Luís Souta
A ANTROPOLOGIA
E O INTERESSE PELO LITERÁRIO
(João Leal, 1993, prefácio a Cultura Popular e Educação de Adolfo Coelho)
Freitas Branco (1999) ao referir-se à «galeria de
notáveis» da antropologia portuguesa, que operam no período de transição do
século XIX para o XX – Leite de Vasconcelos, Adolfo Coelho, Teófilo de Braga,
Rocha Peixoto – identifica a literatura como uma das áreas de interesse comum a
essa «geração pioneira» preocupada com as «tradições populares». Entretanto, na
nova geração que surge a partir dos anos 40, «os etnólogos de primeira vaga»,
tendo Jorge Dias e Ernesto Veiga de Oliveira como duas das figuras
proeminentes, o interesse pela dimensão literária esvai-se por completo. É um
grupo mais preocupado com a cultura material, predominantemente as alfaias
agrícolas e com o conhecimento monográfico do meio rural.
O
interesse pelo espólio documental literário tem assim andado arredado há muito
da ciência antropológica. João Leal (1997) é uma das excepções quando analisa
um texto de 1940 do escritor Vitorino Nemésio “Le Mythe de Monsieur Queimado”
para a partir dele problematizar um conjunto de ensaios que, ao longo de
sessenta anos, foram forjando uma identidade em torno do conceito de
«açorianidade».
Também
a revista Gradiva, Revue Européenne
d'Anthropologie Littéraire, tem materializado essa “sedução pela literatura”
num conjunto de trabalhos de psicólogos-analistas-antropólogos com enfoque, no
entanto, quase exclusivo na psicanálise. No seu número de estreia, esclarece-se
a abordagem: «lánthropologie littéraire se donne le sujet pour object: sujet de
la production culturelle, sujet de la construction d’un sens à la réception.
Comme écrivons-nous, et pourquoi? Comment lisons-nous, et pourquoi?» (1996:3).
Podíamos
ainda acrescentar os trabalhos de antropólogos (de formação estruturalista) que
têm cultivado análises semiológicas de textos (mitos e lendas em particular,
mais no contexto africano e do subcontinente indiano) – José Carlos Gomes da
Silva (1989) e Manuel João Ramos (1997). Por último, a «literatura de viagens»
tem sido das que se mantém como uma fonte duradoura onde a antropologia
(cultural e social) tem ido buscar muito dos seus materiais de análise sobre
outros povos e culturas.
Há
razões históricas na génese da Antropologia para se privilegiar a “oralitura” e
não a literatura, a cultura popular e não a “erudita”. Elas consubstanciam-se
em três “ortodoxias” que giram em torno do (i) objecto, (ii) do trabalho de
campo e d(iii) a sincronia. Vejamos cada uma delas (neste artigo, em concreto,
cingir-nos-emos à primeira).
(i)
Quanto ao objecto: a Antropologia,
como ciência social autónoma, tem o seu aparecimento intrinsecamente associado
ao período histórico em que o mundo Ocidental, através da expansão colonial,
“descobre” sociedades bem distintas e as procura incorporar na sua órbita
política e económica. Jean Copans afirma mesmo que, nesta disciplina, «o campo
empírico é imposto à reflexão
teórica: não é um pensamento à procura do seu objecto» (1971:32). E assim,
estas sociedades – apodadas de primitivas, arcaicas, atrasadas, ágrafas, ou,
eufemisticamente, tradicionais e exóticas – de reduzida dimensão e aparente
simplicidade, constituem-se no objecto primeiro da antropologia.
Com
a descolonização, a antropologia passou por uma crise de identidade, como o
relembra Geertz: «O fim do colonialismo alterou radicalmente a natureza do
relacionamento social entre os que perguntam e olham e os que são perguntados e
se tornam objecto do olhar» (1989:60). Só mais recentemente com o aparecimento
de antropólogos “autóctones” «the insider’s view from inside» tem vindo a
substituir a posição mais tradicional «the outsider’s view from inside».
Num
segundo fôlego, a antropologia do distante exótico deu lugar a uma
«anthropology at home». Face a um objecto em desaparecimento (que só o turismo,
hoje em dia, tenta desesperadamente negar, teimando vender viagens dos «últimos
paraísos do homem»), o retorno ao Ocidente implicou, de início, apenas uma
mudança de território. Antropologia continuou a interessar-se por grupos
sociais quantitativamente pequenos, onde “todos se conhecem”, relativamente
homogéneos, solidários e conscientes de uma certa identidade, em regra,
comunidades dominadas pelo primado da tradição e da “evolução” lenta (aldeias,
bairros, famílias, associações). Em qualquer dos casos era sempre possível apreendê-las
globalmente, ter a visão de um todo social articulado. Conhecer as suas formas
de viver e pensar. No essencial, replicou-se “aqui” o que se fazia “lá”: o
antropólogo procurou o “outro” (doméstico), o exótico, o diferente, o “em vias
de extinção”, e, logicamente, partiu para o mundo rural, antes que a
industrialização e o «progresso», vistos como ameaças, lá chegassem.
Nas
cidades e zonas suburbanas, ficou-se pelos grupos minoritários dos bairros
pobres, marginais e degradados, de preferência. Ultimamente, reencontrou as
minorias étnicas – «l’inconnu familier» –, que a imigração trouxe de África, da
Ásia ou da América.
Como
diz Iturra (1997) «os grupos ‘eles’ aparecem no meio do grupo ‘nós’», ou seja,
«a Colónia que lhe apareceu na Metrópole». O antropólogo mergulhou na
complexidade das sociedades contemporâneas, por uma questão de sobrevivência
disciplinar, mas deu prioridade aos fenómenos de «diferença social e cultural».
O olhar do antropólogo, sobre a sociedade moderna, continua preso dessa herança
do passado.
Mais
ainda, este “regresso a casa” pôs-nos, a nós antropólogos, em concorrência com
a ciência-irmã – Sociologia – que, não tem cessado de reclamar uma espécie de
“tratado de tordesilhas”, temático e teórico-metodológico (Cabral, 1998), para
a divisão (assimétrica) do trabalho nas novas mega-urbes, remetendo-nos a uma
espécie de “acantonamento” antropológico.
Continuar
nesta via – o que sustenta uma certa crítica que nos é feita, a de nos ocuparmos
com o estudo de “miudezas” – é correr o risco de ficarmos novamente órfãos de
objecto científico, a curto prazo e pela segunda vez, perante o mais que
previsível movimento de homogeneização massificadora, decorrente da
mundialização da economia e do imparável fenómeno de globalização sociocultural.
Não podemos deixar de perfilhar a ideia de Sanchez Gómez «no es el objeto de
estudio la circunstancia esencial que orienta una nueva forma de hacer
antropología» (1997:303).
Nota
1.
Que mudanças se operaram no campo das ciências sociais desde 1924 quando Marcel
Mauss defendia que o lugar da sociologia era «dentro da antropologia»!
Referências
BRANCO,
João de Freitas (1999) “A fluidez dos limites: discurso etnográfico e movimento
folclórico em Portugal”. Etnográfica,
vol. III, nº 1, pp. 23-48.
CABRAL, João Pina (1998) “A antropologia e a questão
disciplinar”. Análise Social, nº 149,
vol. XXXIII, pp. 1081-1092.
COPANS,
Jean et al (1971) Antropologia. Ciência das sociedades
primitivas? Lisboa: Edições 70/ Biblioteca 70, 1974.
GEERTZ, Clifford (1989) “Estar lá, escrever aqui”. Diálogo, nº 58, vol. 22, nº 3, 1989, pp.
58-63.
GOMES DA SILVA, José Carlos (1989) A identidade roubada: ensaios de
Antropologia Social. Lisboa: Gradiva/ Trajectos, nº 24, 1994.
ITURRA, Raúl (1997) “Tu me entendes porque me
percebes” in Luís Souta Multiculturalidade
& Educação. Porto: Profedições, pp. 11-5.
LEAL, João (1997) “Açorianidade: Literatura, Política,
Etnografia (1880-1940)”. Etnográfica,
vol. 1, nº 2, pp. 191-211.
RAMOS, Manuel João (1997) Ensaios de Mitologia Cristã: O Preste João e a reversibilidade
simbólica. Lisboa: Assírio & Alvim/ Sete estrelo, nº 4.
SANCHEZ GÓMEZ, Luis Ángel (1997) “Cien años de
Antropologia en España y Portugal (1870-1970)”. Etnográfica, vol. 1, nº 2, pp. 297-317.
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