segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Literatura: o pão nosso de cada dia (XVIII)

Luís Souta 

A ESCOLA ATRAVÉS DO TEXTO LITERÁRIO  


«reconstituir a infância e a adolescência de cada um, perdidas em longínquos caixotes de lixo.»
(Coleccionador de Absurdos, José Gomes Ferreira, 1978:11) 

A literatura portuguesa tem reservado espaço temático à escola através do seu interesse pelo mundo das crianças e dos jovens. Nas suas vidas em formação, a actividade escolar ocupa um tempo significativo. Abordar o quotidiano infantil e juvenil é nele incluir essa dimensão educativa formal. Muito frequentemente, nas obras de ficção, quando o enredo gira em torno de jovens personagens (bildungsroman), ou quando os adultos recuam ao tempo da infância, em flash backs rememorativos, as vivências escolares acabam por aparecer. Nas narrativas assumidamente autobiográficas, o tempo de escola tem sempre lugar cativo. E são esses episódios, onde a escola e o ensino aparecem de forma clara, que foram alvo da nossa pesquisa. Esta recolha sistemática permitiu-nos organizar um vasto corpus temático, em que a escola, nos seus diversos níveis de escolaridade (da infantil à universidade), os seus actores (alunos e professores) e todos aqueles que giram em torno dela (em particular as famílias dos alunos) se constituem como elementos centrais de análise. A diversidade de autores, de géneros, de épocas e de contextos permite-nos uma visão diacrónica, multifacetada e global sobre uma das mais importantes instituições sociais da nossa sociedade. Este tipo de material oferece enormes potencialidades para quem está interessado na compreensão aprofundada dos fenómenos educativos. Uma dessas virtualidades tem a ver com a possibilidade de, por seu intermédio, acedermos a um outro olhar, o dos destinatários primeiros dos processos de acção educativa – as crianças e os jovens. Como eles percepcionam a organização escolar, como apreendem os conteúdos disciplinares, como interpretam os comportamentos dos professores, como enfrentam as pressões familiares ou como dão sentido ao seu labor estudantil são apenas alguns exemplos de outras lógicas de pensamento e acção, nem sempre coincidentes (e quantas vezes divergentes) com a dos adultos (pais ou educadores). Reconhecer nesta perspectiva singular (a das mundivivências juvenis) uma importante achega à compreensão alargada de uma instituição (a escola) e de um processo (de ensino e de aprendizagem) delineados por políticos, técnicos e professores é incorporar o real vivido no confronto com as intenções discursivas de textos legais ou de orientação pedagógica. Este olhar que nos vem da literatura, reporta-nos para o realizado e não para o idealizado. Coloca-nos no terreno das interacções reais (possíveis ou verosímeis), de sujeitos “concretos” e contextualizados, que operam segundo motivações, constrangimentos, sentimentos e racionalidades (mas também com muito de alógico e de não-racional). O formato da narrativa possibilita-nos essa dinâmica das acções de que a vida se processa nas suas rotinas, rupturas e mudanças. A escola surge-nos assim com movimento e continuidade, isto é, com vida.

É certo que os escritores gostam de ser lidos, de preferência na íntegra, mas não analisados. Eles são avessos a interpretações exteriores. A obra vale por si, e só o autor lhe dá o sentido pleno. Isso o nota José Jorge Letria na sua poesia “Abrir as asas e voar” (2001:39-40):

«A literatura quer viver a sua vida/ sem ter quem a policie e interprete./ Não quer estar confinada aos laboratórios,/ nem ao exercício interminável da pesquisa/ Ela fala de pessoas e dos seus dramas/ e não gosta que a cataloguem ou classifiquem».

Não é neste sentido que o fazemos. Não se trata aqui de análise literária, e muito menos de juízos críticos sobre qualidade da escrita ou construção ficcional. O que para nós é relevante é o conteúdo: a sua riqueza informativa e descritiva sobre a escola e toda a teia de relações que em torno dela se estabelece. Por isso, defendemos um processo de inclusão total, sem marginalização de quem quer que seja (autores, correntes ou movimentos) ou do que quer que seja (géneros literários). Neste propósito, todos nos merecem igual apreço. O que importa é ter um diversificado leque de situações escolares, que nos ajudem a ter uma visão global, e não parcelar, do mundo educativo formal. Teríamos deste modo um “texto” que, como dizia o desconstrutivista Jacques Derrida, seria um “tecido de enxertos”. O termos optado por um corpus de dimensão alargada permite-nos também identificar um conjunto de “subtemas” com forte presença na literatura: a escola primária ocupa, de longe, lugar de destaque; segue-se o “liceu”, o “colégio” (em especial o internato), a “universidade”; por fim, o “ensino doméstico” e a “escola de adultos”; na escola primária, o primeiro dia de aulas e os castigos, com a palmatória, são descritos por vários escritores; tanto no que respeita à “primária” como ao “liceu”, o Português e a Matemática são os saberes disciplinares que sobrelevam todos os outros; também os exames, a figura do professor e as resistências à escolarização (por motivos económicos) acabam por ser recorrentes.

Mas para além do que escreveram sobre a escola, interessa-nos o pensamento dos escritores. Estes são elementos cruciais na vida cultural e cívica das nossas sociedades. As reflexões que nos trazem, quer nas suas obras quer nas intervenções públicas, não se circunscrevem, de modo algum, ao estrito domínio da literatura mas à generalidade das problemáticas sociais com que nos confrontamos. A voz do escritor é uma voz escutada, tida em conta. Uma das suas especificidades é a de anteciparem cenários, rasgarem horizontes, desbravarem utopias. Como o nota Maria Velho da Costa «o escritor é aquele useiro e vezeiro em contra-tempos» (1).

Maria Velho da Costa

Os textos que incluí em Carreirinha da Escola (Edições Ex-Libris, no prelo) remetem-nos para um tempo passado, onde as memórias foram recuperar testemunhos marcantes desses períodos cruciais da infância e da adolescência associados à formação académica (e também da idade adulta, mais ligada ao período universitário ou a processos de alfabetização tardia). O registo esclarecido e crítico do intelectual escritor, que dedicou uma parte importante do seu labor à descrição e reflexão dos quotidianos escolares, importa aos educadores conhecer. A experiência enquanto alunos, acumulada (em alguns) com uma posterior docência, acrescida de uma escrita sobre a temática escolar e o acompanhamento, como observadores atentos, do fenómeno educativo, fazem dos escritores elementos significativos para as análises pluriperspectivadas do sistema escolar. A compreensão aprofundada dessa complexa realidade não deve deixar de ter em conta o apport destes agentes “exteriores” ao campo. Eles alargam os domínios de análise às dimensões relacionais, emotivas e da sensibilidade. Nos seus textos, não se ficam pelo cognitivo e pela racionalidade. Revelam-nos as hesitações, os dilemas, as incongruências dos actores. Desvendam-nos o íntimo das personagens (são mais que simples «seres de papel»), os seus processos de introspecção e de auto-análise que nos permitem compreender o sentido diversificado que cada um dá ao acto educativo, nas suas múltiplas concretizações. Introduzem também as interacções dialogantes para além da sala de aula, em espaços como o recreio, a camarata, os percursos casa-escola, o seio familiar, que, em regra, são pouco analisados na investigação educacional. Na narrativa literária, a escola não surge apenas nas suas linhas definidoras, estruturantes, gerais e nucleares, mas ela aparece-nos igualmente na riqueza do detalhe, do pormenor, na descrição da minúcia. Quase se poderia dizer que os textos literários sobre a escola fornecem o “recheio” vivencial e dinâmico que o ensaio deixou em aberto, por se centrar nas “traves-mestras”. Assim se complementam estas duas démarches que nos permitem, em simultâneo, ter um quadro mais amplo, mais diversificado, mais aprofundado e também mais detalhado do universo escolar.

Foi claro que, apesar de estarmos num registo ficcional, as acções que se desenrolam nos espaços escolares estão muito “coladas” ao real vivido, observado, ou simplesmente contado ao escritor. E isso não acontece apenas nas produções mais clássicas do romance «representação do real» como nos de «produção de um universo próprio» (para usarmos os conceitos de Jean Ricardou). Esta é uma área onde as fronteiras entre a ficção e a realidade se parecem esbater. A escola e os seus actores são nos apresentados dentro de contextos lógicos, de real significado. Os locais, os tempos, os artefactos, as acções, os discursos, de muitos desses textos, transportam-nos para cenários de enorme verosimilhança, em que o leitor se revê e identifica: «era assim, tal e qual, no meu tempo de escola». Em certos casos, a preocupação de relembrar o passado colocou o escritor numa espécie de exercício de “restauro” e rigor de um tempo que foi o seu. E daí a riqueza etnográfica que deles emerge (incluindo formas, cores e odores), na descrição dos edifícios, das salas de aula, dos recreios, dos materiais escolares, das tarefas ligadas ao estudo das diferentes disciplinas, dos métodos de ensino, das formas de avaliação, dos castigos, dos rituais académicos, etc., etc. Ainda que estes sejam importantes elementos para a caracterização da cultura escolar, que um qualquer antropólogo não descuraria, a dinâmica da narrativa permite-nos, fundamentalmente, “entrar” no pensamento e na acção dos actores educativos que actuam em contextos geográficos, familiares, sociais, culturais e históricos bem concretos. Esta variedade de situações, coloca-nos em termos metodológicos, próximo dos «estudos múltiplos de caso» (Yin, 1984). Da singularidade narrativa dos diversos casos particulares, acederíamos a uma conexão geral de regularidades próprias das problemáticas educativas.

Nota

1. Maria Velho da Costa, Seara Nova, nº 1567, Maio de 1976, p. 39.

Referências

LETRIA, José Jorge (2001) O Livro Branco da Melancolia. Lisboa: Quetzal Editores/ poesia.

YIN, Robert K. (1984) Case Study Research: Design and Methods. Newbury Park: Sage/ Applied Social Research Methods Series, vol. 5, 1989.


quinta-feira, 21 de setembro de 2023

AS CINCO ESTAÇÕES

 Risoleta C. Pinto Pedro

Edições Sem Nome

2023

OUTONO

...

No teu contar

transforma

a mesa da escrita

em bandeja de vestal.

E a caneta,

poeta,

será cana

de profeta.


domingo, 10 de setembro de 2023

Textos Soltos

Luís Santos

1.
No genograma que se vê em baixo, representam-se número de ascendentes diretos quando recuamos sete gerações... Ora fazendo um exercício simples, se o meu avô paterno José António dos Santos nasceu em 1887, quando chegamos ao meu quinto avô há-de ter nascido lá para 1700, seguramente, muito perto do século XVII, ainda antes da "Era das Revoluções", quer dizer, da Revokução Industrial, Revolução Americana e Revolução Francesa, o que dá a ideia da relatividade do tempo histórico e da enormidade de parentes e de territórios que temos por detrás de cada um de nós.

No meu caso, como o dito avô nasceu em Alhos Vedros e casou com uma moçoila que veio de Niza, Portalegre, cujo pai, por sua vez, veio de Peral, Castelo Branco, reparem só que em quatro gerações os meus antepassados estendendem-se por uma mancha geográfica que abrange as províncias da Beira Baixa, Alto Alentejo e Estremadura.

Agora, experimentem para vocês e vejam o engraçado da questão.


2.
Tempo de relembrar que Alhos Vedros registou este ano a 50ª edição da sua histórica Feira do Livro, organização da Academia Musical e Recreativa 8 de Janeiro, desde 1972, o que é obra!
Aproveitando o número redondo que faz dela uma das Feiras do Livro mais antigas do país, a Junta de Freguesia teve, em boa hora, a feliz ideia de iniciar a realização do 1º Prémio Literário Leonel Coelho.
Aqui, no palco da Feira, com cenário bem a propósito, feito com materiais antigos que vieram de outras edições, Dores Nascimento relembrando num emotivo e único momento o patrono do Prémio e um dos grandes obreiros da Feira, seu pai.


3.
CHAKRAS, ou chacras, segundo a cultura hindu, iogue, estudos da teosofia, entre outros, são centros de absorção e exteriorização de energias no corpo subtil (duplo etérico).
O conceito de corpo subtil encontra-se tanto em tradições ocidentais quanto orientais, geralmente significando um aspeto corpóreo "quase material" entre corpo e mente, ou um revestimento da alma cujos elementos são mais subtis, finos ou espirituais do que os do corpo físico humano.
(Cf. Wikipédia)