sábado, 1 de fevereiro de 2025

Do Diário de Vida de Raul Iturra

 

A Minha Gorda Amiga

Uma homenagem


É com alegria e sorrisos, meu Diário Querido, que vou-me lembrando dessas conversas de quase nove anos que tive no lar onde resido com a minha gorda amiga, já mencionada por mim nos capítulos anteriores. Gorda como metáfora de uma mulher linda, com cara de porcelana como boneca, lisa, sem nenhuma ruga nos seus 86 anos. Anos que eram celebrados por todos nós no 22 de Abril de cada ano. A senhora alta, esguia, apesar dos quilos a mais que tinha em certos anos, porque desde sempre tem adorado comer. Era bom dente, melhor garfo, eram abundantes as bolachas e chocolates... Uma senhora mesmo senhora, cativante, vestida com roupa que tem tido por hábito mudar todos os dias. Levava mais de uma hora no seu quarto para escolher o vestido que mais assentasse aos seus caprichos do momento. Roupa grossa no inverno, com casacos compridos adequados à cor do fato, sempre com vestidos porque: “as calças são para homens e eu não sou, sou mulher que gosta de atrapalhar homens bonitos com a minha roupa”, gostava ela de dizer e de pôr em prática. Daí as largas horas que gasta em se arranjar e para pentear os escassos cabelos sobreviventes da sua cabeça...ela os pintava...quase cor ruiva que gostava para parecer mais arrumada… Sugeri-lhe, um dia, deixar de pintar o cabelo, ela aceitou e passaram a ser de cor branca, parecendo-se  assim como mulher digna da alta sociedade, como ela gosta de ser classificada. Por norma, esta distinta mulher quer andar com pessoas bonitas e bem apresentadas e por isso mandava-me, ao longo destes anos todos, atar um lenço ao pescoço e colocá-lo dentro da camisa. Mandava-me comer, comer e muito "para que desapareçam as covas da sua cara, Sr. Doutor, para que fique assim mais bonito"...Gosta dessa elegância nos outros. Desde o primeiro dia que partilhamos o lar gostou do proprietário da casa de repouso, um homem jovem, bonito, bem vestido e perfumado. Odor que ela adora. Ela nunca  deixou de me oferecer água de colónia:  “caso o perfume tão bom que usa o Sr. Doutor e que eu gosto se esgote...". Sempre me chama Sr. Doutor e obriga os outros a usarem este adjectivo para falarem comigo. Um senhor Doutor quando não usava “Senhor Professor Doutor que escreve tantos livros”. Tem sido um bom garfo e melhor vestida ainda, mas a falar...fala todo o tempo...calmamente, lentamente, informada, especialmente de bispos e papas, santos e anjos, um saber litúrgico sem igual. Cansava-me tanta palavra, especialmente porque gosto de ler em silêncio. Parar aquilo era só com comédia: fecho o olho esquerdo que ela vê desde o seu sítio enquanto mantinha aberto o direito para ver televisão no tempo em que eu gostava de ver programas. "Está a dormir?.." dizia-me e eu respondo..."Estou a dormir profundamente...", mentia eu e ela aceitava e assim calava-se.  "Que dia é hoje querida amiga?"  “segunda..." "pense bem... ontem veio a sua filha que só aparece aos sábados..." "não me diga que é domingo.." "é..." "atão...há missa.." e eu punha o canal correspondente na liturgia do domingo dos católicos e ela ia orando ao longo do que o oficiante dizia...em profundo silêncio perante os outros ali sentados...e ai dos que falam...!! Recebem um grito de fúria "caluda...é a missa...não se fala...respeito". Ela católica devota, eu anticatólico frenético e militante, passei a respeitar profundamente a sua inabalável fé... ela quase uma santa na sua devoção...e o terço! ai, meu Deus...três ou quatro por dia...era eu o seu coro ou procurava-lhe outros acompanhantes, havia muitos, era só coordenar os que iam rezar com ela, eu organizava e ela gostava da minha iniciativa, contava com ela, era esperada. Aprendi muita geografia de Portugal com as suas histórias de viagens quando procurava velharias que vendia na sua loja na estrada de Sintra, o que sempre gostou de fazer nos trinta e cinco anos de atividade como também aprendi a geografia da sua terra: "Sou da aldeia com ovelhas que eu pastoreava enquanto lia os romances do Camilo (Castelo Branco) e a vida do Santo António, pertenço à freguesia do carvão, do distrito dos antigos escravos que os romanos não foram capaz de conquistar”, ensinou-me ela. Eu agradecia...um par de vezes disse-me que sonhava comigo, eu curioso, queria saber o que sonhava. Ela: "Aí não! É só comigo, tenho vergonha de lhe contar..."...outra vez desafiou-me "o Sr. Doutor comprimenta as senhoras com um beijo e a mim nada..." Lá fui eu, beijei sua bochecha e ela feliz com esse carinho, “...não vou lavar a cara nos próximos dias..."!! Num lar de idosos havia pessoas que morriam, eu sabia e vinha-lhe contar e a minha muito querida amiga rezava terços pelas suas almas durante três dias porque "ele está no julgamento divino e com o terço ajudo-o….". Com a passagem do tempo, a minha maravilhosa amiga emagreceu e passou de mulher forte a elegante, linda, bem vestida a uma senhora mais querida ainda na sua magreza. Ela adorava a minha mulher. Tinha sempre um presente para ela nas suas visitas com beijos sem fim. Cara de porcelana, uma beleza velha desperdiçada, querida por todos no lar: ela não grita, não se zanga, opina e tem sido ouvida como ninguém, com uma dignidade sem arrogância que a todos cativa. Não fosse eu casado e amante da minha mulher a teria namorado, essa dama que quando uma descendente minha retirou-me com maldade o uso do meu telefone ela deixou-me usar o dela sem pagamento. Minha mulher ofereceu-lhe uma cruz dourada com pedras de cores de fantasia e ela a todos dizia que era um presente de ouro com pedras preciosas, porque não podia ser por menos vindo de uma senhora que ela, essa minha antiga amiga gorda depois elegante e muito bonita, mas mesmo muito bonita, recebeu da sua amada amiga, minha mulher. Essa minha querida matrona elegante e calma entrou ontem na eternidade e hoje vai ser enterrada, eu a choro profundamente mas aceito a realidade com calma, não tenho outra opção, descansou...Querido Diário, vamos lembrá-la enquanto estivermos vivos e vamos nos encontrar na ressurreição em que ela acreditava.



Professor Doutor Raul Iturra, Catedrático Emérito do ISCTE-IUL

Texto Editado por Claire Smith, Antropóloga

Barra Mansa, Janeiro 2025


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