Luís Souta
AS CIÊNCIAS NAS FRONTEIRAS DA FICÇÃO
«Ciência é loucura se o bom siso a não cura.»
O debate em
torno da ficção, não está hoje circunscrito à literatura. Ele instalou-se no interior
desse espectro largo que são as ciências sociais. Mesmo aquelas que mais
pareciam blindadas a esse tipo de “vírus”, têm-na inscrita nas suas agendas
metodológicas. Tomemos a História como ponto de partida. Nela, o real
acontecido era tornado verdadeiro na e pela escrita do historiador (cujo
estatuto tem muito de comum com o narrador, ainda que mais evidente na corrente
da «história narrativa»). «Os factos», enquanto incidentes singulares da
interacção humana num determinado contexto histórico, eram, por excelência, o
interesse primeiro do historiador. Mas a história não é uma ciência dos factos,
há nela sentimentos, emoções, afectos, especulações… leis e teorias. Captá-los
e “trazê-los” para o interior da História passou a ser um objectivo de quem se
interessa por reconstruir o passado, na sua pluridimensionalidade. Também por
resolver estiveram sempre os “buracos” na história das nações e da humanidade,
para os quais não havia documentação, monumentos, artefactos, provas empíricas.
Cabia então ao historiador, resolver esses problemas, preenchendo lacunas, com
o recurso a inferências, à imaginação, em suma, à ficção. Daí que Valdés afirme
peremptório: «There is as much fiction in history as there are facts in
fiction» (1992:28).
Por sua vez
Hayden White diz que a principal distinção entre história e ficção «tem a ver
com a forma, e não com o conteúdo» (citado em Nóvoa, 2000).
Neste
ponto, vale a pena ter presente a visão de um escritor, o peruano Mário Vargas
Llosa, cujos romances «andam muito próximos de acontecimentos históricos»1
e que destrinça a questão da verdade, na história e na literatura, nestes
termos: «A verdade literária e a verdade histórica são muito distintas. A
verdade histórica mede-se pela identificação entre aquilo que um historiador
conta e a realidade vivida. A verdade de uma ficção não é alheia à própria
ficção. Depende, não da sua identificação com uma realidade prévia, mas
fundamentalmente do seu poder de persuasão.» E ilustra com Guerra e Paz de Tolstoi onde os historiadores detectam uma série de
inexactidões sobre as guerras napoleónicas mas os leitores não deixam de
acreditar «cegamente (…) pela força hipnótica que o romance tem»2. É
esta uma das formas próprias que a literatura tem de nos levar acreditar que
«copia a realidade».
Sandra
Pesavento reconhece que as divisões se têm esbatido pelo que «a questão da
veracidade e da ficcionalidade do texto histórico está (…) presente na nossa
contemporaneidade, fazendo dialogar a literatura e a história num processo que
dilui fronteiras e abre as portas da interdisciplinaridade» (2000:37).
Pesavento faz um exercício curioso, em relação a um período concreto da História
do Brasil: procura cruzar uma obra literária de 1865 – Iracema – do conhecido escritor José de Alencar (1829-1877), com o
trabalho de 1907 – Capítulos da História
Colonial do não menos conhecido historiador Capristano de Abreu. Cotejando
as duas obras, ela constata «o quanto de verdade» ou de «aproximação com o
real» a primeira obra é portadora. Nela se encontram «registros etnográficos e
passagens de causar inveja a qualquer geógrafo, antropólogo ou filólogo»
(2000:54-5). Não é pois de estranhar que os desenvolvimentos na História (a
ciência social que parecia mais sólida nos seus princípios metodológicos) para
áreas de estudo como a «vida quotidiana» ou das «mentalidades», para só
identificar dois campos, tenha feito entrar no seu aparato instrumental
conceitos como os da representação, do imaginário ou do simbólico.
Um outro
exemplo brasileiro, de articulação estreita entre a antropologia e literatura
num mesmo autor, é-nos dado por José Maurício Arruti quando analisa a obra do
antropólogo Darcy Ribeiro (1995) O Povo
Brasileiro – a formação e o sentido do Brasil e constata que o autor chega
a «reproduzir trechos inteiros de um dos seus romances, como contribuição
legítima para a sua argumentação» (1996-97:305). O produto final pode ser visto
como uma grande narrativa, que em vez de uma pretensa objectividade, resultante
de um olhar externo, distante e superior, ajuda «a pensar a partir da
sensibilidade».
O
historiador Jacques Revel, aquando da sua vinda a Portugal para participar nas
Conferências do Convento 1996, na Arrábida, afirmou numa entrevista concedida a
um jornal nacional3: «Os historiadores iniciam frequentemente as
suas análises pela contextualização. Nas teses francesas havia sempre um
capítulo inicial chamado “La terre et les hommes”. Descreviam uma região, uma
cidade, a paisagem. Montava-se o cenário, como num romance, garantindo assim
que tudo aquilo tinha acontecido alguma vez.»
Um exemplo clássico é a obra de Oscar Lewis Os Filhos de Sánchez, por ele mesmo considerada como uma «literatura de realismo social» (1961:14). A partir das entrevistas aos quatro irmãos da família Sánchez – Manuel, Roberto, Consuelo e Marta – que vivem na vecindad da Casa Grande, num bairro pobre no centro da cidade do México, Lewis procura «uma visão cumulativa, multifacetada, panorâmica de cada indivíduo, da família como um todo, e de muitos aspectos da vida da classe baixa mexicana» (id.:13). E assim, inaugura o método das «autobiografias mútuas» que tanto impacto tem tido não só na antropologia (Vieira, 1998, 1999) como noutras ciências sociais (Leite, 1999)… O antropólogo americano praticamente abdica da análise teórica, dando-nos um «pedaço de vida (do “romanesco”), mas pedaço de vida refractado por várias subjectividades, o que lhe permite um mínimo de objectividade» (Copans, 1971:51). Curiosa é a reacção de um escritor, Vergílio Ferreira, a este livro, de que nos dá conta no primeiro volume do seu diário Conta-Corrente: «o grande truque do autor é jogar no verdadeiro contra o verosímil. (…) Mas dizendo-nos que aquilo é “verdade”, nós pomos de parte a categoria da “verosimilhança” e aceitamos. (…) [E uma vez] declarada a “verdade” das narrativas, só mal reparamos nas inúmeras intervenções do autor (comparações, reflexões, etc.) evidentemente “literárias”. (…) A “literatura” não está apenas nas narrativas do Manuel (que o autor nos diz “instruído”) mas em todas» (1980:72). Vergílio Ferreira conclui dizendo que o que valoriza uma narrativa “verdadeira” seria alvo de discussão numa narrativa ficcional.
Notas
1. Conversa na
Catedral (1969), A Guerra do Fim do
Mundo (1981), História de Mayta
(1984), A Festa do Chibo (2000), O Paraíso na Outra Esquina (2003)…
2. Entrevista de Mário Vargas Llosa ao DNA, 21/04/2001, p. 15.
3. Entrevista concedida a Octávio Gameiro, Público, 20/07/1996, p. 5 do suplementos “Leituras & Sons”.
Referências
ARRUTI,
José Maurício (1996-97) “Uma antropologia Mameluca a partir de Darcy Ribeiro,
1995: O Povo Brasileiro – a formação e o
sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras”. Revista da Faculdade de Letras, nº 21-22, 5ª série, pp. 301-312.
COPANS,
Jean et al (1971) Antropologia. Ciência das sociedades
primitivas? Lisboa: Edições 70/ Biblioteca 70, 1974.
FERREIRA,
Vergílio (1980) Conta-Corrente 1 (1969 a
1976). Amadora: Livraria Bertrand.
LEITE, Carolina (1999) “Conto e Histórias de Vida nas
Ciências Sociais”. Comunicação e
Sociedade, Cadernos do Noroeste,
Série Comunicação, vol. 12, nº 1-2, pp. 219-227.
LEWIS, Oscar (1961) Os Filhos de Sánchez. Lisboa: Moraes Editores/ Mundo imediato, nº
1, 2ª edição, 1979.
NÓVOA, António (2000) “História & Educação”. Educação Ensino, nº 22, Maio-Junho, pp.
9-11.
PESAVENTO,
Sandra Jatahy (2000) “Fronteiras da Ficção: diálogos da história com a
literatura”. Revista de História das
Ideias, vol. 21, pp. 33-57.
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