sábado, 14 de janeiro de 2023

Subsolo

 A Ordem de Cristo não tem graus, templo, rito, insígnia ou passe. Não precisa reunir, e os seus cavaleiros, para assim lhes chamar, conhecem-se sem saber uns dos outros, falam-se sem o que propriamente se chama linguagem. Quando se é escudeiro dela não se está ainda nela; quando se é mestre dela já se lhe não pertence. Nestas palavras obscuras se conta quanto basta para quem, que o queira ou saiba, entenda o que é a Ordem de Cristo – a mais sublime de todas no mundo.

Não se entra para a Ordem de Cristo por nenhuma iniciação, ou, pelo menos, por nenhuma iniciação que possa ser descrita em palavras. Não se entra para ela por querer ou por ser chamado; nisto ela se conforma com a fórmula dos mestres: “Quando o discípulo está pronto, o mestre está pronto também”. E é na palavra “pronto” que está o sentido vário, conforme as ordens e as regras.

Fiel à sua obediência – se assim se pode chamar onde não há obedecer – à Fraternidade de quem é filha e mãe, há nela a perfeita regra de Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Os seus cavaleiros – chamemos-lhes sempre assim – não dependem de ninguém, não obedecem a ninguém, não precisam de ninguém, nem da Fraternidade de que dependem, a quem obedecem e de que precisam. Os seus cavaleiros são entre si perfeitamente iguais naquilo que os torna cavaleiros; acabou entre eles toda a diferença, que há em todas as coisas do mundo. Os seus cavaleiros são ligados uns aos outros pelo simples laço de serem tais, e assim são irmãos, não sócios nem associados. São irmãos, digamos assim, porque nasceram tais. Na ordem de Cristo não há juramento nem obrigação.

Ela, sendo assim tão semelhante à Fraternidade em que respira, porque, segundo a Regra, “o que está em baixo é como o que está em cima”, não é contudo aquela Fraternidade: é ainda uma ordem, embora uma Ordem Fraterna, ao passo que a Fraternidade não é uma Ordem.

(Fernando Pessoa, Hermetismo e Iniciação, Zéfiro, 2015, p.146 - organização, prefácio e notas de Manuel J. Gandra)

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