Luís Souta
A ESCOLA ATRAVÉS DO TEXTO LITERÁRIO
«reconstituir a infância e a adolescência de cada um, perdidas em longínquos caixotes de
lixo.»(Coleccionador de Absurdos, José Gomes Ferreira, 1978:11)
A literatura portuguesa tem reservado espaço
temático à escola através do seu interesse pelo mundo das crianças e dos
jovens. Nas suas vidas em formação, a actividade escolar ocupa um tempo
significativo. Abordar o quotidiano infantil e juvenil é nele incluir essa
dimensão educativa formal. Muito frequentemente, nas obras de ficção, quando o
enredo gira em torno de jovens personagens (bildungsroman),
ou quando os adultos recuam ao tempo da infância, em flash backs rememorativos, as vivências escolares acabam por
aparecer. Nas narrativas assumidamente autobiográficas, o tempo de escola tem
sempre lugar cativo. E são esses episódios, onde a escola e o ensino aparecem
de forma clara, que foram alvo da nossa pesquisa. Esta recolha sistemática
permitiu-nos organizar um vasto corpus
temático, em que a escola, nos seus diversos níveis de escolaridade (da
infantil à universidade), os seus actores (alunos e professores) e todos
aqueles que giram em torno dela (em particular as famílias dos alunos) se
constituem como elementos centrais de análise. A diversidade de autores, de
géneros, de épocas e de contextos permite-nos uma visão diacrónica,
multifacetada e global sobre uma das mais importantes instituições sociais da
nossa sociedade. Este tipo de material oferece enormes potencialidades para
quem está interessado na compreensão aprofundada dos fenómenos educativos. Uma
dessas virtualidades tem a ver com a possibilidade de, por seu intermédio,
acedermos a um outro olhar, o dos destinatários primeiros dos processos de
acção educativa – as crianças e os jovens. Como eles percepcionam a organização
escolar, como apreendem os conteúdos disciplinares, como interpretam os
comportamentos dos professores, como enfrentam as pressões familiares ou como
dão sentido ao seu labor estudantil são apenas alguns exemplos de outras
lógicas de pensamento e acção, nem sempre coincidentes (e quantas vezes
divergentes) com a dos adultos (pais ou educadores). Reconhecer nesta
perspectiva singular (a das mundivivências juvenis) uma importante achega à
compreensão alargada de uma instituição (a escola) e de um processo (de ensino
e de aprendizagem) delineados por políticos, técnicos e professores é
incorporar o real vivido no confronto com as intenções discursivas de textos
legais ou de orientação pedagógica. Este olhar que nos vem da literatura,
reporta-nos para o realizado e não para o idealizado. Coloca-nos no terreno das
interacções reais (possíveis ou verosímeis), de sujeitos “concretos” e
contextualizados, que operam segundo motivações, constrangimentos, sentimentos
e racionalidades (mas também com muito de alógico e de não-racional). O formato
da narrativa possibilita-nos essa dinâmica das acções de que a vida se processa
nas suas rotinas, rupturas e mudanças. A escola surge-nos assim com movimento e
continuidade, isto é, com vida.
É certo que os escritores gostam de ser lidos,
de preferência na íntegra, mas não analisados. Eles são avessos a
interpretações exteriores. A obra vale por si, e só o autor lhe dá o sentido
pleno. Isso o nota José Jorge Letria na sua poesia “Abrir as asas e voar”
(2001:39-40):
«A literatura quer viver a sua vida/ sem ter
quem a policie e interprete./ Não quer estar confinada aos laboratórios,/ nem
ao exercício interminável da pesquisa/ Ela fala de pessoas e dos seus dramas/ e
não gosta que a cataloguem ou classifiquem».
Não é neste sentido que o fazemos. Não se trata aqui
de análise literária, e muito menos de juízos críticos sobre qualidade da
escrita ou construção ficcional. O que para nós é relevante é o conteúdo: a sua
riqueza informativa e descritiva sobre a escola e toda a teia de relações que
em torno dela se estabelece. Por isso, defendemos um processo de inclusão total,
sem marginalização de quem quer que seja (autores, correntes ou movimentos) ou
do que quer que seja (géneros literários). Neste propósito, todos nos merecem
igual apreço. O que importa é ter um diversificado leque de situações
escolares, que nos ajudem a ter uma visão global, e não parcelar, do mundo
educativo formal. Teríamos deste modo um “texto” que, como dizia o desconstrutivista
Jacques Derrida, seria um “tecido de enxertos”. O termos optado por um corpus de dimensão alargada permite-nos
também identificar um conjunto de “subtemas” com forte presença na literatura:
a escola primária ocupa, de longe, lugar de destaque; segue-se o “liceu”, o
“colégio” (em especial o internato), a “universidade”; por fim, o “ensino
doméstico” e a “escola de adultos”; na escola primária, o primeiro dia de aulas
e os castigos, com a palmatória, são descritos por vários escritores; tanto no
que respeita à “primária” como ao “liceu”, o Português e a Matemática são os
saberes disciplinares que sobrelevam todos os outros; também os exames, a
figura do professor e as resistências à escolarização (por motivos económicos)
acabam por ser recorrentes.
Mas para além do que escreveram sobre a escola,
interessa-nos o pensamento dos escritores. Estes são elementos cruciais na vida
cultural e cívica das nossas sociedades. As reflexões que nos trazem, quer nas
suas obras quer nas intervenções públicas, não se circunscrevem, de modo algum,
ao estrito domínio da literatura mas à generalidade das problemáticas sociais
com que nos confrontamos. A voz do escritor é uma voz escutada, tida em conta.
Uma das suas especificidades é a de anteciparem cenários, rasgarem horizontes,
desbravarem utopias. Como o nota Maria Velho da Costa «o escritor é aquele
useiro e vezeiro em contra-tempos» (1).
Os textos que incluí em Carreirinha da Escola (Edições Ex-Libris, no prelo) remetem-nos
para um tempo passado, onde as memórias foram recuperar testemunhos marcantes
desses períodos cruciais da infância e da adolescência associados à formação
académica (e também da idade adulta, mais ligada ao período universitário ou a
processos de alfabetização tardia). O registo esclarecido e crítico do
intelectual escritor, que dedicou uma parte importante do seu labor à descrição
e reflexão dos quotidianos escolares, importa aos educadores conhecer. A
experiência enquanto alunos, acumulada (em alguns) com uma posterior docência,
acrescida de uma escrita sobre a temática escolar e o acompanhamento, como
observadores atentos, do fenómeno educativo, fazem dos escritores elementos
significativos para as análises pluriperspectivadas do sistema escolar. A compreensão
aprofundada dessa complexa realidade não deve deixar de ter em conta o apport destes agentes “exteriores” ao
campo. Eles alargam os domínios de análise às dimensões relacionais, emotivas e
da sensibilidade. Nos seus textos, não se ficam pelo cognitivo e pela
racionalidade. Revelam-nos as hesitações, os dilemas, as incongruências dos
actores. Desvendam-nos o íntimo das personagens (são mais que simples «seres de
papel»), os seus processos de introspecção e de auto-análise que nos permitem
compreender o sentido diversificado que cada um dá ao acto educativo, nas suas
múltiplas concretizações. Introduzem também as interacções dialogantes para
além da sala de aula, em espaços como o recreio, a camarata, os percursos
casa-escola, o seio familiar, que, em regra, são pouco analisados na
investigação educacional. Na narrativa literária, a escola não surge apenas nas
suas linhas definidoras, estruturantes, gerais e nucleares, mas ela aparece-nos
igualmente na riqueza do detalhe, do pormenor, na descrição da minúcia. Quase
se poderia dizer que os textos literários sobre a escola fornecem o “recheio”
vivencial e dinâmico que o ensaio deixou em aberto, por se centrar nas
“traves-mestras”. Assim se complementam estas duas démarches que nos permitem, em simultâneo, ter um quadro mais
amplo, mais diversificado, mais aprofundado e também mais detalhado do universo
escolar.
Foi claro que, apesar de estarmos num registo
ficcional, as acções que se desenrolam nos espaços escolares estão muito
“coladas” ao real vivido, observado, ou simplesmente contado ao escritor. E
isso não acontece apenas nas produções mais clássicas do romance «representação
do real» como nos de «produção de um universo próprio» (para usarmos os
conceitos de Jean Ricardou). Esta é uma área onde as fronteiras entre a ficção
e a realidade se parecem esbater. A escola e os seus actores são nos
apresentados dentro de contextos lógicos, de real significado. Os locais, os
tempos, os artefactos, as acções, os discursos, de muitos desses textos,
transportam-nos para cenários de enorme verosimilhança, em que o leitor se revê
e identifica: «era assim, tal e qual, no meu tempo de escola». Em certos casos,
a preocupação de relembrar o passado colocou o escritor numa espécie de
exercício de “restauro” e rigor de um tempo que foi o seu. E daí a riqueza
etnográfica que deles emerge (incluindo formas, cores e odores), na descrição
dos edifícios, das salas de aula, dos recreios, dos materiais escolares, das
tarefas ligadas ao estudo das diferentes disciplinas, dos métodos de ensino,
das formas de avaliação, dos castigos, dos rituais académicos, etc., etc. Ainda
que estes sejam importantes elementos para a caracterização da cultura escolar,
que um qualquer antropólogo não descuraria, a dinâmica da narrativa
permite-nos, fundamentalmente, “entrar” no pensamento e na acção dos actores
educativos que actuam em contextos geográficos, familiares, sociais, culturais
e históricos bem concretos. Esta variedade de situações, coloca-nos em termos
metodológicos, próximo dos «estudos múltiplos de caso» (Yin, 1984). Da
singularidade narrativa dos diversos casos particulares, acederíamos a uma
conexão geral de regularidades próprias das problemáticas educativas.
Nota
1. Maria Velho da Costa, Seara Nova, nº 1567, Maio de 1976, p. 39.
Referências
LETRIA, José Jorge (2001) O Livro Branco da Melancolia. Lisboa: Quetzal Editores/ poesia.
YIN,
Robert K. (1984) Case Study Research:
Design and Methods. Newbury Park: Sage/ Applied Social Research Methods Series, vol. 5, 1989.