sábado, 22 de janeiro de 2022

Graffitar a Literatura (I)

 

«O impossível resulta possível
apenas por capacidade do meu cérebro?
Ou do meu coração?
Que importa se eu não sei
Se o impossível tem sempre a possibilidade de ser realizado
Exigindo assim a sua dedifinição.»

(Jacinto Magalhães, Entre Mim e o Outro, 1978)

Graffiti na Rua da Irmandade, Ribamar (Ericeira)


Este humorado graffiti, assinado por Manifesto, preenche toda a fachada lateral (virada para a N247 que liga Ribamar à Ericeira) de um amplo edifício rectangular de dois pisos, tipo armazém. Construído em zona, hoje, de turismo jovem – World Surfing Reserve – o mural apresenta marcas gráficas desse contexto geográfico (fato de banho garrido, tatuagens, skate, texto em inglês). A juventude seria a destinatária preferencial desta mensagem artística – “Everything is impossible”. Um lema para quem é novo, numa idade em que tudo parece (ainda) ser possível de concretizar.

Os mais velhos já não vão tanto em slogans, precisam de leituras mais sólidas e profundas; talvez a Utopia de Thomas More (1516). «Texto literário? Filosófico? Prosa de ideias, relato de viagem, diálogo didáctico?» questiona Maria Alzira Seixo (Visão, 15/03/2007, p. 138), aquando da (excelente) edição da F.C. Gulbenkian.

Nas duas partes em que o livro se divide é-nos dado o «discurso de Rafael Hitlodeu [um marinheiro de idade avançada, Português de nascimento] sobre a melhor das repúblicas». 

«Na Utopia, porém, onde a propriedade privada não existe e os utopianos se ocupam a sério dos negócios públicos, porque o bem particular se confunde com o bem comum, o nome de república é duplamente merecido. (…)
Na Utopia, onde tudo pertence a todos, os cidadãos sabem que, se os armazéns e os celeiros públicos estiverem cheios, ninguém sentirá falta de nada para uso pessoal. Como tal, entre eles a distribuição dos bens não constitui um problema, e não há gente pobre e indigente. Quando ninguém deve nada, todos são ricos. Que maior riqueza pode existir do que a de levar uma existência alegre e livre de cuidados, sem preocupações com a subsistência e livre das queixas contínuas da mulher, preocupada com questões de dinheiro e com o dote do filho ou da filha.» (p. 165)

Já noutras áreas, designadamente nas de género, More não vislumbrou um cenário de igualdade, sendo evidente as marcas do contexto histórico-social em que viveu: 

«As esposas devem obediência aos maridos, os filhos devem-na aos pais, e os mais novos aos mais velhos.» (p. 86)
«Nos templos, os homens encaminham-se para a direita e as mulheres para a esquerda. Os homens sentam-se em frente aos seus chefes de família, e as mulheres em frente à matriarca. Deste modo, o seu comportamento em público pode ser visto por aqueles que os orientam e os dirigem. » (p. 160) 

Uma outra utopia, escrita anteriormente por Christine Pisan (1405) A Cidade das Mulheres (Coisa de Ler Edições, 2007), parece não ter tido repercussão em Thomas More quando idealizou esse “lugar nenhum” de uma sociedade perfeccionada – a ilha da Utopia, com as suas 54 cidades. 

Infelizmente, nos dias de hoje, não há lugar para utopias, pelo menos, no debate político. E essa devia ser, por excelência, a esfera onde se projecta o futuro: como organizar o que é “público” e gerir o “bem comum”. No entanto, no mundo académico há ainda quem se focalize, seriamente, nesta temática por considerar que «a utopia serve para nos fazer caminhar com sentido»; é o caso de Fátima Vieira, docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, que assina a Introdução duma edição bem mais recente da Utopia de Thomas More (Público / Utopia & Conhecimento, nº 1, 2021); dela, sugerimos também duas entrevistas: ao programa “Câmara Clara” (RTP2, 14/10/2012) e à revista a Página da Educação (nº 200, Primavera 2013, pp. 6-15).

A ideia de “utopia” tem-se desgastado. Muito desacreditada no espaço comunicacional público (apelidar alguém de “ser utópico” anda perto do enxovalho intelectual). Pois é, «a utopia subverte», como o relembra Fátima Vieira (2013). Daí as emergentes tentativas de a ancorar mais à realidade; por exemplo, a adjectivação do conceito – Para uma Utopia Realista (Encontros de Châteauvallon, em torno de Edgar Morin, Instituto Piaget, 1998). Ou conceito criado por Immanuel Wallerstein em Utopistics or Historical Choices of the Tweenty-First Century (New York: The New Press, 1998):

«utopística é uma séria avaliação das alternativas históricas, o exercício do nosso julgamento face a uma racionalidade substantiva de uma alternativa possível de sistemas históricos. É a sóbria, racional e realística evolução dos sistemas sociais humanos, com os constrangimentos do seu contexto e as zonas abertas à criatividade humana. Não a face do perfeito (e inevitável) futuro. É antes um exercício, simultaneamente, nos campos da ciência, da política e da moral.»

Nesta linha, podemos inserir a canção de Bruce Springsteen que deu título ao álbum Working on a Dream (Sony Music, 2008), e que se tornou numa espécie de hino da primeira campanha presidencial de Barack Obama; estava-se então num patamar superior ao «I have a dream», formulado por Martin Luther King, em 1963. Quarenta e cinco anos volvidos, o “trabalhar” sobre o “sonho” deu resultado: a utopia concretizou-se; os EUA tinham um presidente negro (em dois mandatos consecutivos).

Essa ligação entre o Presidente (Obama) e The Boss (Springteen) teve, recentemente, novo desenvolvimento no livro Renegados. Nascidos nos EUA (Objectiva, 2021) que recolheu as conversas de ambos no podcast (Spotify).

Em tempos de cinzentismo e pensamento único, são os campos da arte aqueles que mais pugnam por manter a chama acesa:

«Pegue o tambor e o ganzá

Vamos pra a rua gritar

A palavra utopia.»

(“Samba da Utopia”, Jonathan Silva, 2018)


Post scriptum:

 Este mural desapareceu nos finais de 2021. Durou 7 anos! (havia-o fotografado no Verão de 2014). Nada mau para os padrões da “arte do efémero”. Os proprietários resolveram lavar a cara à casa, pintando-a de alto a baixo e, na voragem da limpeza, lá se foi o mural. E o edifício deixou de se distinguir dos outros daquela zona de veraneio: ficou asséptico, com muito menos encanto. A arte de rua, por aquelas bandas, parece “impossible”.


Luís Souta

(texto e foto)


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