quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Literatura: o pão nosso de cada dia (III)

 Luís Souta


O ESCRITOR

identidades e ambivalências

«a razão de ser do escritor é o protesto, a contradição e a crítica.»
(Mário Vargas llosa)

O homem de letras 1 é uma figura relevante e considerada em qualquer sociedade… letrada. Difícil é traçar-lhe o perfil, pois desdobra-se por múltiplas obras, por géneros diferentes, por estilos diversos, por um sem número de personagens e de narradores; por isso «[c]ostuma-se dizer que os escritores são um bocado esquizofrénicos» 2. «O escritor é como uma onda, mudando de configuração a cada momento» como dizia Manuel Rui citado por Suleimane Cassano que acrescenta «o escritor é uma entidade mítica (…) está constantemente a ficcionar-se» 3.



Ao longo da História, vários têm sido os contornos do debate (sempre recorrente) sobre as responsabilidades do escritor, enquanto intelectual privilegiado das nossas sociedades. Augusto Santos Silva (1997) diz-nos que, em Portugal, os «escritores pare[ce]m os intelectuais mais ‘autênticos’». E intelectuais são, de acordo com Eduardo Lourenço, «todos aqueles que por natureza são vocacionados para a autognose colectiva (artistas, historiadores, romancistas, poetas)» (1978:12) ou, na perspectiva de João de Almeida Santos, «aquele cujo pensamento produz efeitos reais sobre as ordens constituídas» (2000:213). Sem querer entrar no agastado, e datado, debate das concepções várias que lhe são imputadas, aqui se relembram as principais: «intelectual orgânico» (Grasmci), «intelectual autónomo» (Mannheim), «intelectual específico» (Foucault), «intelectual mediático» (Brenda). Em qualquer dos casos, eles teriam que preencher dois requisitos fundamentais: (i) pertencerem a um «campo» autónomo e actuarem de acordo com as regras que lhe são próprias; (ii) exercerem as competências específicas da sua actividade, sendo entendidos como produtores culturais a tempo inteiro. Por isso, Bourdieu considera-os seres «bidimensionais».


No caso particular do escritor, é através do que escreve e publica, em contextos de trabalho de uma certa adversidade e isolamento, que ele ganha autoridade social e não tanto pelo que é como pessoa ou profissional. É que raramente um escritor vive só da literatura 4, ainda que ambicione a “desocupação” como o relembra José Gomes Ferreira recorrendo ao verso de José Agostinho de Macedo: «Nunca um poeta bom teve outro ofício» senão o de cantar (1965:194). No entanto, poucos fazem da escrita a sua profissão 5, excepto para um punhado de “consagrados”… pelo mercado, e em regra, numa fase adiantada da sua carreira. O mais vulgar é o exercício de uma outra profissão (professor, médico, jornalista, etc.), como fonte de segurança económica, mas concebida como uma área “menor”, subalterna. O exercício da escrita, que exige tempo, energia e disponibilidade, acaba por se tornar tão absorvente, que para além dela pouco ou nada vale a pena. É isso que leva António Lobo Antunes a dizer (entrevista ao DNA, 08/12/2001, p. 15): «A minha vida faz pouco sentido fora da literatura…». E isto é mais evidente quando o escritor está “lançado”, ou seja, quando entrou numa cadeia de continuidade produtiva, e portanto se criaram expectativas em leitores e editores que aguardam (ou exigem) a publicação de uma nova obra. Como dizia Somerset Maugham «a literatura poderá ser uma vistosa bengala, mas não é lá grande muleta.»


Uma outra particularidade, no grupo específico dos escritores, prende-se com a ausência de «território». Ao contrário do que sucede na maioria das actividades que são exercidas em locais ou instituições, eles próprios estruturadores e condicionadores do exercício profissional e das respectivas culturas e identidades grupais: os campos (agricultores), o mar (pescadores), as jazidas (mineiros), as fábricas (operários), as lojas (comerciantes), as escolas (professores e educadores), os hospitais (médicos e enfermeiros), os escritórios (advogados), etc. Nas profissões ditas liberais, tradicionalmente exercidas em espaços individuais isolados (o consultório médico ou o escritório de advogado, por exemplo), tem-se vindo a assistir a reagrupamentos em equipas de trabalho, fruto quer de um processo de proletarização quer da necessidade, face à competitividade dos mercados, de rentabilizar equipamentos (cada vez mais sofisticados e que implicam avultados investimentos financeiros). No caso dos médicos, é assim que se assiste à troca do consultório pelo centro de saúde ou pela clínica médica.


Pode-se dizer que os escritores, são um caso à parte, no que respeita à sua “territorialização”. Numa actividade muito solitária e apartada – «no silêncio e no isolamento em que trabalho» (José Saramago, 1971:135) –, os «exploradores profissionais da solidão», como os designa José Gomes Ferreira 6, têm uma necessidade imperiosa de socialização entre pares, de troca de produções, mas também do confronto de opiniões, de debate, e até de convívio, o que foi preenchido, num certo período, pelas «tertúlias»: os cafés – o Gelo, o Herminius, a Brasileira do Rossio, o Martinho da Arcada, o Montecarlo, a Orquídea, A Cubana, o Palladium, o Bocage, o Leão d’Ouro, o Portugal, o Itália, o Colonial, o Sequeira, o Ribadouro, as Pastelarias Veneza, Paraíso e Bijou, são alguns exemplos emblemáticos na cidade de Lisboa; eram esses “territórios”, informais e temporários, que possibilitavam um certo sentido gregário aos grupos, ainda que as afinidades ideológicas e as correntes literárias condicionassem fortemente a entrada nesses círculos. A este propósito, António Patrício escreveu, com certa graça, num dos seus contos: «As escolas literárias são verdadeiras cooperativas de consumo. É só matricular-se… e cozinhar» (1910:123). Nas tertúlias literárias desenrolavam-se processos de “iniciação”, cultivava-se uma aprendizagem informal de saberes e técnicas, “agarravam-se” ideias para futuros projectos, afinavam-se estratégias de intervenção do grupo 7. Curiosamente, a “morte dos cafés”, em especial na capital, e a sua substituição por estabelecimentos tipo “come-em-pé”, ajudaram a pulverizar esses grupos, remetendo cada um para a sua casa.


A inexistência de correntes literárias acentuou este movimento de fechamento no casulo. Ilustrativa é a afirmação de José Saramago, publicamente assumido como homem de partido e organização, quando anunciou numa entrevista (DNA, 12/12/1999, p. 20), a propósito das tertúlias: «nunca pertenci a grupos, vivi sempre muito só». Esta tendência para um certo tipo de clausura, e de solipsismo, pode originar uma vida “fora do tempo” ou «vidas pardas (…) e, aparentemente, pouco interessantes ou mesmo desinteressantes» em contraste com «as vidas muito extrovertidas e cheias de aventuras que são próprias dos escritores do século XIX», como o salienta António Tabucchi (entrevista ao DNA, nº 133, 05/06/1999, p. 16). Daí que, e ainda segundo Tabucchi, se assista também a uma mudança substantiva no enfoque temático do escritor: a literatura do século XX seria mais do imaginário, do virtual, do interior do que do mundo exterior.


E a literatura do século XXI? Estamos em crer que será sempre «um campo infinito de infinitas portas que nos conduzem por caminhos que vão ter ligações com outras portas» (Alberto Manguel, Ípsilon, 03/12/2021).


Notas

1. Etimologia de literatura, do latim littera: letra.

2. Mário de Carvalho na entrevista que me concedeu em Março de 2002.

3. In “Pontes Lusófonas”, encontros com escritores realizados no Maputo (DN, 17/09/1999, p. 42).

4. Aquilino Ribeiro desabafava, com ironia: «para se viver da literatura é necessário escrever um volume de 400 páginas, duas vezes por semana» in Dacosta (2001:143).

5. Há mesmo quem não considere que ser escritor é uma profissão, caso de António Tabucchi (DNA, nº 133, 05/06/1999, p. 15).

6. Segundo José Gomes Ferreira, em “O terrível ofício de poeta”, «aqui solidão não significa emparedamento ou incomunicabilidade, mas afastamento provisório para sublimar a virtude de certas forças que aproximam mais os poetas dos homens» (1965:280).

7. José Gomes Ferreira confessa: «Nunca frequentei salas de aula com tanto proveito. O que eu aprendi nessa Universidade verdadeira!» (1965:100). O actor e encenador Mário Viegas perfilha da mesma opinião: «Aprendia-se imenso nessas tertúlias, discutindo, convivendo, bebendo, engatando. Agora ninguém convive, ninguém fala. A cidade desertificou-se» in Dacosta (2001:112).


 Referências

DACOSTA, Fernando (2001) Nascido no Estado Novo. Lisboa: Editorial Notícias/ Obras de F.D.

FERREIRA, José Gomes (1965) A Memória das Palavras ou o gosto de falar de mim. Portugália/ Obras de JGF.

LOURENÇO, Eduardo (1978) O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino Português. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 3ª edição, 1988.

PATRÍCIO, António (1910) “Words…” in Serão Inquieto. Lisboa: Relógio d’Água/ Clássicos Portugueses, 1995.

SANTOS, João de Almeida (2000) Os Intelectuais e o Poder. Edições Fenda.

SARAMAGO, José (1971) Deste Mundo e do Outro. Lisboa: Editorial Caminho/ O Campo da Palavra, 3ª edição, 1985.

SILVA, Augusto Santos (1997) Palavras para um País: estudos incompletos sobre o século XIX português. Oeiras: Celta.

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