domingo, 31 de outubro de 2021

Animais híbridos, ou das mil e uma maneiras de não cozinhar bacalhau

Esta é uma história leve. Tão leve como ficam os pratos que inadvertidamente, por vezes, deixo sobre a pedra à altura de uma cadela.

Devem os leitores conhecer um livro de receitas que tem por título algo como as mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau. Pois eu estou a preparar um intitulado as mil e uma maneiras de não cozinhar bacalhau.

Tenho uma cadela que é especialista em bacalhau. Não que tenha muitos conhecimentos técnicos, se não admitirmos a apreciação do sabor como um conhecimento técnico. Arranja sempre maneira de se aproximar do fiel amigo (esta expressão deve ter surgido por causa dela), e se tiver ocasião propícia, consegue ingerir vários lombos de uma assentada. Penso, até, que a receita de bacalhau espiritual poderia ter sido inspirada nela, porque ainda ontem quando ia desfiá-lo para misturar com os outros ingredientes, estava a tal ponto reduzido após uma sua passagem de reconhecimento pela cozinha, que o que ficara no prato só mesmo com visão remota seria possível ver o bacalhau, praticamente despojado de matéria, translúcido, como na visão dos clarividentes.

Como o leitor já percebeu não é bem uma cadela, é um exercício espiritual, um guru do despojamento (nosso), uma plataforma para o completo vegetarianismo, do qual já estivemos mais longe, um método de aprendermos a dispensar alimento sólido, como os yoguis que vivem do prana, ou do sol.

Mas nem com estes assaltos à cozinha consegue tirar-me do sério. Porque vejo nela e nos seus irmãos residentes: caninos, felinos e tartarugas, uma qualidade de amor urgente que encontro especialmente em alguns animais na rua acompanhados de pessoas visivelmente infelizes, das mais variadas formas, pelas mais variadas razões. Neles reconheço mansidão, entrega, silencioso afecto, sacrifício até ao limite. Já tem acontecido, quando o sol incide de particular forma sobre estes animais, principalmente nos cães, elevar-se do pêlo uma espécie de penugem que se assemelha, perturbadoramente, a asas.


Risoleta C Pinto Pedro

 

1 comentário:

Ana Pereira disse...

exactamente. Tudo é um exercicio espiritual ..não há nada que não o seja.