terça-feira, 11 de julho de 2023

“Literatura: o pão nosso de cada dia”(XVI)

 Luís Souta

À memória de meu pai (04/1927-07/2023)
«Finito, o homem aspira ao Infinito; mortal, não se conforma com a morte»
(Teixeira de Pascoaes, Livro de Memórias, 1928:139)


LITERATURA, UMA FONTE DA EDUCAÇÃO

«única verdade, que é a literatura.»
(Livro do Desassossego, Fernando Pessoa, [268], p. 179)

As vivências escolares estão generalizadas no seio de um grupo (altamente) letrado – os escritores – que conheceu a escola com certa profundidade, a partir do seu interior, como alunos e alguns também na qualidade de docentes. E é, essencialmente, a partir dessa realidade que têm elaborado histórias que aparecem em várias das suas obras literárias. Através de um exercício retroactivo de recomposição de cenários e interacções, facilitado por esse conhecimento de proximidade aos contextos educativos, o escritor fornece-nos uma literatura, no que à escola diz respeito, de tipo quase “memorialista” (José Gomes Ferreira, que tantos registos tem sobre o ensino na sua vasta obra de prosa e poesia, confessa a «aparência memorialística de grande parte dos meus livros, se não de todos» (1998:95).

José Gomes Ferreira

Isto é, conhecer o passado, trazê-lo para um melhor entendimento do presente e, concomitantemente, perspectivar o futuro tendo em conta esse espólio. Foi a consciência dessa herança literária que me lançou numa investigação centrada na escola portuguesa (pública e privada, religiosa, laica e militar), para ambos os sexos, e nos processos (formais) de ensino e de aprendizagem, ao longo de um período de cerca de 150 anos, balizado por duas revoluções, a montante, a liberal de 1820 e, a jusante, a democrática de 1974. A opção pelos séculos XIX e XX prende-se com a época em que se dá o desenvolvimento institucional da escolarização e em que a criança e o adolescente surgem como personagens centrais da ficção literária. Essa demorada pesquisa confluiu num corpus organizado a partir de romances, novelas, contos, crónicas, poemas, diários, memórias e ensaios de cunho literário(1). Todo este labor se inscreve numa etapa de um projecto (deveras ambicioso) de estudo, a que poderíamoschamar «um antropólogo na tribo dos escritores»(2).

A escola é, por natureza, avessa à memória de si mesma; o avanço, o desenvolvimento, faz-se antes por cortes com o passado. Prevalece a necessidade de “olhar em frente”, procurar o novo, e de preferência distante desse passado, visto como negativo, a ultrapassar e a vencer. Ora neste trabalho, procurámos ir noutro sentido e nisso estamos sintonizadas com Italo Calvino «considerar o passado em função do futuro». 

A comparação diacrónica de obras literárias com referências à escola, permite-nos essa visão de vários “passados” que, também eles, devem ser entendidos como património profissional que não deixa de condicionar e marcar, indubitavelmente, o nosso presente. Esta abordagem, não é, de modo algum, alternativa à “instalada” e consagrada História da Educação (infelizmente, ainda não contemplada em muitos planos curriculares de formação de professores), também ela em processo de mudança, agora mais virada para a «internalidade do trabalho escolar» e para a «elaboração de “histórias” que traduzem processos vários de construção social das coisas humanas, referindo-se cada uma delas a um momento particular do passado e a intenções específicas de determinados grupos» (Nóvoa, 2000:10).

O nosso propósito era alargar esse universo de análise a outras complementaridades e aprofundamentos. Ampliar as memórias e as experiências, de tempos e lugares diversos. O texto literário faz emergir categorias de análise, mais das esferas do afectivo, do emocional, dos sentimentos, das sensações, dos pensamentos, das interacções mais íntimas, de tudo aquilo que é bem mais difícil de analisar com os instrumentos “clássicos” das Ciências Sociais (inquérito, entrevista) e da Antropologia da Educação (observação participante, ainda que esta haja dado grande impulso na compreensão de certos fenómenos menos “evidentes”).

E mesmo sabendo que o tema escola não ocupa o lugar de destaque na literatura como outros temas – família, amor e vida sentimental, relações de amizade, trabalho e poder… – ele não deixa de, entre nós, ter uma dimensão forte, significativa e presente em diferentes épocas históricas. Ao contrário do que parece verificar-se em França, como nos dá conta Claude Thélot: «souvent, les écrivans français ont évoque l’école, non pas dans leurs romans, leurs oeuvres majeurs, mais dans des autobiographies soit explicites, soit déguisées» (2001:5). Mas, entre nós, a escrita memorialista autobiográfica, tem sido um género pouco cultivado, mesmo a de raiz puramente literária (cf. as 32 obras analisadas por Clara Rocha, 1992). A «maioria dos livros de memórias» são «por via de regra meras colecções de anedotas e episódios pitorescos», segundo o juízo de José Gomes Ferreira (1965:7), ou «duma pobreza subfranciscana» dirá Rodrigues Miguéis (1973:301).

Esta “escola representada”, a partir das obras literárias, constitui um importante acervo de informação sobre essa instituição educativa, resultado de uma construção histórica e conjuntural de políticas educativas e económicas várias e contraditórias. Este legado documental tem sido descurado nas análises dos especialistas, quer da Educação quer da Antropologia. Mesmo os estudos predominantemente literários, têm-se focado numa obra (v.g. a crítica à educação de Carlos em Os Maias feita por António Sérgio, 1980), num só autor (v.g. Concepções Pedagógicas na Obra de Irene Lisboa de Luís Cardoso Teixeira, 2006) ou, quando muito, num conjunto reduzido de obras/autores de temática comum, como foi o caso de Carina Infante do Carmo (1998) em torno do «romance de internato» de Aquilino Ribeiro, José Régio e Vergílio Ferreira, ou ainda de Encarnação Reis (2000) que se centrou nos textos preconizados no programa da disciplina de Português do ensino secundário na «demanda da representação literária de modelos de educação» (p. 7).

Alfredo Margarido, um dos raros antropólogos que se debruçou sobre a literatura portuguesa, adverte para as limitações decorrentes de visões parcelares quando nos cingimos a casos particulares de escritores (ainda que de obra vasta e consagrados no cânone) ou de grupos que comungam propósitos ideológicos semelhantes: «Sendo o romance o espelho de uma sociedade, através do qual conhecemos o homem, os escritores portugueses não nos deram a explicação do homem na sua globalidade e até do país na sua globalidade. Por exemplo, Eça retratou a burguesia, Júlio Dinis ficou-se pelo ruralismo portuense, os neo- realistas ficam-se pelos operários e camponeses e estes, os do Alentejo»(3).

Alfredo Margarido

Diferente é a abordagem que propomos para a “realidade escolar”: ou ela assenta num conjunto muito vasto de escritores, de diversidades várias e, numa diacronia alargada ou, caso contrário, não haverá muito a esperar de análises que não irão para além das fronteiras “da obra em si” ou das conhecidas “vida e obra” deste ou daquele escritor. Ou seja, não se sai do estrito campo dos “estudos literários” que, pouco revertem para o nosso grande objectivo que se consubstancia na compreensão global, profunda e diversificada do que é viver, crescer e aprender na instituição escolar. E, como esta, afinal tem mudado tão pouco no decorrer destes dois últimos séculos (presa numa lógica pendular), não passando os renovados propósitos de reformas permanentes, na maior parte dos casos, de «modernização da espuma» destinada a produzir efeitos conjunturais onde o que mais conta é o «brilho basbaque»(4).

Com este material podemos conhecer a escola portuguesa, através de um outro olhar, o dos escritores. Eles não só fixam a ideia de escola, como a reproduzem. Os escritores, como intelectuais, são pessoas particularmente importantes neste processo. Ver a escola através dos escritores não é apenas uma questão de fontes, mas principalmente um outro olhar, de síntese; a literatura, como a arte em geral, «basta-lhe ser síntese», como dizia Aquilino Ribeiro(5). Mas também um olhar de pertinência, onde o racional e o afectivo se conjugam na visão do jovem estudante que, hoje adulto, se mostra disponível para analisar, por uma escrita reflexiva 6 , os testemunhos recuperados pela memória factual e afectiva (sua, daqueles com quem interagiu ou alheia): a escola e o seu funcionamento, da organização geral aos acontecimentos mais banais, as práticas e as rotinas educativas, o currículo e os processos de transmissão de conhecimentos, a vida dos alunos e as suas aprendizagens, etc. Para além do mais, o facto de todos terem frequentado a instituição escolar e muitos deles terem sido professores, em diferentes níveis de ensino, em diversas disciplinas, e em distintas regiões (continente e ilhas), as suas obras incorporam múltiplos registos, informativos e reflexivos, de etnografia escolar e da vida quotidiana dos estabelecimentos. A escola surge-nos como um micro cosmos com sentido e significado. Muitos desses textos são efabulações construídas a partir de reminiscências da infância e da adolescência, de vivências reais, de experiências concretas do autor. Todavia há quem teime em negar correspondências biográficas: José Régio na Confissão dum Homem Religioso diz «e embora eu tenha sempre de repetir que o Lelito não é um auto-retrato nem A Velha Casa uma autobiografia» (1971:78); mas se é preciso tantas vezes repeti-lo é porque não é fácil desconvencer os leitores das similitudes evidentes entre a realidade e a ficção. De qualquer modo «é inegável a permeabilidade mútua da vida e da obra» em José Régio como o nota Carina do Carmo (1994:71), e o comprovam Eugénio Lisboa (1986) e Giampaolo Tonini (2000). De facto, alguns escritores demonstram certa relutância em reconhecer estas ligações, não em abstracto mas no concreto das suas obras ficcionais. Parece que a veia imaginativa e criadora (traço identitário nobre) sairia assim penalizada. Apesar de muitos textos funcionarem como se fossem histórias de vida dos autores, só nos diários e memórias são assumidos claramente com esse carácter. Através de uma escrita rememorativa, reconstitui-se, a partir de fragmentos dispersos, um passado com um sentido claramente biográfico (ou pelo menos «criptobiográfico»). Urbano Tavares Rodrigues confirma-o, numa entrevista ao Ensino Magazine(7): «Há ao mesmo tempo uma profunda e íntima relação entre romance e autobiografia». Há mesmo quem vá mais longe e afirme que os livros são sempre autobiográficos. Pela memória se pretende «recuperar o tempo vivido e experimentado»(8). Mesmo tendo em conta «as manchas ou buracos que o tempo costuma oferecer às recordações»(9).

Claro que esta capacidade dos escritores, como o afirma Serafim Ferreira, se enquadra na função mais geral de toda «a prosa de ficção (romance, conto ou narrativa(10)), [que] se deve entender como o acto pessoal de compreender ou decifrar o mundo e dele ter profunda consciência», ou seja, o escritor «exprimindo o geral pelo particular» (1998:91) acaba por ver a sua experiência, num certo tempo e espaço, e numa realidade concreta, ser generalizada e, portanto, partilhada pelos leitores, num processo de identificação.

Ainda que estejamos face a uma escrita de ficção, a sua “proximidade” com a realidade é por demais evidente, pelo que não podemos negar a sua utilidade como um capital cultural para apreensão do fenómeno educativo. C. Wright Mills evidencia as grandes potencialidades da literatura na compreensão dos fenómenos sociais, chegando mesmo a afirmar que «uma obra literária ensina, às vezes, mais, de Sociologia exercida, que certos compêndios de tantos profissionais desta ciência». Por aquilo a que Bourdieu designa como o «efeito de crença» e «que faz com que a obra literária possa por vezes dizer mais, inclusivamente sobre o mundo social, do que muitos escritos de pretensões científicas» (1992:54). Na mesma linha se colocava Freud quando, em relação ao conhecimento do homem e do seu inconsciente, valorizava mais os poetas e romancistas que os psicólogos.

Notas

1. Carreirinha da Escola de Luís Souta (a publicar, em breve, pela Ed. Sítio do Livro).
2. Título sugerido a partir do artigo de Lewis Thomas “Um antropólogo estuda a tribo dos médicos”. Diálogo, nº4, vol. 21, 1988, pp. 48-52.
3. Intervenção de Alfredo Margarido no “Colóquios de Outono da Raia”, 19-20/11/1998. Gazeta do Interior, 26/11/1998, p. 16.
4. Estes dois conceitos foram tomados de empréstimo a António Barreto, Público, 04/06/2000, p. 13.
5. “Prefácio-Dedicatória” ao seu livro Portugueses das Sete Partidas, 1969, p. 16.
6. Natália Nunes, na entrevista que nos concedeu (05/2002), diz: «sou alguém que passou pela escola e reflectiu
sobre isso».
7. Entrevista de Urbano Tavares Rodrigues ao Ensino Magazine, nº 10, Dezembro 1998, p. 2.
8. Serafim Ferreira, a Página da Educação, Julho 1999, p. 30.
9. Entrevista de Rui de Azevedo Teixeira, DN, 31/03/2002, p. 39.
10. Vasco Graça Moura, 1999, considera que «todo o poema é também uma ficção».

Referências

BOURDIEU, Pierre (1992) As Regras da Arte: Génese e Estrutura do Campo Literário. Lisboa: Editorial Presença, 1996.
CARMO, Carina Infante do (1994) “Algumas reflexões sobre Uma Gota de Sangue (A Velha Casa I), de José Régio”. A Cidade – revista cultural de Portalegre, nº 9 (nova série), pp. 67-74.
CARMO, Carina Infante do (1998) Adolescer em Clausura – Olhares de Aquilino, Régio e Vergílio Ferreira sobre o Romance de Internato. Faro e Viseu: CEAR-Universidade do Algarve/ Línguas e Literaturas, nº 2.
FERREIRA, José Gomes (1965) A Memória das Palavras ou o gosto de falar de mim. Portugália/ Obras de J.G.F.
FERREIRA, José Gomes (1998) Dias Comuns II. A Idade do Malogro. Lisboa: Dom Quixote.
FERREIRA, Serafim (1998) O Acto e a Letra: biografias breves. Lisboa: Escritor/ 10 anos.
LISBOA, Eugénio (1986) José Régio a obra e o homem. Lisboa: Dom Quixote.
MIGUÉIS, José Rodrigues (1973) O Espelho Poliédrico. Lisboa: Estúdios Cor/ Obras de J.R.M., nº 5.
NÓVOA, António (2000) “História & Educação”. Educação Ensino, nº 22, Maio-Junho, pp. 9-11.
RÉGIO, José (1971) Confissão dum Homem Religioso. Páginas Íntimas. Lisboa: IN-CM/ Biblioteca de Autores Portugueses – Obra Completa J.R., 2001.
REIS, João da Encarnação (2000) A Educação na Literatura Portuguesa. Lisboa: Edições Colibri.
ROCHA, Clara (1992) Máscaras de Narciso: estudos sobre a literatura autobiográfica em Portugal. Coimbra: Almedina.
SÉRGIO, António (1980) “Sobre a imaginação, a fantasia e o problema psicológico-moral na obra novelística de Queirós” in Ensaios, vol. 6º. Lisboa: Sá da Costa/ Clássicos Sá da Costa – Obras completas A.S., pp. 53-120.
TEIXEIRA, Luís Cardoso, (2006) Concepções Pedagógicas na Obra de Irene Lisboa (1892-1958). Porto: Profedições.
THÉLOT, Claude (org.) (2001) Les Écrivans Français Racontent l’École: 100 textes essentiels. Paris: Delagrave, Maisonneuve & Larose.
TONINI, Giampaolo (2000) “José Régio. Autobiografismo e modernidade literária”. Boletim do Centro de Estudos Regianos, nº 6-7, Junho-Dezembro, pp. 105-108.

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