Luís Souta
CULTURA DOS ADULTOS E CULTURA DAS CRIANÇAS
«Olham os poetas as crianças das vielasmas não pedem cançonetas mas não pedem
baladaso que elas pedem é que gritemos por elas»(“Os
olhos das crianças”, Sidónio Muralha1, 1963: 93)
A criança é um
“outro”, no mundo dos adultos, um ser que durante muito tempo foi visto como
inacabado, imperfeito, incompleto – “homúnculos”, seres sociais “em trânsito” –
como os designa Sarmento (2000:148). Eram percepcionados como gente em défice,
a quem faltavam atributos, e entre estes a “não-razão” era o mais marcante
nessa negatividade. Gente que vive no imaginário, na fantasia, para além do
real. E aí constrói um “mundo” à parte, o “faz-de-conta” do jogo e da
brincadeira permanentes. Aqui se pode vislumbrar uma certa tendência
valorizadora, criada em torno da ideia de uma “idade da inocência”. E em redor
dela se foram construindo representações míticas, encantatórias, interpretações
mais ou menos abusivas de comportamentos e atitudes infantis, que decorriam, no
essencial, do desfocado olhar adultocêntrico. Mas esta imagem não tinha
implicações sociais relevantes. A pequenada não deixava de ser invisível em
termos de direitos e de estatuto. Remetida quantas vezes para as margens do
viver colectivo, insegura, sem qualquer autonomia, dependente da vontade, do
capricho e do autoritarismo do adulto. A sua condição “pré-social” facilitava a
sua despudorada e precoce integração, quantas vezes desumanizada, no mundo laboral
agrícola ou industrial.
Só no último quartel
do século XX se pode falar na infância como categoria social, a quem são
reconhecidos direitos e um estatuto de dignidade plena. E a sua importância na
contemporaneidade cresceu de tal modo que Eduardo Lourenço chega a falar na
«adulação permanente e espectacular da criança-rei» (1978:134), o que não
andaria muito distante da «criança bibelot»
que Philippe Ariès tipificou. À criança nada se nega, tudo lhe é devido, tudo
se faz (e compra)2 para a manter num estado etéreo de
permanente felicidade. Toda uma indústria cultural e de animação para crianças,
onde os media e a publicidade assumem
uma importância vital, floresce e alimenta a aquisição desenfreada de produtos
e serviços que não só levanta fortes suspeições quanto às suas potencialidades
pedagógicas de desenvolvimento e formação das crianças, como as conduz para uma
«adultização precoce». O cadinho social em que estes fenómenos se geram é
propício: impera a tetralogia dos valores da pós-modernidade – consumismo,
hedonismo, permissividade, relativismo. E por outro lado, o trabalho a tempo
inteiro do pai e da mãe fora do lar, reduz de forma drástica o tempo dedicado
ao convívio com as crianças (“despejadas” muito cedo nas creches e escolas
básicas a quem se delegam responsabilidades quase exclusivas na sua educação).
Mas, mais grave ainda, as rupturas familiares, pelo número inusitado de
divórcios3, leva a separações e ausências de um dos progenitores
(em regra, o pai). Quer uma quer outra situação, deixa os ascendentes com um
sentimento de falta e de “culpabilização”, que procuram ressarcir através da
oferta constante de presentes, quantas vezes antecipando-se aos desejos (nem
sequer formulados) dos seus filhos: «compensar os filhos é comprar o seu
perdão» (Emílio). Melhor não faz o “substituto”, que recompõe a estrutura
familiar, pois querendo conquistar a criança, acaba também ele(a) por cair em
práticas similares.
Praticamente o único
dever que se exige à criança, nos nossos dias, é ir à escola e estudar. De
facto, operou-se uma verdadeira inversão no lugar da criança e da escola nas
sociedades modernas. Ambas, ganharam centralidade. Na escola passa-se mais
tempo diariamente e nela se estuda durante mais anos, face a uma escolaridade
aumentada pela antecipação da idade de entrada e prolongada na idade de saída.
Crianças e escolas
vivem processos de autonomia e diferenciação. Por isso, faz hoje todo o sentido
falar de “culturas infantis” e “culturas escolares”. Mas ao adulto (seja pai ou
professor) continua a faltar-lhe o entendimento da epistemologia da criança,
como Iturra a denomina, «o conjunto de conceitos com os quais orienta o seu
agir»: as crianças dispõem de uma «mente cultural», fruto de uma genealogia
marcada pelas interacções sociais e pelas vicissitudes da conjuntura histórica,
que lhes permite apreender a realidade e dar-lhe sentido. A criança seria
dotada de uma sensibilidade e de uma racionalidade próprias, distinta (ou
alternativa) da do adulto. Esse aparato intelectual permite-lhe a construção de
conhecimentos com que ela estrategiza o seu viver quotidiano, na rua, com os
companheiros, com os vizinhos e com seus familiares.
Em que medida não é o
desconhecimento desses mecanismos inerentes à criança a causadora de uma certa
ineficácia educativa da instituição escola? Esta, com todo o seu corpo de
saberes descontextualizados (onde prevalece o formal, o geral, o cognitivo, em
detrimento do significativo, do contextual e do afectivo), a sua linguagem
hermética, as suas mega-finalidades e o seu aparato organizacional uniformizador
de comportamentos, acaba por conduzir àquilo a que Filipe Reis (1995) chama de «domesticação
escolar do pensamento infantil». A «robotização dos alunos» acaba por
ser o resultado dessa linha de montagem.
Tal como o anotava Agostinho
da Silva «as nossas escolas apenas são formadoras de respostas»4. Não se valoriza a pergunta, mas a
resposta, «quando é a pergunta que nos faz caminhar» (Cabral, 2001:897).
Incentiva-se a convergência, não a divergência. A unicidade no pensamento e na
acção. A criança sente-se, neste quadro, como uma espécie de “estrangeiro”, num
espaço que não domina, com regras que não conhece, símbolos que não
descodifica, objectivos que não partilha, valores que a ultrapassam, hábitos
que não tem, condutas que não praticou, ritmos e horários que a condicionam…
Ali o seu «capital cultural» de pouco ou nada vale. E este desajuste é mais
evidente se ela pertence a uma geração que frequenta a escola pela primeira vez
(comum entre comunidades ciganas e piscatórias), ou se, no seio familiar, dela
há apenas uma memória de fracasso e abandono. Em ambas as situações, a criança
fica entregue a si mesma, sem retaguarda que a ampare, a oriente e a incentive.
Então, não lhes resta outra saída que não seja encetar um novo ciclo de
aprendizagens sociais e culturais… mas aí nem todos demonstram vontade, energia
e persistência.
Spindler &
Spindler dão particular ênfase à cultura, entendida não como um simples factor,
influência ou dimensão; para eles, cultura é «in process, in everything that we
do, say, or think in or out of school» (1993:27). E a escola é vista como «a
mandated cultural process» e o professor como um agente cultural. Ora sabendo
que o processo educativo procura uma “intervenção calculada” na aprendizagem,
há que ter em conta que os alunos não só aprendem uns com os outros como trazem
para a escola imensas aprendizagens. Estas duas “fontes” do saber, por
escaparem ao controlo do professor, podem vir a constituir factor de
perturbação pois interferem nos processos de ensino. Tomar consciência dessa
diversidade cultural e alterar o currículo tal como o preconiza Céu Roldão, ou
seja, tendo em conta os contributos que a antropologia trouxe (e também a
linguística) para o reconhecimento da «complexidade do desenvolvimento dos
modos de pensamento» assim como da diferenciação entre o pensamento das
crianças e dos adultos (1994:181) são condições essenciais para uma acção
educativa apostada no sucesso, evitando-se os abandonos precoces.
«Por essa altura o
Júlio começou a andar esquisito. Não ria, não falava, não se interessava pelos
jogos, aparecia menos vezes lá em casa. Não sei se seria o mais inteligente,
mas era o que sabia mais. Trazia sempre as lições na ponta da língua, não se
enganava nas contas nem dava erros no ditado, papagueava a história e a
geografia, os rios, as serras, as linhas férreas. Era o melhor aluno, mas o pai
trabalhava numa fábrica de ferragens e não tinha meios para o mandar para o
Liceu, nem sequer para Escola Comercial e Industrial. O Professor Lencastre
ainda foi falar com ele. Mas nada a fazer, o Júlio estava condenado à oficina.
Então perguntei aos meus pais porque é que uns podiam ir para o Liceu, mesmo
que fossem burros e outros, como o Júlio, não, apesar de ser o melhor da
classe? Responderam-me que a vida era assim. Eu achava que a vida estava mal.
Era ainda mais injusto do que uns andarem de sapatos e outros não. Também o
Professor Lencastre estava revoltado. Julgo até que ele começou a fazer de
propósito para assustar mais uns tantos e obrigá-los a desistir do exame de
admissão. Agarrava-os pelos pés, batia-lhes com a cabeça no chão e perguntava:
Queres ser doutor, pequenino, queres ser doutor? Só se for da mula ruça.
Dizia que valia mais
um dedo do Júlio do que as cabeças deles todas juntas. Mas eles não desistiram.»
(Alma, Manuel Alegre, 1995:199-200)
Notas
1.
Exposição “Sidónio Muralha: Caminhada insubmissa”, Museu do Neo-realismo, Vila Franca
de Xira, de 15/04 a 22/10/2023.
2.
Sintomático é o mote da campanha de vendas, promovida pela cadeia de
supermercados “Pingo Doce”, em 2003: «Sua Excelência, o Bebé!».
3.
Segundo o INE, os Censos de 2021 mostram que «nos últimos 10 anos, aumentou a
importância relativa da população divorciada», representado já 8% dos
residentes em Portugal (um aumento de 2 pontos percentuais em relação ao censo
anterior). Em 2021, registaram-se 17.279 divórcios. Por cada 100 casamentos, 70
divórcios!
4. In DACOSTA, Fernando (2001) Nascido no Estado Novo. Lisboa: Editorial Notícias/ Obras de F.D, p. 362.
Referências
ALEGRE,
Manuel (1995) Alma. Lisboa:
Publicações Dom Quixote.
CABRAL, Ruben de Freitas (2001) “Os desafios à
educação na Europa do séc. XXI”. Brotéria,
vol. 153, nº 5, Novembro, pp. 877-900.
LOURENÇO, Eduardo (1978) O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino Português.
Lisboa: Publicações Dom Quixote, 3ª edição, 1988.
REIS, Filipe (1995) “A domesticação
escolar do pensamento infantil: perspectivas teóricas para análise das práticas
escolares”. Educação, Sociedade &
Culturas, nº 3, pp. 37-55.
SARMENTO, Manuel Jacinto (2000) “Sociologia da
Infância: correntes, problemáticas e controvérsias”. Sociedade e Cultura 2, Cadernos do Noroeste, Série Sociologia, vol.
13, nº 2, pp. 145-164.
SPINDLER,
George e SPINDLER, Louise (1993) “The Processes of Culture and Person: Cultural
Therapy and Culturally Diverse Schools” in Patricia Phelan e Ann Locke Davidson
(eds.) Renegotiating Cultural Diversity
in American Schools. NY and London: Teachers College Press, pp. 27-51.
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