terça-feira, 22 de novembro de 2022

“Literatura: o pão nosso de cada dia” (IX)

 Luís Souta

ANTROPOLOGIA e LITERATURA

«Do que eu gostava na antropologia, era o seu poder de negação, da sua obstinação em definir o homem»

(Samuel Beckett, Molloy, 1964:55) 

A Literatura não sendo uma ciência, tem, no entanto proximidades com o vasto campo das Ciências Sociais (História, Geografia, Antropologia, Sociologia, Economia, Psicologia Social, Ciência Política). De tal modo que se vulgarizou a designação “Ciências Sociais e Humanas” ou “Ciências Sociais e Humanidades”, para incluir outras, como a Literatura, a Filosofia e o Direito. De facto, a Literatura está mais próxima deste grande grupo multidisciplinar cujo centro das suas preocupações são as multíplices problemáticas do Homem e da Sociedade. As diferenças entre Ciências Sociais e Literatura são de natureza e de estatuto social. Podemos recorrer a um critério, a atribuição do prémio Nobel. No âmbito das Ciências Sociais, só a Economia tem esse galardão (o primeiro foi atribuído em 1969). Ora o Nobel Literatura desde 1901 que é concedido, sendo (a par com o da Paz) o de maior impacto mediático e dos mais conhecidos entre o grande público. Este simples exemplo, a que outros se poderiam aduzir, como o da divulgação, via editorial, dos respectivos produtos, serve para salientar a ideia da influência social que a literatura tem quando comparada com o mundo da Ciência.

Jean Copans anotava que «[d]esde a sua origem, a etnologia é também uma literatura, visto que ambas são um discurso, descritivo e valorizante» (1971:50). Nos anos mais recentes, vários têm sido os trabalhos que evidenciam as fronteiras onde se tocam a antropologia e a literatura, muito através dos «estudos culturais». A par da História é talvez na Antropologia que essa proximidade à literatura seja mais notória. O sentido holístico da análise que tanto a Antropologia como a História prosseguem (uma centrada nas sociedades do passado, a outra nas sociedades actuais), colocam o Homem numa rede de múltiplos feixes de intersecção e interacções sociais nas suas diversas actividades e esferas de acção (familiar, económica, política, social, militar, cultural).

O antropólogo americano Clifford Geertz, ligado ao paradigma interpretativo, revolucionou a antropologia moderna, em diversos sentidos, nomeadamente possibilitou uma aproximação entre a antropologia e a literatura, ainda que produzindo afirmações que estão longe de colher consenso entre aquela comunidade científica. Dessas afirmações destacam-se as referentes à cultura, «não é mais do que um conjunto de textos», e às obras etnológicas, consideradas como ficções, na medida em que são produtos construídos. De facto, o produto final do trabalho de campo de um antropólogo consubstancia-se na produção de um texto, que procura, em certa medida, ser a “voz” desses “outros” que lhe serviram de objecto de estudo. Ele resulta de um processo metodológico, único, e distintivo da identidade disciplinar da Antropologia – a «observação participante». Só que Geertz e seguidores preferem, naturalmente, falar em «descrição participante», ou seja, uma versão biográfica do «estar lá» (Casal, 1996:96), e pôr a tónica nos problemas da narratologia, ela própria produtora de uma outra realidade, marcada por uma visão subjectiva. Deste modo se fazia emergir, aquilo que, em regra, não vinha à luz do dia: as condições em que eram recolhidas as informações e como, posteriormente, elas eram traduzidas num texto inevitavelmente plasmado da personalidade de quem o redige (cf. Clifford & Marcus, 1986).

O consumo do texto antropológico é diminuto, limitado, em regra, aos meios académicos e a uma escassa fatia do público não especializado. Tal decorre, também, de uma certa particularidade do tipo de textos antropológicos muitas vezes acusados de conterem «exemplos áridos, sem vida». Um texto descritivo que torna o trabalho maçudo e denso, faltando-lhe fluidez que só a narrativa lhe empresta. Ainda que não se possa confundir o “literato” com o “antropólogo”, um pertenceria à categoria do «escritor» e outro à do «escrevente», recuperando os velhos conceitos de Barthes (1964), ou seja, um mais preocupado em «como escrever?» e o outro em «escrever o quê?».

Só que estes dois modos de encarar a escrita não são dicotómicos; os dois campos têm-se vindo a aproximar, havendo já casos de “fusão” entre a Antropologia e a Literatura, a «artful-science» como lhe chama Ivan Brady, onde a linguagem científica e a estética da arte se interpenetram num género novo. O antropólogo italiano Alberto Sobrero, num texto apresentado no Congresso de Antropologia1, numa secção significativamente designada de «Antropologia como Ficção: as escritas antropológicas», identificou um conjunto assinalável de autores2 e de obras desse tipo, muitas delas produzidas em contexto de emigração ou por “antropólogos-nativos”, estes últimos mais ligados à recente “antropologia periférica” (muito em especial em África e na América Latina). Também de referir os “antropólogos viajantes”, sendo Ramos (2000) e o seu diário de viagem à Etiópia um bom exemplo. Enfim, gente que ousa atravessar as fronteiras onde antropologia e literatura se tocam.

Caso de Paul Benson que editou, em 1993, uma obra pioneira neste domínio a que deu precisamente o título de Anthropology and Literature. Esse volumoso livro reúne onze textos de antropólogos de diferentes nacionalidades que relatam as suas experiências concretas em diversos locais do globo (Alaska, Florida, Índia, Indonésia, Novas Hébridas…), em torno da utilização que fazem da ficção (poesia, tragédias gregas, por exemplo) e que reflectem de forma aprofundada sobre a crescente variedade de géneros na produção dos seus próprios textos, em moldes mais próximos do registo literário (short stories, por exemplo) que da clássica e tradicional monografia. Situando-se em campos metodológicos mais tocados pela pós-modernidade e pelas correntes da antropologia crítica, valorizam uma etnografia auto-reflexiva, que evita as dicotomias dogmáticas e clássicas: etnografia associada a factos e verdades em contraponto com a ficção e a fantasia; dum lado cientistas e do outro artistas. Antes se reforça a unidade das componentes do self, onde o pessoal e o profissional, o literário e o científico do antropólogo lhe permitem rentabilizar a sua acção.

Outro exemplo, é o do antropólogo francês Marc Augé quando recorre às obras de alguns romancistas para dar corpo às três figuras centrais do esquecimento que ele nos propõe – «o retorno, a suspensão e o recomeço» – num conjunto de ensaios em que se procura ver «a vida como narrativa» e da necessidade intrínseca que todo o ser humano tem de esquecer. E usa, para isso, a metáfora da jardinagem: «as recordações são como as plantas: há algumas que é preciso eliminar rapidamente para ajudar as outras a desabrochar, a transformar-se, a florescer» (1998:23).

James Clifford e, em certa medida também, Raúl Iturra têm praticado uma escrita onde se denota um certa justaposição de géneros e onde o “literário” emerge como forma discursiva com fortes marcas de experiência pessoal.

No caso português, temos tido alguns escritores que nas suas obras, mobilizam um conjunto de saberes multidisciplinares, entre os quais os da antropologia; poderíamos quase considerá-los como escritores-etnógrafos que recorrem ao trabalho de campo e, por aí, se aproximam do ofício do investigador social. Aquilino Ribeiro, Alves Redol, Miguel Torga, Tomaz Ribas, Teixeira de Pascoaes3, são alguns exemplos onde muito material etnográfico é coligido e descrito com pormenor e minúcia. Glória: uma aldeia do Ribatejo de Alves Redol (1938), classificada como «ensaio etnográfico», e Aldeia de Aquilino Ribeiro (1946), sub-intitulada «terra, gente e bichos», são talvez os casos mais próximos da monografia antropológica, mais evidente na estrutura do primeiro, mas onde o conteúdo revela preocupação em descobrir as raízes profundas de Portugal, e em particular, conhecer as duras realidades em que vive o seu «povo». Não é por acaso que ambos são “acusados” de escritores regionalistas que, tal como os antropólogos, focalizam o seu estudo sobre uma região específica (aqui, um centra-se na Beira e outro no Ribatejo). Em Aquilino Ribeiro encontramos mais dois livros com referências explícitas nos subtítulos a essa intencionalidade antropológica: O Livro do Menino-Deus: o Natal na história religiosa e na etnografia (1945) e Geografia Sentimental: história, paisagem, folclore (1951). 


Notas

1. Comunicação de Alberto Sobrero ao 2º Congresso de Antropologia, Lisboa, F.C.Gulbenkian, 15/11/1999.

2. Referiu um caso em língua portuguesa, a do cabo-verdiano Luís Romano (1962) Famintos.

3. Cf. “O pensamento antropológico de Teixeira Pascoaes” de Manuel Ferreira Patrício (1997).


Referências

AUGÉ, Marc (1998) As Formas do Esquecimento. Almada: Ímanedições, 2001.

BARTHES, Roland (1964) Elementos de Semiologia. Edições 70.

BENSON, Paul (ed.) (1993) Anthropology and Literature. Urbana and Chicago: University of Illinois Press.

CASAL, Adolfo Yáñez (1996) Para uma epistemologia do discurso e da prática antropológica. Lisboa: Edições Cosmos/ Cosmos Antropologia, nº 1.

CLIFFORD, James e MARCUS, George E. (1986) (eds.) Writing Culture: the Poetics and Politics of Ethnography. London: University of California.

COPANS, Jean et al (1971) Antropologia. Ciência das sociedades primitivas? Lisboa: Edições 70/ Biblioteca 70, 1974.

RAMOS, Manuel João (2000) Histórias Etíopes: diário de viagem. Lisboa: Assírio & Alvim/ Sete estrelo, nº 7.

REDOL, Alves (1938) Glória – Uma Aldeia do Ribatejo. Publicações Europa-América / Obra Completa de AR, nº 18.

RIBEIRO, Aquilino (1946) Aldeia. Venda Nova: Livraria Bertrand/ Obras completas A.R., 1978.


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