sábado, 28 de outubro de 2023

Literatura: o pão nosso de cada dia (XIX)

 Luís Souta


REACÇÕES À ESCOLARIZAÇÃO


«Não aprendeu a ler. A escola franqueava-se pouco às crianças nascidas no sulco das enxadas. 

Lá foi entretanto algumas vezes, quando o tio Taimão lho consentia (somente nos dias de inverno mais agrestes).»

(“Narrativa Bárbara” in O Sonho e a Aventura, José Marmelo e Silva, 1943:13)


Uma das temáticas constantes ao longo de décadas da nossa história refere-se à resistência, voluntária ou involuntária, aos processos de escolarização. O país rural, não letrado, vivendo nas incertezas da sobrevivência económica, resistia à perda dos seus filhos desviados para os «caminhos do ABC» (como lhe chamava Rogério Fernandes). Na síntese de Guerra Junqueiro, num dos seus poemas de 1874:

«Mandam-no ir à escola e põem-lhe ao ombro a enxada!» (“A Morte de D. João” in Poesia, p. 152)

Guerra Junqueiro

As aprendizagens escolares eram consideradas de pouca, ou nenhuma, utilidade prática para quem exercia actividades ligadas ao sector primário (agricultores, pastores, pescadores). A ida para a escola, quantas vezes forçada pela legislação do ensino obrigatório ou por pressão social de figuras proeminentes do meio local (padre, médico ou professor) quando reconheciam qualidades intelectuais em alguns garotos, acabava por se traduzir num percurso mínimo.

«E onde é que temos nós dinheiro para tu estudares?» (Para Sempre, Vergílio Ferreira, 1983:51)

E assim, com frequência, se interrompia precocemente o percurso académico – «fugirás à escola para trabalhar a terra» (Iturra, 1990) –, excepto se um “padrinho” tomava o encargo tutelar de lhes providenciar os meios materiais. A escola tornava-se fortemente selectiva logo no seu acesso e por razões exógenas ao próprio processo educativo. Factores culturais e socioeconómicos acabavam por excluir da escolarização muitos daqueles que manifestavam desejo, vontade e capacidade para aprender.

O caso português, ofereceu sempre, ao longo da sua história, exemplos (em demasia) de resistência aos intuitos alfabetizadores. Dois tipos de razões concorrem nesse sentido – económicas e culturais.

A alfabetização pouco ou nada diz(ia) às comunidades acústicas e/ou ágrafas. Em primeiro lugar, era percepcionada como um modelo cultural elitista, vindo do exterior, das urbes, do poder central. Funcionava aqui o sentido conservador do mundo rural, que resistia à “invasão” e à mudança, por defesa e segurança. Em segundo lugar, o camponês não sentia que a escolarização lhe trazia vantagens.

«Nos campos a família é hostil à escola, diz-se. Erro. A família não nega o filho à escola, requer o filho para o trabalho. A criança aí, de sete a dez anos, já conduz os bois, guarda o gado, apanha a lenha, acarreta, sacha, colabora na cultura. Tem a altura de uma enxada e a utilidade de um homem. Sai de madrugada, recolhe às trindades, com o seu dia rudemente trabalhado. Mandá-lo à escola, de manhã e de tarde, umas poucas de horas, é diminuir a força produtora do casal. Um aluno de mais na escola é assim um braço de menos na lavoura. Ora uma família de lavradores não pode luxuosamente diminuir as suas forças vivas. Não é por o filho saber soletrar a cartilha que a terra lhe dará mais pão. Portanto tiram a criança à escola para a empregar na terra.» (Uma Campanha Alegre - II, Eça de Queiroz, 1891:77)

Eça de Queiroz

Aqui é o sentido pragmático e de curto prazo que se impõe. Para as sociedades agro-pastoris, a escola é pouco (ou nada) atractiva porque não parece fornecer o instrumental imediato a uma reutilização, e investimento, na actividade produtiva. E mais do que isso, chega a ser entendida como um luxo: não lhes dá nada de concreto como ainda lhes tira elementos da força de trabalho – os seus filhos, preciosos adjuvantes nas lides da agricultura e do pastoreio. Deste modo, a troca da enxada pela caneta é vista como um prejuízo económico, nunca como um ganho. Já Almeida Garrett, num dos seus discursos, questionava: «Que incentivo há para os pais mandarem seus filhos às escolas?». Quanto àqueles que não se conformavam com o lugar ocupado na hierarquia social porque sofriam situações crónicas de carência económica, «a ambição de promoção social foi em larga medida canalizada para a emigração e não para a escola» (Matos, 1997:93). Esta implicava não só um acréscimo de despesas como os retornos desse investimento não eram garantidos, «sabe-se lá se o rapaz tem cabeça para os estudos?»

Apesar de, legalmente, termos um ensino obrigatório e com penalizações para pais incumpridores…

« – Ó diabo, isto é uma multa…

– Multa?!… Ó compadre Custódio, veja lá isso bem, home… Nam pode ser… Nam fiz nada…

Repôs os óculos, reuniu melhor as palavras, confirmou:

– Sim, homem. Multado em vinte escudos… Parece que por causa da cachopa. Não a mandaste à escola, eles souberam e como está na idade e tu tens uma casa… Vai à vila, anda, paga a multa e fica o caso arrumado.

Longe, a enxurrada rebramia na represa.

Após aquele aviso veio outro. E outro. Por fim o fiscal das execuções ameaçou-o com a venda da casinhola para pagamento do relaxe.» (“Planície” in Mosaico, Sousa Marques, pp. 190-3)

Em termos práticos, a escolaridade obrigatória nunca foi sinónimo de gratuitidade. A entrada na escola trazia, inevitavelmente, despesas com o material escolar básico – livros, cadernos, caneta, pasta, bata, etc. – e encargos colaterais – deslocações, vestuário, alimentação. Para aqueles (poucos) que iam para além da «primária», havia ainda que adicionar o pagamento das propinas. Dispêndios incomportáveis em contextos de pobreza e até de alguma miséria.

E com estes constrangimentos, acabava-se a frequentar a escola mas já em adulto…

«a única chama que queríamos ver acesa dentro de nós era a preciosa arte de assinar um nome. Receber carta de chamada, ir correr papéis para o embarque e poder dizer que tinha um nome e que o sabia assinar.» (Gente Feliz com Lágrimas, João de Melo, 1988:105)

João de Melo

Hoje, as despesas com o ensino são de outra ordem, não deixando de continuar a constituir um pesado fardo no orçamento familiar, tão difícil de suportar como no passado. Novos obstáculos se levantam gerados pelo marketing agressivo da sociedade de consumo. O fim das batas, por exemplo, veio desocultar desigualdades e despoletar pressões para se vestir apenas roupa ou calçado “de marca” ou outros símbolos de pertença associados às classes média e alta, tal como os telemóveis e outros dispositivos electrónicos (cf. Gilles Lipovetsky sobre a “massificação do luxo”). Neste contexto, as famílias sentem-se pressionadas agora no seu interior. São os filhos que reclamam equipamento e vestuário adequado à “altura”, para não se sentirem “marginalizados”, para poderem estar ao nível (do ter, não do saber!) dos colegas. Para muitos agregados familiares, este é um adicional financeiro difícil de comportar e que os leva, perante eventuais maus resultados académicos dos filhos, a abdicar da sua manutenção na escola.

Muitos agregados familiares colocaram entraves aos processos de alargamento da escolaridade obrigatória, primeiro, para 9 anos (a que correspondem os três ciclos do ensino básico, prescrito pela LBSE de 1986) e depois para os 12 anos (Lei nº 85/2009, mas entrando em efectividade apenas no ano lectivo de 2012-13). A universalidade no acesso ainda hoje não é integralmente cumprida e, menos, a sua conclusão. Tal ocorrência é mais flagrante em certos grupos étnicos-culturais, tradicionalmente marginalizados (Surdos, Ciganos e Circenses). Mas não se restringe a esses grupos. Outros sectores específicos da população, residindo em nichos urbanos e suburbanos, nas chamadas “bolsas de pobreza”, desenvolvem estratégias de resistência, fugindo ao dever de escolarizar os seus filhos, obstaculizando quer o acesso quer o seu percurso académico. Apesar da oferta escolar se ter alargado progressivamente, numa “rede de malha fina”, a procura por parte destas famílias mantém-se escassa, continuando esses grupos sociais a contornar impunemente (com mais ou menos subtileza) os dispositivos legais da obrigatoriedade do ensino formal. Essas crianças e jovens, em vez da estarem nos bancos da escola, andam a pedir, arrumam carros, vivem de todo o tipo de biscates e expedientes, num trabalho infantil clandestino (mas visível). «Crianças coisas tão profundas tão perdidas» (1). Mas quantos miúdos e quantos jovens não deixam de estar “em-risco” (“endangered self”) para mergulharem no “risco”, empurrados para marginalidades várias, ligadas ao narcotráfico, à prostituição, a furtos e a gangs. Com dinheiro fresco no bolso, querem lá, eles ou as famílias, saber da escola, onde todos os eventuais benefícios são “sempre para amanhã”.

Nota

1. Ruy Belo, “Transcrição de uns olhos pretos e de uns sapatos de fivela” in Todos os Poemas, 2000, p. 336.

Referências

FERREIRA, Vergílio (1983) Para Sempre. Venda Nova: Bertrand Editora/ Obras de V. F., 10ª edição, 1996.

ITURRA, Raúl (1990) Fugirás à Escola para trabalhar a terra: ensaios de Antropologia Social sobre o insucesso escolar. Lisboa: Escher/ A aprendizagem para além da escola, nº 1.

JUNQUEIRO, Guerra (1972) Obras de Guerra Junqueiro: Poesia. Porto: Lello & Irmãos Editores, 2ª edição, 1974.

LIPOVETSKY, Gilles (1987) O Império do Efémero: a moda e o seu destino nas sociedades modernas. Lisboa: Dom Quixote/ Biblioteca Dom Quixote, nº 5, 1989.

MARQUES, Sousa (1953) “Planície” in Mosaico. Colectânea de Autores Desconhecidos. Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural/ Contos e Novelas.

MATOS, Sérgio Campos (1997) “Política de Educação e Instrução Popular no Portugal Oitocentista”. Clio, nova série, vol. 2, pp. 85-107.

MELO, João de (1988) Gente Feliz com Lágrimas. Lisboa: Publ. Dom Quixote - Círculo de Leitores.

QUEIROZ, Eça de (1891) Uma Campanha Alegre. Volume II. Mem Martins: Europa-América/ livros de bolso, nº 494, [1987].


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