada garantida no mercado de trabalho e a consequente mobilidade social ascendente, hoje o diploma académico abre menos portas, vale cada vez menos. A sua desvalorização é célere.

A nossa escola, confronta-se com problemas crónicos que atravessam épocas, regimes e governos. O insucesso escolar é um dos mais notórios. Nos últimos anos, ao nível do ensino básico (com provas de aferição mas sem exames), tudo se fez para baixar esses valores. Foram caindo lentamente, mais por alterações administrativas na forma de o contabilizar e por pressão de factores endógenos (como o PIPSE - Programa Interministerial para a Promoção do Sucesso Escolar, de 1987, ou a(s) Reforma(s), ávidos de mostrar resultados positivos) do que propriamente por uma quebra do fenómeno em si. Estamos cientes que o insucesso real é bem maior do que o oficial, tornado público em pautas e fichas de avaliação final. Muitas das vezes não se avaliam as aprendizagens reais mas as «enviesadas manifestações». A participação em estudos internacionais (PISA ou TIMSS, por exemplo, que avaliam as competências da leitura, Matemática e Ciências, e onde são usados instrumentos de maior validade e fiabilidade) evidenciam as lacunas na formação académica dos nossos jovens (vejam-se os desastrosos resultados do PISA 2022 [2]). A consequência imediata do insucesso acumulado traduz-se no abandono escolar [3], com a entrada precoce no trabalho produtivo. É a chaga do trabalho infantil que não se estanca. Os mecanismos de selecção económica conjugam-se aqui com os baixos rendimentos académicos. A escola mostra-se incapaz de segurar no seu seio este tipo de alunos. A alternativa ao fracasso escolar não tem sido o de recomeçar, em novos moldes, os estudos, mas antes a saída da escola e procurar emprego, mesmo clandestino e ilegal.

Perante os números de abandono e reprovação, a generalidade da população mantém uma estranha atitude de benevolência perante estas instituições que não são capazes de cumprir as grandes finalidades que a sociedade lhes impôs. Em termos comparativos, que crédito nos mereceria um hospital onde morressem 20% daqueles que lá entram ou um estabelecimento prisional de onde fugissem, todos os anos, 20% dos seus reclusos, ou ainda de uma empresa industrial com semelhantes valores de desperdício no seu ciclo de produção? Estranha-se, de facto, no campo educativo, a falta de indignação, quer dos utentes directos (crianças e jovens), quer dos utentes indirectos (pais e suas associações), quer mesmo dos cidadãos em geral que financia as escolas, através dos seus impostos. A ausência de uma cultura de intervenção cívica em paralelo com o diminuto associativismo (mais acentuado ainda nas minorias étnico-culturais) pode explicar, em parte, que perante resultados tão negativos não se peçam responsabilidades à direcção das escolas, aos professores e, naturalmente, aos decisores de política educativa.

A “crise na educação” parece que passou de cíclica a permanente. Os professores oscilam entre a posição do “náufrago” e a do “astronauta” (Simões e Boavida, 1999), ou seja, ou se agarram à segurança da tradição, do conhecido e testado, ora avançam para inovações constantes, sempre na busca da novidade e da mudança pedagógica. E neste quadro ninguém se satisfaz com as condições em que exerce a sua profissão. Os investimentos aumentam mas os resultados não são proporcionais. As Reformas sucedem-se mas os problemas persistem. A recessão demográfica na população estudantil tem possibilitado melhorar os edifícios escolares e a sua funcionalidade (finalmente acabaram os “pré-fabricados” da fase do boom), mas as escolas continuam longe de possuir os equipamentos, os materiais técnicos e pedagógicos que se impõem nesta sociedade altamente tecnológica. A excepção regista-se no campo das tecnologias de informação e comunicação. Aí sente-se uma enorme vontade em alterar profundamente a situação de alguma escassez em que muitas ainda se encontram; há políticas, programas e acções. Os ventos sopram de feição: os propósitos não são só nossos mas de toda a comunidade europeia… É o imperativo básico para que o e-commerce funcione, se expanda e se rentabilize. Estamos em crer que também na Educação, só a pressão de factores externos, leia-se da UE [4], através da definição de “critérios de convergência” poderá superar as fragilidades do nosso sistema educativo, onde o analfabetismo [5], o insucesso, o abandono, a iliteracia e, agora também, a falta de professores (!), são males que, parece, não se conseguir sarar.

Os novos excluídos

Em Portugal são extremamente preocupantes os números que nos dão conta dos baixos níveis de literacia. Muitas dessas pessoas frequentaram a escola e chegaram mesmo a concluir os primeiros ciclos de estudo. Mas as aprendizagens escolares ficaram inertes e de nada lhes servem nas tarefas do quotidiano – são os analfabetos funcionais. Este fenómeno veio demonstrar que não basta haver escola. Quando «a escolarização se reduz a mero rito sem substância social» (Esteves, 1999:42) é porque os alunos a vão frequentando, sem motivação, com irregularidade, com muitas faltas, pouco trabalho. As aprendizagens não se realizam e o aproveitamento é mais que insuficiente… mas acabam por ir transitando de ano para ano. A escola, bem pelo contrário, precisa de funcionar com eficácia e cumprir a sua principal função que é habilitar os alunos com os conhecimentos, competências, atitudes e valores necessárias ao desempenho de tarefas nas esferas do emprego, da família e da cidadania. O clássico «ler, escrever e contar» (consignado já na Constituição de 1822) não é de modo algum suficiente numa sociedade cognitiva, da informação e digital como a do século XXI.

A escola para além de não ter conseguido, até agora, cumprir propósitos essenciais – como escolarizar todas as crianças, possibilitar a todas a conclusão com êxito do percurso escolar legal mínimo, o ensino obrigatório – começa a falhar também ao não preparar adequadamente aqueles a quem atribui um diploma académico. Vários estudos têm mostrado que «a maior parte das matérias ensinadas na escola são completamente inúteis para a vida prática»; outros indicam que a escola não prepara, ou prepara mal, «para a vida prática e profissional». O descrédito da escola e dos seus diplomas atinge hoje também aqueles que apesar de estudos superiores engrossam as fileiras do desemprego. Ou, quanto muito, aceita-se um trabalho mas que pouco ou nada tem a ver com as habilitações académicas obtidas no curso de origem, quantas das vezes segunda ou terceira escolha no acesso ao ensino superior [6]. Outra das vias a que se recorre é o permanecer no sistema da “educação permanente”, saltitando de curso em curso, de estágio em estágio, ganhando créditos, “fazendo currículo”, mas sempre adiando a entrada efectiva no cenário de emprego a tempo inteiro. E neste círculo vicioso parece que (quase) todos ganham: as instituições de formação que não deixam de ter clientes, os empregadores que vão tendo mão-de-obra paga ao preço de estagiário e o Estado que consegue, artificialmente, mostrar estatísticas de um desemprego controlado, abaixo da média comunitária. Queixam-se as famílias, hoje profundamente afectadas pela “síndrome do ninho cheio”, ou seja, o lar não se esvazia como seria natural na sequência da autonomia plena dos seus filhos. Mas a maioridade já poucas alterações traz para a vida familiar. A «geração canguru» acomoda-se, sente-se bem em casa (os conflitos de gerações cessaram), adia o casamento [7], prolonga os estudos, tarda em arranjar emprego. Os filhos não deixam a casa, não ganham independência. E quando finalmente saem, às vezes,… acabam por voltar. As separações e os divórcios esses são precoces e não param de aumentar.

Notas

1. Cf. “Explicações” in Direito ao Erro: a batalha da educação em Portugal de José Alberto Quaresma. Lisboa: Vega/ Outras obras, 2000.

2. Público 06/12/2023, pp. 6-9.

3. A taxa de abandono no 10º ano foi de 23% no ano lectivo de 1999-2000, o valor mais alto desde 1974. Em 2022, apenas 6% dos jovens entre os 18 e os 24 anos não tinham completado o ensino secundário.

4. António Barreto em Tempo de Incerteza (Relógio d’Água, 2002) considerava, então, que muitas das transformações ocorridas, na última década e meia, em vários sectores da sociedade portuguesa se devem à imposição europeia.

5. Nos Censos de 2001, o analfabetismo atingia os 9%; em 2021, é de 3,1% (292.809 pessoas com 10 ou mais anos que não sabem ler ou escrever).

6. Em 2002, só 6 em cada 10 alunos entraram nos cursos de primeira opção; em 2023-24, foram 56%.

7. Segundo a Pordata, em 2022, os homens casam aos 35,1 e as mulheres aos 33,7 anos quando, no início do milénio, a maioria dos casamentos se registava no grupo dos 25-29 anos.

Referências

ESTEVES, António Joaquim (1999) “Mitos, ritos e símbolos: a escola, o trabalho e a cultura nacional”. Cadernos de Ciências Sociais, nº 19-20, Outubro, pp. 39-60.

GARCIA, Mário (2000) “O horizonte da beleza no ensino da literatura”. Brotéria, nº 5/6, vol. 150, Maio-Junho, pp. 567-577.

GRÁCIO, Rui (1963) Obra Completa I - Da Educação. Lisboa: FCG, 1995.

RIVAS, Manuel (1995) Que Me Queres, Amor?. Lisboa: Publ. Dom Quixote/ Ficção Universal, nº 197, 1998.

SIMÕES, Mª das Dores Formosinho e BOAVIDA, João (1999) “Náufragos ou astronautas? Pós-modernidade e educação”. Revista Portuguesa de Pedagogia, nº 1, pp. 5-17.

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