Luís Souta
ANTROPOLOGIA DA EDUCAÇÃO
«Antropologia e educação
parecem constituir, hoje, um campo de confrontação, em que acompartimentação do saber
atribuià antropologia a condição de
ciência e à educação, a condição de prática.»(Neusa Gusmão, Cadernos
CEDES, nº 43, 1997:9)
A Antropologia da Educação é um campo disciplinar relativamente jovem. Quer aposicionemos na área da Antropologia quer a vendo como a mais recente das Ciências da Educação. A Antropologia da Educação autonomiza-se em meados dos anos 50 nos Estados Unidos da América e consolida-se, no último quartel do séc. XX, com George Spindler, John Ogbu, K. Wilcox, F. Eric kson, entre outros. Os seus antecedentes são possíveis de detectar logo nos trabalhos fundadores da disciplina, quando os antropólogos se interessaram pelos processos de endoculturação e socialização das crianças nas sociedades ditas “tradicionais”. Franz Boas (1858-1942) e Nina Vandewalker, com trabalhos em 1898, são os primeiros antropólogos a escrever sobre educação e antropologia. O grande impulso metodológico, que lança as bases do trabalho de campo, vem de Bronislaw Malinowski (1884-1942). Por sua vez, Margaret Mead (1905-1978), ao analisar a educação nos EUA, defende que certos tipos de escola necessitam de professores específicos, e que serão tanto melhor professores quanto forem capazes de conhecer, pela observação e experiência, os contextos particulares de socialização dos seus alunos.
A Antropologia da Educação nasce numa zona charneira, de
confluência disciplinar onde se cruzam antropólogos e educadores (muitas das
vezes essa dupla filiação encontra-se reunida numa só pessoa); esse diálogo teórico-prático,
alargou o enquadramento de análise no qual se encontravam por resolver alguns
“nós górdios”, como o do insucesso escolar, por exemplo. No caso português, a
obra de Iturra (1990) foi um marco para um outra abordagem a esse crónico
problema do nosso sistema educativo (“Insucesso escolar: o sucesso do sistema”,
como o exprimia Rui Grácio (1980). A Antropologia da Educação abriu fissuras no
mainstream educativo onde a teoria meritocrática e a teoria dos dons
continuavam a dominar.
Outra das temáticas para qual a Antropologia da Educação veio
dar um forte contributo, prende-se com as questões da heterogeneidade racial e
étnica, que estiveram na sua origem histórica, e o da pluralidade social e
cultural das sociedades modernas. Ou seja, o problema da alteridade que se
colocava de novo e que tem sido um dos objectos centrais da Antropologia ao
longo do seu percurso disciplinar. Procurar entender e explicar uma cultura que
não é a sua foi sempre a tarefa do antropólogo. Só que agora a diversidade de
culturas, de formas de pensar, de agir e de ser, se faziam sentir no terreno do
próprio investigador, não no exótico longínquo de outros continentes a colonizar.
Analisar de forma compreensiva e não etnocêntrica estas situações de
descontinuidade cultural, que geram fortes desigualdades dentro do próprio
sistema educativo, foi uma importante achega dos antropólogos da educação. Nos
contextos multiculturais, a Antropologia desbrava novos trilhos no conhecimento
da complexidade das culturas periféricas, invisíveis e do silêncio e da compreensão
dos fenómenos de hibridação cultural e das novas identidades (re)construídas.
Os antropólogos alertaram para a necessidade de os
professores descentrarem os “problemas” dos alunos para um contexto mais vasto,
extra-escola, na qual a articulação com os grupos domésticos e as comunidades
locais poderia ser uma das chaves para esse atravessar de fronteiras culturais que possibilitaria um
novo tipo de relacionamento pessoal e pedagógico. Nesse sentido, é imperioso
sair do pequeno mundo fechado (e artificial) da sala de aula, saltar os muros
da escola, conhecer as comunidades reais pois «é preciso entender o que o lar ensina»,
como nos determina Raúl Iturra (1997:37). E reconhecer isso, é abandonar a
ideia (quantas vezes geradora de uma acção improdutiva) de o aluno como “tábua
rasa”, qual “esponja” disponível para absorver todo o saber escolar1,
formatado num «pensamento positivista e racionalista» de que já Aquilino
Ribeiro nos dava conta em A Via Sinuosa:
«o ensino oficial, francisante, tão falho de sentido como pretensioso em considerar a vida como um debate em que só jogam elementos racionais» (1918:345).
Alguns resultados são já visíveis, quando se passaram a
considerar como tarefa do acto educativo, o promover a identidade cultural dos
alunos, o fomentar a herança cultural pela manutenção dos laços com a sua
língua, tradições e costumes de origem, o reconhecer a sua experiência social e
cultural como válida e significativa, o respeitar os ritmos e estilos de aprendizagem
e de desenvolvimento de cada um (Cardoso, 1998, 2001, 2001a). Ir além do consignado
nas orientações curriculares e nos perfis de desempenho profissional, e pôr em prática
«pedagogias da divergência e não apenas de convergência», como o propõe Ricardo
Vieira (1999a:152), é um dos desafios que se coloca à generalidade dos
professores e não apenas àqueles que enveredaram pelos complexos e atribulados
caminhos da educação multicultural.
O terceiro grande contributo da Antropologia como ciência
para a pedagogia como prática, veio da sua especificidade metodológica. O
método etnográfico tem ganho adeptos no seio da comunidade escolar.
Investigadores educacionais, ligados aos métodos qualitativos (desenvolvimento
de projectos de investigação-acção, estudos de caso, histórias de vida) e Professores
apostados num posicionamento construtivo, reflexivo e investigativo perante um currículo
em acção, têm encontrado no instrumental antropológico as ferramentas
operativas para esse trabalho de campo, situado e contextualizado. Numa
investigação cada vez mais centrada na escola, nas práticas concretas de
professores e alunos, e nos territórios educativos, os saberes metodológicos
desenvolvidos pela Antropologia revelam-se de uma enorme utilidade e eficácia
(cf. Caria, 1997). A observação participante tem-se, por isso mesmo, vulgarizado
a tal ponto que a antropóloga brasileira Neusa Gusmão, que realizou trabalho de
campo em várias escolas de Portugal, alerta para o risco que se corre, quando
os professores aplicam a técnica, despem a teoria e num processo de
reducionismo da antropologia fazem «participação observante em vez de uma
observação participante»2. Uma prática até certo ponto compreensiva,
quando no profissional da educação há, em primeira instância, a preocupação
natural com a “acção” quotidiana, imediata, quantas vezes urgente, no cumprimento
de deveres funcionais com os seus alunos, junto dos colegas e da administração.
Daí o relegar-se para um outro plano a “investigação”, que implica uma outra
atitude, até de um certo distanciamento face aos problemas concretos que urge
resolver (e numa instituição viva como a escola, povoada de tantos actores e
com tantas carências, os problemas são o trivial naquele viver colectivo). Esta
inversão metodológica de que nos alertava Neusa Gusmão, é um “mal” transitório,
assim o esperamos, pois a formação dos professores tem vindo a pautar-se por
padrões de qualidade e exigência acrescidos (o mestrado é hoje a habilitação
mínima indispensável) e a tornar-se uma prática permanente (quer nas modalidades
de formação contínua, complementar ou especializada). Sendo assim, a aquisição
de competências metodológicas neste domínio e o contacto com o conhecimento acumulado
na área da Antropologia da Educação parecem-nos inevitáveis, senão a curto,
pelo menos a médio prazo.
Numa fase inicial, a Antropologia da Educação colocou-se a
montante do processo educativo formal. Centrou-se naturalmente nesse mundo
“para além da escola”, nos contextos familiares e comunitários onde a criança
aprende a integrar-se no grupo, a fazer sua a cultura desse mesmo grupo.
Preocupou-se com as aprendizagens informais inerentes aos processos de endoculturação
dos grupos sociais. Privilegiou os saberes locais. A aprendizagem e a transmissão
da cultura inicia-se muito antes da entrada formal na escola e mantém-se mesmo enquanto
esta decorre. Ora esta realidade educativa e cultural, exterior ao universo
escolar,tendia a ser ignorada,
subestimada ou mesmo desvalorizada pelos agentes responsáveis das instituições
escolares que «terão hierarquizado o que apenas é diferente» (Vieira, 1999:80).
Incompreensões, mal entendidos, desajustes, choques, conflitos, eram o
resultado desses «dois mundos à parte». O olhar etnocêntrico ou discriminatório
da escola, muitas das vezes sem disso ter consciência, sobre práticas culturais
dos seus alunos, dos seus grupos domésticos e comunidades de origem (Carlos
Cardoso, em relação às famílias e comunidades das minorias, fala mesmo num
«olhar socialmente patológico», 2001:22) conduzia a becos sem saída: a
rentabilidade académica era afectada, o relacionamento era tenso, o insucesso emergia,
o abandono fechava o ciclo. E tudo por desconhecimento da forma como essas crianças
operavam em termos culturais, de como elas dão sentido à realidade. A
Antropologia da Educação, combinando a análise emic e etic, deu visibilidade a
esses mecanismos e desocultou os processos de subalternização ou
marginalização. Habilitou os professores com novos saberes, que lhes permitiram
deixar de ver no aluno a “causa” exclusiva do fracasso escolar. Repensar os
processos de ensino, e a organização interna das próprias escolas passou a ser
um objectivo estratégico. Um modo de equacionar práticas ancestrais num espaço
pouco dado à mudança e à auto-crítica.
Mais recentemente, a Antropologia da Educação passou também a
interessar-se pela escola, enquanto instituição autónoma, com vida própria.
Consequência lógica da centralidade que a escola tem vindo a ganhar na
generalidade das sociedades contemporâneas. Uma das instituições a que mais
anos se está ligado e umas das mais importantes para dar o sentido de coesão e
continuidade sociais a um qualquer país. Durante bastante tempo, a escola foi
um campo de trabalho relativamente descurado pelos antropólogos (as sociedades
sem escrita não a conheciam). No entanto, a escola reúne condições similares às
que a tradição da pesquisa antropológica encontrou noutros objectos de estudo.
A saber: comunidade pequena em termos numéricos, bem delimitada em termos
espaciais, relações personalizadas entre actores sociais, certa unidade e
coerência interna que lhe advêm de objectivos mais ou menos comuns, e um certo
conservadorismo nos seus propósitos de acção. Tudo isto permite que dela se
tenha uma visão de conjunto, sendo possível abarcá-la como um todo. Esta
preocupação em conhecer o seu funcionamento, por dentro, decorre, nomeadamente,
da crescente heterogeneidade cultural das populações estudantis, que introduziu
ainda mais complexidade à tessitura escolar. Hoje, nela interagem
diversificados actores sociais, portadores de identidades, lógicas e
estratégias, de poder e de resistência, diferenciadas e, não raras vezes,
contraditórias e até conflituais. Saber como a escola se organiza e gere,
segundo princípios de inclusividade vs. exclusividade, as pluralidades de
apropriação dos espaços da escola e dos seus saberes, é um dos objectivos de estudo
da Antropologia da Educação. A análise das dinâmicas endógenas à escola
pressupõe um trabalho etnográfico desse ritualizado quotidiano educativo.
Conhecer e entender a “cultura escolar”, nas suas reconfigurações temporais, é
possibilitar, ao conjunto da chamada «comunidade educativa», a reflexividade
institucional que (re)orienta as racionalidades que procuram dar sentido à
acção educativa formal.
Em suma, e socorrendo-nos de Henry Trueba, podemos definir Antropologia da Educação como uma disciplina que «attempts to identify the schooling experience of children and the role of the family in children’s education from the perspective of the home culture, and to examine school problems in their cultural context» (1993:196).
Notas
1. Cf. Paulo Freire e a sua crítica à concepção “bancária”
da educação.
2. Intervenção de Neusa Gusmão no seminário de doutoramento, ISCTE, 25/10/2001.
Referências
CARDOSO, Carlos (coord.) (1998)
Gestão Intercultural do Currículo – 1º Ciclo. Lisboa: ME-Secretariado Coordenador
dos Programas de Educação Multicultural/ Educação Intercultural, nº 10.
CARDOSO, Carlos (coord.) (2001)
Gestão Intercultural do Currículo – 2º Ciclo. Lisboa: ME-Secretariado Entreculturas/
Educação Intercultural, nº 11.
CARDOSO, Carlos (coord.) (2001a)
Gestão Intercultural do Currículo – 3º Ciclo. Lisboa: ME-Secretariado Entreculturas/
Educação Intercultural, nº 12.
CARIA, Telmo H. (1997) “Leitura
sociológica de uma experiência de investigação etnográfica”. Sociologia -Problemas
e Práticas, nº 25, pp. 125-138.
GRÁCIO, Sérgio (1980) “Insucesso
escolar: o sucesso do sistema”. Escola, nº 25, Maio-Junho 1982, pp. 22-4.
ITURRA, Raúl (1990) Fugirás à
Escola para trabalhar a terra: ensaios de Antropologia Social sobre o insucesso
escolar. Lisboa: Escher/ A aprendizagem para além da escola, nº 1.
RIBEIRO, Aquilino (1918) A Via
Sinuosa. Amadora: Livraria Bertrand/ Obras Completas de A.R., 1983.
TRUEBA, Henry T. (1993) “Culture
Diversity and Conflict: The Role of Educational Anthropology in Healing Multicultural
America” in Patricia Phelan e Ann Locke Davidson (eds.) Renegotiating Cultural
Diversity in American Schools. NY and London: Teachers College Press, pp.
195-215.
VIEIRA, Ricardo (1999) Histórias
de Vida e Identidades: Professores e Interculturalidade. Porto: Edições Afrontamento/
Biblioteca das Ciências do Homem, nº 31.
VIEIRA, Ricardo (1999a) “Da
Multiculturalidade à Educação Intercultural: a Antropologia da Educação na Formação
de Professores”. Educação, Sociedade & Culturas, nº 12, pp. 123-162.
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